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Matérias / Religião

A Inquisição contra as religiões africanas no Brasil Colônia

Centenas de praticantes foram condenados; até tocar tambor era motivo para se ser acusado de bruxaria

Felipe Branco Cruz Publicado em 19/01/2019, às 08h00

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Esculturas de Orixás no Pelourinho, Salvador - Getty Images
Esculturas de Orixás no Pelourinho, Salvador - Getty Images

No século 18, a economia de São Paulo dependia da lavoura e do plantio da cana-de-açúcar. O Brasil ainda era colônia de Portugal e a Inquisição voltava a ganhar força na metrópole europeia. Estima-se que nesse período pouco mais de 9 mil pessoas viviam na cidade. No Norte e no Nordeste do Brasil, os padres a serviço do Tribunal do Santo Ofício reapareceram. Mas na longínqua São Paulo a prática não era comum. Foi somente depois de 1745, quando tornou-se sede de um bispado, separando-se da diocese do Rio de Janeiro, que os inquisidores voltaram seus olhos para a pequena cidade do sudeste do país.

A inquisição em São Paulo, e de maneira geral em todo o Brasil, confundiu sistematicamente os rituais africanos com feitiçaria – e processou centenas, no que podia terminar na fogueira, ou o garrote, depois a fogueira, ou a perda de todos os bens - o que não era opção em se tratando de escravos. As vítimas não eram executadas aqui, pois a colônia não tinha tribunais eclesiásticos específicos, e os condenado seriam enviados para ser julgados e mortos em Portugal. Não existe em São Paulo o resultado final dos processos, então essa parte ainda está a ser desvendada. Sabe-se que dezenas de brasileiros foram queimados vivos, mas esses casos bem-documentados são principalmente de brancos acusados de judaísmo. Escravos não tinham existência jurídica como indivíduos, só propriedade.

Nos arquivos brasileiros, descobrimos gente como a escrava Paschoa, que viveu em São Paulo após ter sido vendida no Rio de Janeiro para uma família paulista. O ano era 1749 e Paschoa ficava dentro de casa cuidando da família Leyte Ribeiro, de sete pessoas. Após sua chegada, os senhores começaram a adoecer, e cinco membros da família morreram. Sobre a escrava pesou a acusação de bruxaria, principalmente depois de descobrirem ossos de galinha dentro de uma panela enterrados no quintal e também outros, escondidos dentro da parede e debaixo da cama de um dos filhos da família. Paschoa foi julgada e considerada culpada por bruxaria pela Inquisição. Sua história, por causa disso, ficou registrada em um processo e está há 265 anos arquivada na Cúria Metropolitana da Arquidiocese de São Paulo. Se não fosse assim, dificilmente a sua vida seria conhecida, e Paschoa seria apenas mais uma escrava que viveu e morreu no Brasil do século 18 sem deixar registro.

Ossos de galinha

Bastante castigados, alguns dos processos da Inquisição em São Paulo estão protegidos por uma camada de papel-arroz que conserva os documentos e impede que se desmanchem ao serem manuseados. Todas as 1 550 páginas de processos abertos entre 1739 e 1771 sobre bruxaria foram fotografados e transcritos por pesquisadores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Paschoa foi considerada culpada e provavelmente levada a Portugal, onde pode ter sido executada. Entre as declarações das testemunhas de acusação, boa parte foi composta de “ouvi dizer”, “acho que”, “disseram”... Alguns acusaram a escrava – sem provas – de ter assassinado várias pessoas no Rio de Janeiro, o que levou os juízes a concluir que a “ré usou de magia para matar gente”. O relato de Paschoa para sua senhora dizia o contrário: os ossos de galinha teriam sido colocados lá pela escrava “porque lhe tinham ensinado” e “que prometia que agora logo havia de sarar”.

Esculturas dos orixás por Carybe, Museu Afro-Brasileiro, Salvador Wikimedia Commons

Arquivados na Cúria, os processos corriam na Justiça Eclesiástica, órgão a serviço da Inquisição, que condenava as pessoas por motivos como heresia (afronta à religião), apostasia (renegar a fé), bruxaria (na época, qualquer ato contrário à fé católica), judaísmo, homossexualidade, sodomia, vida marital sem casamento, entre outras razões.

Bruxaria 

Em São Paulo, onde a Inquisição não chegou a marcar presença como no Nordeste, os principais alvos eram os praticantes de ritos vistos como feitiçaria. Não, não era a bruxaria da Idade Média, com caldeirões e velhas assustadoras. De acordo com a equipe da USP, os órgãos da Justiça Eclesiástica consideravam bruxaria as práticas das religiões africanas ou outros ritos que iam contra a fé católica. “Eles não entendiam ou não aceitavam outras religiões que não fosse a católica”, diz Nathalia Reis Fernandes, uma das pesquisadoras. 

Embora a maioria dos acusados tenha sido considerada culpada na investigação preliminar que era realizada pela Justiça Eclesiástica, não se sabe o fim dos réus. Ao contrário do que ocorria, por exemplo, na América Espanhola, não havia Tribunal do Santo Ofício no Brasil. “Não sabemos o que ocorreu com os condenados. A maioria dos documentos está guardada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa”, afirma Helena de Oliveira, da USP. No edifício estão registrados 40 mil nomes de pessoas perseguidas, mas sem classificações por local de nascimento, o que dificulta a identificação.

Patuás

Outra dificuldade em localizar esses arquivos em Portugal ocorre porque os escravos eram registrados, na maioria das vezes, apenas pelo primeiro nome. “Como eram considerados mercadorias, não possuíam nome de família”, diz Helena. Um dos processos mais completos encontrados pelas pesquisadoras é o do ex-escravo Pascoal José de Moura, de 1765, que vivia em Araritaguaba, atual Porto Feliz, a 100 km de São Paulo. O homem foi condenado porque produzia patuás para proteção. Os objetos eram uma espécie de amuleto com orações usadas para proteger da morte e do perigo quem os carregasse. “Ainda há uma grande névoa sobre como a Inquisição atuou em São Paulo”, diz Nathalia. “O fato é que Pascoal, negro, livre e alfabetizado, era um exemplo atípico na sociedade”, diz ela.

Escravos desembarcando em Cais do Valongo Wikimedia Commons

De acordo com as pesquisadoras, algumas testemunhas afirmaram que Pascoal não fazia mal a ninguém e que carregava os objetos para a própria proteção ou para ajudar outras pessoas. Mesmo assim, foi condenado e provavelmente enviado a Portugal, onde o desfecho do processo ainda é desconhecido. Nathalia destaca que uma das partes mais interessantes do processo são as próprias orações transcritas nos autos, que revelam um pouco da crença do período.

“Trata-se de um tipo de mentalidade medieval. Esses patuás vinham no formato de escapulários. É um costume que está aí até hoje. Na Idade Média havia a crença de que a simples presença de determinada imagem ou objeto já era suficiente para que a proteção se efetivasse”, diz Nathalia. O texto encontrado nos patuás de Pascoal é praticamente idêntico à oração para São Jorge, rezada até hoje pelos devotos do santo católico. 

Outros casos

Mas não só escravos ou ex-escravos eram processados pela Inquisição. Outro caso analisado pelas pesquisadoras, de 1771, é o de Leonor de Siqueira e sua filha Anna Francisca. As duas foram acusadas de fazer feitiçarias para transformar o marido de Anna, Manoel José Barreto, em “pateta”. “Era como se ela estivesse fazendo ‘feitiços’ para o marido, porém o motivo é desconhecido”, diz Helena. Infelizmente, esse processo é um dos mais deteriorados e poucas informações sobre ele puderam ser recuperadas. 

Em outros casos, manifestações típicas das religiões e da cultura africana eram confundidas com feitiçaria como, por exemplo, a do “povo do batuque”. Quatro pessoas foram flagradas por soldados após alguém denunciar ter ouvido em uma casa abandonada “batuques ilícitos”. Quando os soldados chegaram ao local, encontraram um casco de cágado, patas de bode e uma cabra. Além de algumas misturas com ervas que as testemunhas não sabiam para que serviam.

“Hoje em dia, batucada não é estranho. Faz parte da nossa cultura. Porém imagine para um descendente de português católico fervoroso que vê uma pata de bode? Para ele só há uma explicação: é coisa do demônio. Tudo que eles não entendiam era uma coisa ruim”, afirma Nathalia. “É possível fazer um paralelo com a nossa sociedade atual”, diz o professor Marcelo Módolo, que orienta as duas pesquisadoras da USP. “Hoje, quando alguém vê algo que não entende e aponta aquilo, julgando de maneira preconceituosa, dizendo que é macumba, cai no mesmo erro dos portugueses do passado”, diz. “A Igreja ainda se considera a intermediária entre Deus e os homens e não permite concorrência. Se alguém fizesse uma simpatia e ela funcionasse, como ficaria a moral dos católicos?”



Saiba mais

O Diabo e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e Religiosidade Popular no Brasil Colonial, Laura Mello e Souza,1986
Arquivos da Cúria mostram reflexos da Inquisição no Brasil do século 18, Pesquisa USP