Busca
Facebook Aventuras na HistóriaTwitter Aventuras na HistóriaInstagram Aventuras na HistóriaYoutube Aventuras na HistóriaTiktok Aventuras na HistóriaSpotify Aventuras na História
Matérias / Personagem

Anita Garibaldi: Heroína de dois países

Ela lutou de igual para igual em exércitos masculinos, bradando gritos de guerra. E morreu cedo. Conheça sua história

Dimalice Nunes Publicado em 22/09/2018, às 07h01

WhatsAppFacebookTwitterFlipboardGmail
Anita Garibaldi em retrato caseiro - Reprodução
Anita Garibaldi em retrato caseiro - Reprodução

Maria Bonita e Lampião, Bonnie e Clyde, Anita e Giuseppe: mais que amantes, foram companheiros de armas, combates, conquistas e fugas. A história de Anita daria um filme de ação. Várias vezes ela lutou com armas de fogo. Capturada em combate, fugiu embrenhando-se pela mata por mais de uma semana. Salvou o filho recém-nascido partindo a galope, seminua, no meio da noite. Em Montevidéu teve mais três filhos enquanto o marido lutava ao lado dos republicanos uruguaios. Foi para a Itália, acompanhou muitas vitórias e derrotas de Garibaldi em batalhas e, mesmo sem lutar, cuidou de feridos e organizou hospitais. Conheceu reis e revolucionários. Foi perseguida até morrer. “Virou um mito”, como diz Paulo Markun, biógrafo de Anita e autor de Anita Garibaldi: Uma Heroína Brasileira.

Amor e guerra

Em julho de 1839 o corsário italiano Giuseppe Garibaldi recebe uma missão de seu general, David Canabarro: avançar rumo ao norte pelo litoral brasileiro e levar os ideais da Revolução Farroupilha para a então província de Santa Catarina. Derrotadas as forças imperiais, fundada a República Riograndense, era hora de avançar.

Então o desastre. Antes da chegada a Laguna, porta de entrada para a conquista da região, o barco de Garibaldi naufraga. Ao fundo vão seus maiores amigos. Mas dessa tragédia ele encontraria um destino feliz: sua companheira definitiva, Anita Garibaldi.

Embora boa parte do que se escreveu sobre Anita seja ficção, o espírito independente e aguerrido aparece cedo em sua biografia, como no episódio que motivou a mudança de sua família de Morrinhos, atual Tubarão (SC), para Laguna (SC). Por volta dos 13 anos, Aninha, como era chamada antes de Garibaldi (o italiano não conseguia pronunciar o diminutivo com “nh”), chicoteou o rosto de um carreteiro que a assediou, impedindo, com gracejos nada educados, sua passagem enquanto cavalgava para casa. O homem prestou queixa contra a menina na delegacia local. Envergonhada, sua família mudou-se do vilarejo.

Anita em roupas masculinas, na Itália, em 1849 Wikimedia Commons

A reação contra o agressor cobrou um alto preço. Com a intenção de sossegar a menina, sua mãe, já viúva e com outros oito filhos, a obriga a casar-se, aos 14 anos, com o sapateiro Manuel Duarte. “O caráter forte e decidido dela culmina em várias atitudes ríspidas. Veio a imposição da mãe para que ela se casasse com Manuel, e a falta de afinidade do casal resultou na infelicidade conjugal”, afirma a pesquisadora Fernanda Aparecida Ribeiro no livro Anita Garibaldi Coberta por Histórias, fruto de sua tese de doutorado na Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Enquanto o corsário italiano Garibaldi e outros partidários da Revolução Farroupilha se dirigem a Laguna em julho de 1839 para tomar a cidade, Manuel se alista na Guarda Nacional do Império e sai da cidade, deixando Aninha com a mãe”, conta Fernanda. Com o consorte oficial passando para o campo inimigo, o caminho fica livre para Giuseppe.

"Tu devi esser mia”

Garibaldi deixou um livro de memórias que depois ganhou uma versão definitiva pelas mãos de Alexandre Dumas. É nesse original que o italiano fala sobre a solidão em Laguna e a busca por uma companheira depois do naufrágio que sofrera: “Caí num isolamento desolador, parecia estar só nesse mundo. Precisava muito de alguém que me amasse e logo! Embora não fosse velho, eu conhecia suficientemente os homens para saber como era difícil encontrar um verdadeiro amigo. Uma mulher! Sim, uma mulher!”

Mesmo com o acidente, os farrapos chegaram. Laguna já está conquistada e a missão é preparar a tropa para seguir adiante. Enquanto organiza armas e suprimentos para continuar a viagem, Giuseppe observa as casas da Barra de Laguna com a luneta que sempre trazia consigo. “Eu jamais tinha pensado em casamento e me achava inadequado, pela independência de índole e propensão à carreira aventuresca. O destino resolveu de outro modo”, deixou ele em suas memórias. “Descobri uma jovem.” Giuseppe vai até a casa onde viu a adolescente, se apresenta e é convidado pelo dono da casa para um café. A segunda pessoa a avistar é seu alvo, a sobrinha do farroupilha que o recebeu. “Ficamos os dois estáticos e silenciosos. Saudei-a finalmente e lhe disse: ‘Tu devi esser mia’. Falava pouco o português. De todo modo, fui magnético em minha insolência.” Um mês depois Anita se juntou às tropas de Garibaldi. Estariam juntos por uma década.

Casa de Anita em Laguna, em 1849 Wikimedia Commons

O guerreiro italiano provavelmente romantizou a situação. “Há as memórias de Garibaldi que, como toda autobiografia, deve ser vista com reservas. Nós, historiadores, lidamos com documentação e, principalmente, com as lacunas dessa documentação, o que, via de regra, é menos interessante do que a ficção”, explica a historiadora do Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Cíntia Vieira Souto.

É sabido que esse encontro aconteceu entre julho e agosto de 1939 e Anita devia ter quase 18 anos. Sua certidão de nascimento só foi expedida em 1999, 150 anos depois de sua morte. Ela nasceu entre 1821 e 1824, mais provavelmente em 1821. O local também não é totalmente certo e, por exclusão, as pesquisas históricas chegaram a Morrinhos, mas é Laguna que consta no registro tardio, com a data de 30 de agosto de 1821. Garibaldi nascera em 1807, em Nice – então uma cidade italiana sob domínio francês. Tinha 32 anos.

Revés no Rio Grande

Em outubro de 1839, o revolucionário recebe a incumbência de fazer incursões pelo litoral brasileiro e Anita o segue a bordo da escuna Rio Pardo. Ombro a ombro, ela luta junto a ele e incentiva os soldados. Em combate acirrado, uma bala de canhão atinge a amurada próxima a Anita. Os estilhaços matam dois de seus companheiros, bem ao seu lado. A gritaria é geral e todos procuram erguê-la do chão. Gesto desnecessário: ela se põe sobre seus pés sozinha e, aos brados, convoca os demais a seguir atirando.

Os soldados e Garibaldi imploram para que se recolha ao porão da embarcação, para se recuperar do golpe. “Sim, vou descer, mas para enxotar os poltrões que lá se foram esconder”, teria dito Anita, de acordo com relato do almirante Henrique Boiteux, reproduzido por Paulo Markun em seu livro. Momentos depois, Anita volta do porão com três soldados que haviam se refugiado das balas do inimigo e dos olhares dos companheiros. “Foi nesse combate que Anita começou a construir a reputação de heroísmo e valentia”, diz o autor.

Dias depois, os farrapos voltam a Laguna. Na boca do povo, a história do “rapto pelo pirata italiano”. Um escândalo, uma mulher casada fugindo com um estrangeiro. Mais do que a reputação de Anita, o que está em jogo é o apoio aos farrapos. Nesse momento, não obstante a vitória, está por um fio: apenas três meses depois de serem recebidos como heróis, os catarinenses parecem não querer mais saber deles.

A guerreira no campo de batalha Wikimedia Commons

Duas semanas se passam e vem o contra-ataque dos legalistas. A marinha farroupilha é destruída. Ainda em novembro, Garibaldi e Anita acompanham as tropas de Canabarro em retirada para o Rio Grande do Sul.

No final do mês, a batalha de Curitibanos termina em derrota. Anita é presa, provavelmente já grávida do primeiro filho, e acha que Garibaldi está morto. O coronel Albuquerque, líder dos legalistas, dá permissão para que ela procure pelo corpo entre os mortos no combate.

Revisando o campo de morte até à noite, nada encontra. Decide então fugir em busca do companheiro. E o encontra são e salvo. Uma parte do que restou da tropa, inclusive o casal, segue a coluna de Teixeira Nunes em direção à cidade de Lages, mas não há mais chance para os farrapos em Santa Catarina. Eles voltam para o Rio Grande do Sul e se instalam em São Simão, onde ela permanece durante a gravidez. Dias após o nascimento de Menotti, o primeiro filho, o povoado é atacado por Moringue, capitão imperial que quer se vingar de Garibaldi por uma derrota sofrida anos antes.

Ainda se recuperando do parto, Anita tem energia para fugir a cavalo com o filho nos braços, mata adentro. Acumulando duas fugas no meio da noite.

Trégua no Uruguai

Depois de atravessar o vale do Rio das Antas em direção a São Gabriel (RS), onde está a nova sede dos farroupilhas, Giuseppe percebe que sua participação na Revolução dos brasileiros havia se tornado irrelevante. Em meados de 1841, a família se muda para Montevidéu.

Por um breve período, eles experimentam uma outra vida. A normal. Um pacato Garibaldi sustenta a casa ministrando aulas e trabalhando como corretor de cargas para navios, enquanto Anita vive uma vida de dona de casa.

O casamento oficial foi no dia 26 de março de 1842, tornando o filho legítimo. Ou mais ou menos: o casamento só foi possível porque Anita, já casada no Brasil, declarou-se solteira. O que é crime ainda hoje, a bigamia. Mas então era também um ultraje à moral e aos bons costumes. Como lembra Paulo Markun, “mulheres não podem abandonar maridos, reza a tradição. Já Garibaldi nunca levou pito por ter sido um romântico incurável e um conquistador de territórios e corações”. Quanto ao primeiro marido, não há nenhuma informação sobre seu paradeiro, vivo ou morto. Garibaldi, em suas memórias, mostrou-se incomodado: “Tinha encontrado um tesouro proibido, mas de tal preço!... Se houve uma falta cometida, a responsabilidade só a mim pertence. Se foi uma falta unirem-se dois corações, despedaçando a alma de um inocente”.

Garibaldi e Anita, ferida, fogem de San Marino, 1849 Wikimedia Commons

A calmaria uruguaia não vai longe. Em 1843 Garibaldi é convidado a cooperar com o presidente do país, Fructuoso Rivera, em uma guerra contra o ditador argentino Juan Manuel Rosas. Durante a primeira expedição, Anita frequenta a casa da primeira-dama, dona Bernardina, que se torna sua amiga. Para ajudar na defesa de Montevidéu durante o sítio imposto por Rosas, Garibaldi organiza a Legião Italiana, composta de inúmeros exilados políticos. Essa legião seria a base da luta garibaldina na Europa.

Enquanto vivem no Uruguai, mais três filhos aparecem: Rosita, Teresita e Riccioti. Infelicidade, a primeira faleceria de difteria em 1845, quando o pai estava em campanha na cidade de Salto.

Em nome da Itália

Giuseppe defendeu a causa uruguaia até 1848. Decidiu então voltar suas atenções à sua velha paixão: a unificação italiana, a razão por que havia vindo parar na América do Sul. Em 1834, ele fora condenado à morte por sua participação na organização dos carbonários, que pretendiam transformar todos os reinos da Itália  em uma grande república. Os farroupilhas e uruguaios foram como que um trabalho paralelo no exílio, enquanto não tinha condições para executar sua obra-prima.

Anita vai na frente e chega a Nice – que então havia voltado ao domínio italiano e era chamada Nizza. Era março de 1848. É recebida pela sogra. Garibaldi aporta em junho.

Antes do casal, havia chegado sua fama: o revolucionário tem uma recepção de herói. E escolhe um novo alvo: os austríacos que dominavam parte da Itália.

Anita não tem qualquer intenção de ficar em casa. Em novembro, o casal deixa os filhos com a mãe de Giuseppe e sai para combater os austríacos em Florença. Em fevereiro de 1849 ela segue o general novamente, agora para Rieti, perto de Roma. Até que, enferma, é obrigada a retornar para casa.

Em junho de 1849, Garibaldi se encontra comandando a defesa da República de Roma contra os franceses. Paulo Markun conta que, um dia, comendo pão com queijo com os oficiais no quartel-general de Villa Spada, alguém bateu à porta. O comandante abriu, abraçou quem entrava e disse: “Senhores, temos mais um soldado!” Era Anita, grávida, que havia atravessado a região controlada pelos austríacos.
Os franceses saíram vitoriosos e Roma se rendeu. Garibaldi não aceitou a derrota e partiu em direção a Veneza. Anita foi junto, desta vez vestida como homem para passar despercebida no exército.

O último momento, numa casa de fazenda Wikimedia Commons

Foi sua última viagem. A heroína seria abatida por uma enfermidade ainda comum na Europa: a malária. A gravidez, as cavalgadas, a má alimentação e as noites ao relento minaram sua saúde e tornaram impossível resistir. Ao chegar à República de São Marino, ardia em febre. 
Ainda assim, não parou. Em 1º de agosto, ao chegarem a Cesenatico, no litoral do Mar Adriático, tomaram barcos para alcançar mais rápido Veneza, mas foram perseguidos por uma esquadra austríaca. Desembarcaram numa praia deserta. A essa altura, ela estava sendo carregada. Dois dias depois um médico os esperava em uma fazenda em Mandriole, perto de Ravena.

Tarde demais. Na noite do dia 4 Anita pereceu, aos 27 anos. Garibaldi, arrasado, não assistiu ao enterro. E saiu às pressas para escapar dos austríacos em seu encalço.

O cadáver foi enterrado às pressas na areia do Adriático. Dias depois, uma menina que brincava com os irmãos na praia encontrou um braço para fora da sepultura. Era o que restava de Anita. Desde 1932, seu corpo repousa num monumento em Roma. Heroína de dois países.