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Matérias / Guerra Fria

Lenin, o humano: Como sua vida e personalidade levaram ao totalitarismo soviético

Em grande biografia pós-Guerra Fria, historiador defende que a pessoa do líder soviético fez toda a diferença. Lenin deixou um país criado à sua imagem e semelhança

Redação Publicado em 22/04/2020, às 09h40 - Atualizado às 09h41

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Lenin em imagem colorizada - Divulgação/Klimbim
Lenin em imagem colorizada - Divulgação/Klimbim

Do mito Lenin muito foi falado. Para seus seguidores, espécie de messias ateu, aquele que veio ao mundo para, como em suas milhares de estátuas ainda em pé mostram, apontar o futuro. Para os detratores, um maníaco sociopata, ligeiramente melhor que Stalin. A Vladimir Ilich Ulyanov, a vida que moveu o mito, pouca atenção foi dada.

“Foram feitas biografias excelentes antes, mas nenhuma por cerca de 20 anos antes de eu começar a minha”, afirma o jornalista e historiador húngaro-britânico Victor Sebestyen. “Mas a maioria delas tomou um lado ou outro na Guerra Fria ideológica. O que eu tentei fazer foi chegar à raiz do que foi Lenin, o Homem, não a Ideia.”

Sebestyen é autor de Lênin – Uma História Íntima. A tese central de seu livro é que o indivíduo Vladmir Ulyanov, ao recriar o marxismo revolucionário, passou a ele suas características pessoais. E que essas características, transmutadas em doutrina, levaram a um regime que matou até 60 milhões de pessoas – numa das estatísticas mais disputadas da historiografia recente (o mínimo são 2,9 milhões, os números oficiais de execuções, mortes nos gulags e migrações forçadas. Na média, os historiadores falam em 20 milhões – cerca de o dobro de Hitler).

O grande herege

Karl Marx, que morreu em 1883, quando Lenin tinha 12 anos, havia deixado em seus livros a ideia de uma revolução sem líderes, no capitalismo avançado, conduzida pelo proletariado. A próxima – e inevitável – fase da História. Lenin rasgaria essa parte da teoria, fazendo a revolução acontecer, pelas mãos de um partido gerido por um intelectual de classe média alta – ele. Afirmou que proletários, deixados a si mesmos, desenvolviam apenas uma consciência sindical. E o fez numa monarquia absolutista retrógrada, tudo menos o país capitalista mais avançado.

Lenin era um ‘herege’ – ou ‘desviante’”, diz Sebestien. “Ele virou o Marxismo de ponta-cabeça quando serviu a ele taticamente – e então dizia que o que ele pensava era o que Marx realmente queria.” 

Sebestyen faz questão de notar que é uma enorme ironia da História que o maior marxista de todos seja também uma prova de que Marx estava errado em um ponto central. Ainda que o contexto histórico, as “condições materiais”, como Marx definia, sejam obviamente fundamentais, que ninguém faça as coisas sozinho, também não é possível entender a História sem indivíduos. “A revolução de Lenin definitivamente falsificou a ideia de que a História era movida somente por amplas forças sociais e econômicas”, afirma Sebestyen. “Sem Lenin, e sem Lenin estando em Petrogrado na hora certa, outubro de 1917, não haveria Revolução Russa.”

Lenin criança / Crédito: Wikimedia Commons

Lenin, não é difícil argumentar, foi o mais influente indivíduo da era entre 1917 e 1991, o que Eric Hobsbawn chamou de Curto Século 20. Não só em países regidos por comunistas mas também os muito pelo contrário. “A maior parte da História após 1917 foi uma reação a Lenin – não haveria Mussolini, nem Hitler, nem Stalin, nem Guerra Fria sem ele”, diz o autor.

Falando em ditadores, o título original da biografia é Lenin The Dictator. Talvez os editores nacionais achassem que o mercado para um livro sobre Lenin estava só entre leninistas. Mas essa é outra parte absolutamente fundamental na interpretação de Sebestyen. Lenin era um ditador nato – bem antes do poder, em sua personalidade competitiva, obstinada, irascível. “Lenin era ditatorial no comando dos bolcheviques. Não aceitava qualquer oposição e sua intolerância era clara desde o começo. Era um ditador.”

E uma coisa que, quase certamente, não era: um sociopata. “Lenin se considerava um idealista”, afirma. “Não era um monstro, sádico ou depravado. Podia rir – até, ocasionalmente, de si próprio. Não era cruel: diferente de Stalin, Mao ou Hitler, jamais pedia detalhes da morte de suas vítimas, saboreando o momento.”
Quem ele era então?

Um asceta

Vladimir Ilich Ulyanov nasceu e cresceu numa bucólica Simbrsk, 705 quilômetros a sudeste de Moscou. Se hoje ela é um centro industrial com 600 mil habitantes, em 1870 ela tinha tinha cerca de 30 mil.

Seu pai, Ilya Ulyanov, era um educador – o inspetor das escolas públicas da região. Homem de opiniões liberais, acreditava na educação universal, num tempo em que ministros do czar chegaram a defender que os pobres só mereciam educação básica; e mulheres, nenhuma. Sua mãe era uma kalmyk, etnia da Rússia oriental, com o aspecto típico do Leste Asiático.

Por toda a vida, quem conheceu Lenin mencionou como seus olhos pareciam asiáticos – o que tem um lugar desprivilegiado na cultura de uma Rússia em que a família real se esforçava para que seu país, com 75% de sua área na Ásia, fosse identificado como fundamentalmente europeu.

A mãe de Lenin, Maria Aleksandrovna Blank, era de uma família de classe média de São Petersburgo. O pai dela era um médico judeu convertido ao cristianismo; a mãe, uma luterana filha de suecos e alemães. Foi criada como luterana, mas, pouco religiosa, deixou Ilya educar as crianças como ortodoxos.

Lenin era, assim, como lembraram os nazistas toda vez que denunciavam o comunismo soviético como conspiração judaica, 1/4 judeu (e 1/4 asiático). As autoridades soviéticas também não pareciam muito satisfeitas com isso. “Os soviéticos sempre esconderam dados sobre seus avós”, afirma Sebestyen. “Julgavam que eles não se encaixavam perfeitamente na imagem oficial, polida com cuidado, que precisava ser a de um Grande Russo, de cima a baixo.”

Lenin, porém, não pareceu ter sofrido além de comentários. Sua família era parte da dvoryanstvo, a nobreza russa, que consistia, em 1917, em cerca de 1,1% da população. Num país em que judeus eram vítimas constantes de pogroms, ele não podia estar mais longe do judaísmo. De suas origens humildes, Ilya ganhara o título de nobreza por seus serviços prestados. Seu filho, toda vez que confrontado pela polícia czarista, brandiria seus privilégios como nobre.

Rapidamente, Vladimir se revelaria um garoto-prodígio. Era um leitor extremamente voraz, estudante ultradedicado, que corria alegremente pela casa gritando as notas de seu boletim gabaritado. “A disciplina era rigorosa na escola, mas Vladimir raramente se queixava ou revelava qualquer vestígio de espírito rebelde”, afirma Sebestyen. “Era extremamente inteligente e fazia questão que todos soubessem disso.” Sua única diversão parecia ser o xadrez, vencendo batalhas com múltiplos oponentes. Terminaria por ganhar uma medalha como o aluno número 1 de toda a escola.

E aqui já se revelava uma característica que, Sebestyan aponta, seria herdada pelo leninismo: seu ascetismo, a falta de interesse por distrações, seu foco exclusivo na missão. Críticos dos regimes comunistas não cansavam de lembrar da escassez e falta de qualidade de produtos de consumo. Lenin não bebia, não fumava, comia qualquer coisa que sua mulher pusesse em frente a ele e morou, a vida toda, nas condições mais simples possíveis – chegando a usar caixas de papelão como móveis. 

Dessa infância bucólica, o futuro Lenin levaria o mais próximo de distração que teve: um gosto por se refugiar na natureza. Por toda a sua vida, quando terminava esgotado por trabalho ou por suas homéricas crises de raiva, sofrendo enxaquecas e insônia que anunciavam sua doença final, refugiava-se no campo, nas montanhas, nas florestas, em qualquer país em que estivesse. Uma parte mais inofensiva de seu legado. No período soviético, as dachas, casas de campo, que antes eram dadas pelo czar aos nobres, foram um privilégio concedido a membros da elite do Partido.

Um nobre caído

A tragédia atingiu a família Ulyanov em 1886.  Era 12 de janeiro quando o pai, Ilya, não se juntou à família para o almoço. Dissera que não estava se sentindo bem. Após a refeição, foi achado no sofá, tremendo. Morreu antes que o médico chegasse. Tinha 54 anos – seu filho ficaria a um ano de chegar à mesma idade.

“A morte de Ilya foi um sério golpe para a família”, afirma Sebestien. “Entretanto, logo um outro, mais sério, desabaria sobre seus filhos.” Menos de um ano depois, em 1887, uma literal bomba mudaria seu caminho de vez. Seu irmão mais velho, Aleksandr, estudante da Universidade de São Petersburgo, havia tentado assassinar o czar.

Aleksandr Ulyanov havia se envolvido com um grupo clandestino de socialistas radicais, que chamava a si mesmo de Narodnaya Volya (“Vontade do Povo”). Era uma tentativa de criar uma nova encarnação de um grupo anterior, que, num atentado a bomba, executara o czar Alexandre II, em 1881.

O plano era simples: fazer exatamente o mesmo, no exato sexto aniversário da ação. Assassinar o sucessor, o czar Alexandre III, com uma bomba, feita pelo próprio Ulyanov. Foi um fiasco: no dia da ação, horas antes, acabou preso na rua, carregando um revólver com o qual não sabia atirar. A Okhrana, a polícia secreta do czar, havia pegado um de seus coconspiradores, que revelara tudo. Aleksandr confessou tudo, como o autor principal.

As cartas desesperadas de Maria Aleksandrovna foram em vão. O czar perdoou a maioria dos envolvidos, mas não cinco figuras-chave, e Aleksandr era uma delas. Em 8 de maio de 1887, seu corpo balançou no patíbulo da Fortaleza Pedro e Paulo, em São Petersburgo.

A família inteira pagaria pelo filho rebelde. “Os Ulyanov foram isolados pela camada burguesa de Symbirsk”, registra Sebestyen. “Todos os dignatários da cidade, que um ano antes haviam comparecido ao funeral do pai de Vladimir, nunca mais visitaram a família. Isso provocou-lhe um ódio vitriólico, por vezes incontrolável, pelos liberais e os ‘bonzinhos de classe média’, que, dali por diante, alimentaria até seus dias finais.”

O futuro do nobre aluno-modelo, filho do cidadão-modelo, fora comprometido. “Vladimir passou a ser então um homem marcado – suspeito de ligação com o irmão e potencial criador de casos”, afirma Sebestyen. Ele passou a ler, pela primeira vez, literatura política, das coleções do próprio irmão.

Devido à perseguição, a entrada do aluno-modelo foi rejeitada na Universidade de São Petersburgo. Lenin teve de se contentar com a distante Universidade de Kazan, no Tatarstão, 715 quilômetros a leste de Moscou. E, ainda assim, só com muita insistência, muitas menções à nobreza da família e a ação dos contatos que ainda não haviam traído os Ulyanov.

Entrando em agosto de 1887, ficaria menos de cinco meses. Em dezembro se envolveu em protestos e, sendo irmão do regicida, foi expulso. Ele conseguiria – de novo, por muita insistência e carteirada da mãe – um diploma da Universidade de São Petersburgo em 1890, sem nunca pisar nela. Maria conseguiu que ele pudesse prestar as provas para o curso de direito, e Lenin, estudando por conta, passou sem falhas.

Lenin se estabeleceu em São Petersburgo em 1893, trabalhando como advogado. Lá, se filiou aos sociais-democratas, que, apesar do nome, era um grupo marxista revolucionário. Seus maiores adversários eram os populistas – os narodnikis, que acreditavam ser possível uma revolução rural, e não do proletariado urbano.

Seu primeiro livro, de 1894, foi Quem São os Amigos do Povo e como Enfrentam os Sociais-Democratas, um panfleto antinarodniki. Sua principal oposição era a de atos terroristas individuais, meras sensações que acabavam por levar à apatia.

Em dezembro de 1895, Lenin aparece ao lado de seu futuro arquirrival, o chefe dos mencheviques Julius Martov / Reprodução
Em dezembro de 1895, Lenin aparece ao lado de seu futuro arquirrival, o chefe dos mencheviques Julius Martov / Crédito: Reprodução 

Então começou a ganhar fama como um debatedor implacável, algo de seu estilo pessoal que definitivamente também entraria para o caráter do regime e de seus seguidores. “Era um homem com quem se tornara difícil manter discussão contrária, como amigos e críticos reconheceram”, afirma Sebestyen. “Desde seus primeiros dias nos salões de dissidentes em São Petersburgo, Vladimir aprimorou um método que o marcou como diferente de outros agitadores”, afirma o autor. “Quase sozinho, mudou o discurso da esquerda revolucionária, que passou a seguir seu padrão agressivo e rude. Por gerações do mundo comunista, invectivas abrasivas e ataques caracterizaram os debates entre os camaradas.”

Era um método. O próprio Lenin afirmou que seu estilo era “calculado para provocar ódio, aversão, desdém, não para convencer, não para corrigir erros do interlocutor, mas para varrê-lo e sua organização da face da Terra”.

Foi nessa época que ele conheceu Nadezhda (Nadya) Krupskaya, uma então professora primária, filha de uma família de classe alta, envolvida na atividade subversiva. Nadya compartilhava de seu espírito radical e ascético. E compartilharia a cama.

Um puritano

Em 1897, enquanto tentava contrabandear literatura revolucionária impressa na Alemanha para dentro da Rússia, caiu nas garras da Okhrana. Para sua sorte, sem ter se envolvido em ações violentas, foi considerado de baixa periculosidade. Ganhou um exílio do tipo brando, em Shushenskoye, sul da Sibéria, trabalhando como lenhador e com pleno tempo para estudar, escrever e até se comunicar com outros marxistas.

No exílio, ele escreveu O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, outro ataque aos populistas, que lhe daria fama como um sério teórico marxista. Nadya pôde até mesmo se juntar a ele. Eles se casaram numa igreja rural em 10 de julho de 1898.

Segundo Sebestyen, a maior surpresa ao pesquisar sobre Lenin foi sua relação com as mulheres. Está, literalmente, no primeiro parágrafo do primeiro capítulo: “As relações mais importantes da vida de Lenin foram com mulheres. Houve poucos amigos homens e, quase sem exceção, ele os perdeu ou foram deixados no caminho pela política que fez”.

E esse é um ponto em que ele vai contrário tanto à historiografia soviética quanto de oposição. “Quase sempre as mulheres de Lenin eram descartadas como empregadas que cuidavam da casa para ele e tinham permissão para realizar tarefas políticas relativamente simples e triviais. Nada mais enganador.”

Lenin viveu a maior parte de sua vida adulta, o período do exílio, com a mulher, a sogra e suas irmãs. Nadya se tornou uma revolucionária profissional, teórica marxista e receberia de Lenin duas missões fundamentais da Revolução: a de dar a ordem da revolução, por uma carta mandada exclusivamente a ela “e ninguém mais”. E a de assegurar sua sucessão, divulgando seu testamento.

Outro ponto em que Lenin dependeu das mulheres: financiamento. “A vida do revolucionário profissional podia ser precária, e às vezes faltavam-lhe até trocados; já bem entrado nos 40 anos, Lenin não teria sobrevivido sem a assistência da mãe.”

Para sua época, tinha ideias avançadas. Ao menos, tendia a levar suas camaradas a sério quando muitos membros do partido não o faziam. Mas era um tanto limitado nisso. “Ele esperava que as mulheres ao seu redor o paparicassem, mimassem e cuidassem dele – o que elas faziam”, afirma Sebestyen. “Mas Lenin as levava tão a sério em questões políticas quanto os homens.”

Suas ideias não iam muito além dessa igualdade formal, sem realmente se importar com questões específicas das mulheres. Em seu exílio, na fase de Paris, 1908, Lenin acabaria por encontrar uma segunda companheira, tão comprometida com política quanto Nadya: Inessa Arand. 

E seu caso explica bem suas limitações enquanto “feminista”. Não só ele não pareceu tocado pela profunda depressão que acometeu Nadya ao perceber claramente o que acontecia como uma de suas maiores rixas com Inessa, anos depois, em 1915, foi na questão do amor livre – tema caro às feministas de então.

Stalin, Lenin e Mikhail Kalinin, 1919. Kalinin seria nominalmente o chefe de Estado da União Soviética até sua morte, em 1946 / Crédito: Reprodução 

Ele rechaçou ferozmente a defesa feita por Inessa, num panfleto que ela pretendia publicar. “A demanda por amor livre, disse-lhe ele com dogmatismo, era politicamente incorreta – um conceito burguês, não proletário”, afirma Sebestyen. “Ademais, uma ‘autocentrada e imoral busca pelo amor a qualquer custo’ resultaria em promiscuidade e adultério.” 
Era uma enorme hipocrisia de alguém falando com a própria amante, e Lenin continuou como se fosse um mero debate acadêmico. Inessa acabaria por se afastar temporariamente e, num caso raro para alguém que perseguia qualquer diferença de opinião até sua vitória, concordaram em discordar.

Ao final das contas, a União Soviética seria o lugar onde mulheres trabalhariam em serviços pesados, serviriam como atiradoras de elite e pilotos, e iriam ao espaço décadas antes dos EUA – Valentina Tereshkova voou em 16 de junho de 1963, exatos 20 anos e dois dias antes de Sally Ride. E também onde nem chegariam perto das posições de liderança. Após a morte de Lenin, Nadya foi rapidamente botada para escanteio.

Um provocador

Durante o exílio de Lenin na Sibéria, que acabou em 1900, os marxistas russos haviam se organizado, criando o Partido Social-Democrata Trabalhista Russo. Ele se filiaria e começaria os preparativos para criar o Iskra (Искра, faísca), o jornal oficial (e clandestino) do Partido. Como não seria possível organizar algo assim de dentro da Rússia, partiu para a Alemanha para atuar de fora.

Seriam 17 anos de exílio, com um retorno muito breve em 1905. Nesse tempo, Lenin pulou de cidade em cidade, escrevendo muito, brigando muito, e fugindo para o campo para tratar de seus nervos, cada vez que o estresse fazia com que fosse acometido por uma nova crise de enxaqueca e insônia. E, como já falamos, conhecendo Inessa Armand.

Em 1901, no Iskra, pela primeira vez usou o pseudônimo Lenin. Em verdade, N. Lenin. A inicial nunca foi explicada e ninguém sabe de onde ele tirou qualquer parte do nome – a história do Rio Lena, na Sibéria, é descartada por Sebestyen. “Ele nunca explicou a origem, nem Nadya admitiu ter a menor noção.”

Com esse nome, ele publicaria seu primeiro grande desvio da ortodoxia marxista: Que Fazer?,  de 1902. Nele, o revolucionário se distanciou radicalmente de Marx, traçando seu plano de revolução guiada por um partido. Esse partido deveria agir como um front único. Uma vez que algo fosse decidido, cabia a todos adotar a posição sem qualquer dissenso. Era a ideia do “centralismo democrático” – em nome da qual marxistas soviéticos exterminariam em massa outros marxistas soviéticos. E que diz algo sobre alguém que não lidava bem com dissenso. 

Não faltou quem apontasse as heresias de Lenin. “Ele costumava dizer que ‘teoria é um guia, não a Palavra Sagrada’”, afirma o autor. “Mas, é claro, mais tarde, sob Stalin e seus sucessores, isso foi o que o pensamento de Lenin se tornou: Palavra Sagrada.” 

O Partido Social-Democrata não seria o partido de vanguarda. No 2oº Congresso do PSDTR, em Londres, 1903, Lenin praticamente forçou a sua divisão em duas alas. A razão parecia irrelevante: o colega Julius Martov queria incluir no estatuto do partido que um membro era alguém que “aceita o programa do partido, dá seu suporte financeiro e dá sua assistência pessoal sob a direção de uma de suas organizações”. Para Lenin, a definição seria: “Aceita o programa do partido, dá seu suporte tanto financeiro quanto pessoal, pela participação em uma de suas organizações”.

Parece algo mínimo, mas o que Lenin queria dizer é que todos os membros do partido deviam ter um trabalho no partido. Nada de meros voluntários, simpatizantes – era, afinal o partido de vanguarda dos revolucionários em tempo integral. Martov queria um partido tradicional, aceitando filiados com outros interesses.

Lenin perdeu esse voto. Mas ganhou a batalha pelo nome. Sua facção seria a partir daí conhecida como os bolcheviques (большевик, membros da maioria). Não porque fossem realmente maioria, mas porque, em uma votação anterior, sobre a direção do Iskra, ganharam a maioria dos votos. Os aliados de Martov seriam os mencheviques (меньшевики, membros da minoria). Tolamente, os mencheviques, ainda que fossem muito mais numerosos que os bolcheviques,  se resignariam a esse nome.

Como o racha, Lenin ganhou o que queria: um partido apenas com radicais, que aceitava sua ideia de centralismo democrático. E Lenin, dotado da já citada capacidade de rebaixar seus oponentes em debate, nunca perdia um voto que fizesse questão de não perder.

Um general de poltrona

Em 1905, Lenin achou que havia chegado a hora. Por conta da penúria e humilhação causada pelas seguidas derrotas na Guerra Russo-Japonesa – a primeira vez em tempos modernos em que um país europeu terminaria derrotado por um asiático –, uma grande revolta começou em São Petersburgo. Um padre ortodoxo, Georgy Gapon, conduziu um protesto em direção ao Palácio de Inverno, para entregar uma petição ao czar.

Carregavam cartazes com a foto do czar Nicolau II. Sob ordens dele, a polícia abriu fogo, furando sua própria imagem – uma ótima metáfora para o que ele havia acabado de provocar. O Sábado Sangrento, no qual morreram até 234 pessoas, marcou o fim de qualquer chance do fraco Nicolau II ter real apoio popular.

A Revolução de 1905 pararia o país por meses. De seu escritório em Genebra, Lenin exortava os bolcheviques a participar. Pediu que criassem unidades com “fuzis, revólveres, bombas, facões, socos-ingleses, panos encharcados por gasolina, cordas e escadas de cordas, pás para construção de barricadas, bananas de dinamite, arame farpado, estrepes [objetos feitos para furar os cascos dos cavalos]”. A longa lista, típica de “um jornalista, general de poltrona”, segundo Sebestyen, mostra não só a tendência de ordenar casualmente a violência como também uma obsessão por micromanagement, isto é, dar ordens sobre coisas irrelevantes, delegando muito menos que devia.

No fim das contas, essa não foi a vez deles. Apesar da historiografia soviética ter reescrito a posição dos bolcheviques como central nos eventos de 1905, “os bolcheviques ficaram bem à retaguarda da oposição, como se postos lá por acaso”, diz Sebestyen. Lenin chegou a voltar para a Rússia em novembro, mas a constante observação da Okhrana tornou seu trabalho impossível.

Em meio a isso, passou por um dos episódios definitivamente mais censurados da história soviética. O relato foi de Tatiana Alexinsky, esposa de um dos bolcheviques de São Petersburgo. No verão de 1906, Lenin estava num protesto que foi atacado pela cavalaria de uma milícia paramilitar a favor do czar.

“Quando alguém na multidão, ao avistar alguns cavalarianos, berrou ‘Cossacos!’, Lenin foi o primeiro a correr. Saltou sobre uma barreira. O boné caiu-lhe da cabeça, revelando sua calva suando e brilhante. [Lenin] Caiu, levantou-se e continuou correndo. Fiquei com uma sensação estranha. Entendi que nada mais havia a fazer para nós.”

 “Como sempre, onde havia violência, Lenin não estava”, diz Sebestyen.

Um populista

Lenin voltou ao exílio em 1907. O mundo caminhava rapidamente para o abismo. Quando a Grande Guerra estourou, em 1914, estava morando na Polônia, parte do Império Austro-Húngaro, e rapidamente se mudou para a neutra Suíça.

Lenin faria muitos inimigos durante a Grande Guerra. Os partidos socialistas dos países envolvidos decidiram apoiar a decisão de seus governos em ir para a guerra. Para Lenin, apoiar o “conflito imperialista” era a mais vil traição dos ideais. Por meio de seus escritos, ele passou a guerra vituperando esses supostos aliados, isolando ainda mais sua facção.

No começo de 1917, a Rússia estava no chão. A guerra havia sido um desastre e o país se encontrava numa penúria pior que a de 12 anos antes. Em 8 de março, Petrogrado se incendiou novamente. Três dias depois, o czar abdicou. A Rússia se tornava uma república.

Frágil república, que cometeu o letal erro de não terminar a guerra – e, como Sebestyen notou, poderia até seu último instante ter evitado seu fim simplesmente decidindo por anunciar a paz.

Acertadamente, Lenin percebeu a oportunidade perfeita. A república não duraria. Ele precisava voltar para a Rússia. E, para isso, necessitou de uma mão do inimigo: através do marxista russo Alexander Parvus, figura que ele considerava corrupta até a medula, e da qual havia rejeitado a ajuda financeira múltiplas vezes, Lenin conseguiu um acordo com o governo da Alemanha. Parvus garantira aos alemães que Lenin desestabilizaria a Rússia, levando ao fim da guerra. Um investimento certeiro. Lenin retornaria o favor com o assumidamente vergonhoso Tratado de Brest-Livotsk, em 3 de março de 1918, fazendo imensas concessões pela paz.

Lenin fazendo discurso no primeiro aniversário da fundação do Exército Vermelho, 25 de maio de 1919 / Crédito: Reprodução 

Lenin pisou de volta na Rússia, descendo na Estação Finlândia de São Petersburgo, em 11 de abril de 1917. Foi ovacionado na recepção. E sua ação nesses meses foi fundamental para o que viria. “Se existe algo que contraria a ideia marxista de que não são indivíduos que fazem a história, e sim amplas forças sociais e econômicas, é a revolução de Lenin”, afirma Sebestyen. “Ele arrastou seus relutantes e temerosos camaradas para uma insurreição que a maioria deles não desejava.”

Lenin arregimentou novos bolcheviques a baldadas com seus discursos. Que, calculadamente, eram completamente disparatados: “Ele adotou um estilo altamente populista. Oferecia soluções simples para problemas complexos. Mentia descaradamente”.

Em outubro, o governo se mantinha por um fio. São Petersburgo era puro caos. Era chegada a hora do que foi, basicamente, um golpe militar – e Lenin, discordando da posição do partido, fez questão que fosse golpe, e não uma tomada pelas eleições próximas, ao menos um voto no soviete, a organização dos trabalhadores.

Na noite de 25 para 26 de outubro, a Guarda Vermelha, trabalhadores armados pelos bolcheviques, tomaram o Palácio de Inverno, sem qualquer resistência. Estava no poder o líder que rejeitara quaisquer concessões ou alianças, que apregoara o terror como ferramenta, que decidira que a revolução deveria ser já. Era a hora de demonstrar a que vinha a ditadura do “proletariado”.


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