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Matérias / Idade Média

Amputações e medicamentos bizarros: A medicina na Idade Média

Conheça alguns dos tratamentos da época, que eram colocados em prática para curar "castigos divinos"

Moacyr Scliar Publicado em 15/05/2020, às 11h00

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Imagem meramente ilustrativa de uma pintura medieval - Wikimedia Commons
Imagem meramente ilustrativa de uma pintura medieval - Wikimedia Commons

O progresso científico é necessariamente um processo descontínuo, em que avanços se alternam com períodos de estagnação. Disso, a história da medicina é um exemplo. Durante muito tempo predominou, na Antiguidade, a visão mágico-religiosa, segundo a qual doença era resultado de castigo dos deuses, de maldições ou de feitiçaria.

Assim, a epilepsia era chamada doença sagrada: seria a manifestação da posse do corpo por divindades. Mas então, na Grécia clássica, surgem Hipócrates e seus discípulos, sustentando que a enfermidade tinha causas puramente naturais, ligadas ao modo de vida, à alimentação e ao meio ambiente.

Sagrada, a epilepsia? Claro que não. Doença, sim, mas doença como outra qualquer. Claro que era preciso ter coragem para defender ideias assim, mas Hipócrates e a escola hipocrática tinham prestígio. Suas concepções foram incorporadas pela Roma imperial e desenvolvidas por Cláudio Galeno, no século 2, em uma gigantesca obra que sintetiza praticamente todo o conhecimento médico da época.

Minado pela corrupção e pela pobreza de grande parte de uma oprimida população e assediado pelos povos bárbaros, o Império Romano entrou em declínio. Nesse processo, aliás, as doenças desempenharam um papel significativo: malária, peste e varíola dizimavam populações e tropas. Contra essas doenças os médicos de então muito pouco podiam fazer.

A queda de Roma marca o começo da Idade Média. O cristianismo, perseguido no Império, será agora a religião da maioria da população. Aos pobres, aos deserdados, aos servos, aos aflitos, aos doentes, oferecia uma explicação para as pestilências e o conforto espiritual necessário em época de tanto sofrimento.

Pecado

O cristianismo tinha sua própria concepção sobre a doença. Esta é frequentemente um resultado do pecado. Exemplo era a lepra, na qual estava implícita a maldição bíblica. Diz o Levítico, livro do Antigo Testamento: Quem quer que tenha lepra será pronunciado impuro e deverá morar sozinho.

O impreciso diagnóstico incluía certamente outras doenças da pele, e quando verificado, o leproso era considerado morto. Rezava-se a missa de corpo presente e ele era enviado a um leprosário, instituição que se multiplicou na Idade Média, ou tinha de vagar pelas estradas, usando roupas características e fazendo soar uma matraca para advertir os outros de sua contagiosa presença.

Pessoas infectadas pela lepra / Crédito: Wikimedia Commons

Já as epidemias eram consideradas um castigo divino para os pecados do mundo (outra ideia bíblica). Mas, sendo um castigo, a doença podia funcionar como penitência e absolvição; uma vida virtuosa levaria então à cura resultante da graça divina.

Ou seja: a religião proporcionava um sentido para o sofrimento. Quando em 251 a peste assolou Cartago sob ocupação romana, no norte da África, o bispo Cipriano consolou os cristãos: morrer significava ser libertado deste mundo.

Poderia representar um castigo para os pagãos e os inimigos de Cristo, mas para os servos de Deus era uma feliz partida. Verdade, estavam morrendo tanto os justos como os pecadores, porém, dizia Cipriano, os primeiros eram chamados para o gozo e os segundos para a tortura eterna. A pestilência fazia assim uma conveniente triagem.

Ciência subestimada 

Em relação à medicina como ciência, e até mesmo em relação às medidas higiênicas, havia desconfiança, quando não franca hostilidade. Tertuliano dizia que o Evangelho tornava desnecessária a especulação científica.

Para São Gregório de Tours, era blasfêmia consultar médicos em vez de ir à tumba de São Martinho. Avisava São Jerônimo àqueles cuja pele mostrava-se áspera pela falta de banho: quem se lavou no sangue de Cristo não precisava lavar-se de novo.

Os médicos, poucos, não inspiravam muita confiança. Escolas de medicina só surgiram no final da Idade Média; até então o aprendizado era empírico e excluía importantes conhecimentos, como o da anatomia. Dissecar cadáveres era uma prática severamente restrita, sobretudo por motivos religiosos.

Considerava-se que a sacralidade do corpo de Cristo estendia-se aos demais corpos, vivos ou não. Em consequência a medicina continuava baseando-se nos trabalhos de Galeno, que não associava doenças a órgãos ou sistemas e na qual erros de anatomia não eram raros.

As raras cirurgias, conduzidas sem anestesia e sem qualquer assepsia, eram praticadas por barbeiros. Até hoje existe, diante de antigas barbearias inglesas, uma espécie de mastro com listras brancas e vermelhas, lembrando essa antiga atividade: o vermelho simboliza o sangue e o branco as bandagens usadas nos operados.

Os barbeiros também faziam a sangria, um dos procedimentos mais comuns à época. A sangria era usada para tratar pletora, situação na qual o corpo tinha excesso de sangue. O tratamento clínico não era muito melhor. John Arderne, autor de Uma Arte da Medicina e médico de reis da Inglaterra, tratava cólicas renais com um emplastro quente untado com mel e fezes de pombos.

Mas engana-se quem pensa que a medicina estagnou completamente nessa época. Na Espanha muçulmana, médicos árabes e também judeus (os dois grupos então conviviam em paz) inspiravam-se em Hipócrates e Galeno para introduzir importantes progressos na cirurgia, na oftalmologia, na farmácia.

Primeiros hospitais

A ineficácia dos procedimentos mágico/religiosos era compensada com caridade. Foi assim que surgiram as instituições precursoras dos modernos hospitais, os xenodochia, asilos para doentes (e também para viajantes) nos quais os pacientes recebiam, se não o tratamento adequado pelo menos conforto espiritual.

No final da Idade Média as coisas começaram a mudar. O ensino da medicina torna-se mais institucionalizado. Nessa época surge a famosa escola de Salerno (Itália), que funcionou do século 10 ao 12. Eram quatro anos de estudo mais um de prática sob a supervisão de um médico. O mais famoso professor em Salerno foi Constantino Africanus, que viveu no século 11 de Cartago, então uma cidade árabe.

Na Escola de Salerno foi elaborado o Regimen Sanitatis Salernitanum, código de saúde que continha regras simples, práticas e sensatas para uma vida saudável. Detalhe curioso: essas recomendações eram em versos, para serem mais facilmente lembradas. Salerno e depois Montpellier, no sul da França, eram os pilares da educação médica na época.

Mas a medicina ainda não era uma área autônoma. Era ensinada da mesma forma que filosofia ou direito, com muitas referências aos mestres e seus textos e pouca observação ou experimentação. A anatomia continuava ausente do currículo e só apareceria na Renascença.

Mas a cirurgia já era largamente praticada em Salerno. Quem operava deveria adotar, previamente, certas precauções: evitar o coito, o contato com mulheres menstruadas e alimentos cujo cheiro pudesse corromper o ar, tal como a cebola. Outra inovação de Salerno foi a licença para que mulheres pudessem praticar a medicina. Santa Hildegarda, uma abadessa beneditina, escreveu vários tratados médicos. E Trótula ficou conhecida como parteira.

Pestilências 

O final da Idade Média foi marcado pelas pestilências. Epidemias naturalmente já tinham sido registradas, tanto no Oriente como na Grécia e no Império Romano. Tucídides em Atenas (430 a.C.) e Galeno em Roma (164) faziam menção a elas, sem falar no próprio Hipócrates.

Mas os movimentos populacionais, a miséria, a promiscuidade e falta de higiene dos burgos e os conflitos militares, tudo isso criou condições para explosivos surtos epidêmicos. O exemplo mais conhecido são as repetidas epidemias de peste. Doença causada por uma bactéria, Pasteurella pestis, a peste é em geral transmitida por pulgas de ratos.

O Ocidente medieval estava despreparado para enfrentar a peste. Por outro lado, a doença coincidiu com o início de importantes mudanças econômicas, sociais e culturais e, em certa medida, até contribuiu com elas. A enorme hecatombe paradoxalmente valorizou a mão-de-obra. Os servos já não estavam tão presos às terras do senhor feudal e muitos deles mudaram-se para as cidades, onde novos ramos de atividades se desenvolviam.

O comércio, inclusive o marítimo, desenvolveu-se muito, as ciências e as artes progrediram e tudo isso repercutiu na prática médica. Acabou o tabu em relação aos estudos anatômicos, a medicina tornou-me mais prática e mais científica. Era o início da modernidade.

Isso não quer dizer que crendices e superstições em relação a doenças tenham desaparecido. A ciência não tem explicação para tudo, muito menos para os mistérios do corpo humano. Enquanto esses enigmas persistirem, muitos continuarão recorrendo ao sobrenatural para diminuir a angústia que a enfermidade sempre causa, na Idade Média ou em qualquer outra época.


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