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Matérias / Religião

Celibato na Igreja Católica: Um tabu através dos séculos

Defendido pelos primeiros cristãos, o celibato prevalece entre os padres católicos desde o século 12 – e é quase inexistente entre protestantes. Mas, mesmo com ele, nem papas escaparam de escândalos sexuais

Reinaldo José Lopes Publicado em 10/02/2019, às 12h00

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O celibato prevalece entre os padres católicos - Getty Images
O celibato prevalece entre os padres católicos - Getty Images

Jesus usava metáforas enigmáticas em sua pregação com maestria, mas poucas são tão desconcertantes quanto esta no Evangelho de Mateus: "(...) Há eunucos que a si mesmos se fizeram eunucos por amor do Reino dos Céus. Quem puder compreender, compreenda". Escrita entre os anos 80 e 90, a passagem passou a ser interpretada como um chamado à vida celibatária: os "eunucos" seriam os que, por vontade própria, deixam de lado a vida sexual por devoção a Deus. Era apenas o início de séculos de conflito envolvendo a Igreja Católica e a sexualidade de seus representantes.

A opção pela castidade custou a vingar como uma norma generalizada no clero. Mesmo à medida que as regras se tornavam mais duras, sobravam contradições. E contravenções. Inclusive no Vaticano. Até o século 13, a eleição de papas casados era comum. Esperava-se deles, apesar do matrimônio, a abstinência. Mas o fato é que muitos - solteiros, casados ou viúvos - não foram exatamente castos após a opção pela vida religiosa. Há uma notória coleção de filhos ilegítimos (nem por isso menos mimados) que, inclusive, viraram pontífices. Segundo registros históricos, o último herdeiro papal é do século 16, filho de Gregório XIII. E, embora as mulheres nunca tenham tido posições oficiais de poder na hierarquia católica, muitas delas - chamadas de mães de bastardos, amantes devassas ou tidas como santas exemplares - ajudaram a determinar os rumos da Igreja.

O celibato é recorrente em várias religiões ancestrais. No hinduísmo, existe há milhares de anos. Em geral, a abstinência total ao sexo surge para demarcar um estado de pureza e valorização do espírito em detrimento das necessidades humanas primitivas. Entre os budistas, o fundador da religião, no século 6 a.C., Sidarta Gautama, o Buda, abandonou a esposa para iniciar sua busca religiosa e assumiu a prática que seria adotada por todos os monges que o seguiram. Mesmo os cultos pagãos da Grécia e de Roma, atacados pelos cristãos, trazem relatos de sacerdotisas celibatárias, como aquelas responsáveis pelo culto da deusa Atena.

Entre os maiores credos do planeta, porém, a Igreja Católica é a única que hoje prevê a castidade absoluta para todos os seus sacerdotes. Uma diferença e tanto em comparação com as primeiras gerações cristãs. Basta lembrar que, segundo o Novo Testamento (o mesmo que abriga o Evangelho de Mateus), Jesus cura de uma febre a sogra de Pedro, líder dos apóstolos e, segundo a tradição, o primeiro papa. (Isso, claro, indica que ele era casado.) Em suas cartas, Paulo, o maior missionário da Igreja primitiva, afirma que muitos apóstolos viajavam com sua esposa sem dar a entender que estava censurando essa prática.

Papa Gregório III, o último a ter um filho Wikimedia Commons

"Paulo defendia o controle dos instintos sexuais e promovia o celibato, embora não exigisse isso de seus seguidores", diz Dale Martin, especialista em origens cristãs da Universidade Yale. "Não há dúvida de que muitos dentro da hierarquia primitiva da Igreja compartilhavam essas ideias."

Para Martin, ao assumir o celibato como ideal, os cristãos incorporaram temas já presentes na cultura greco-romana da época. "Mesmo antes do cristianismo, os filósofos e médicos pagãos ensinavam que as relações sexuais deveriam ser severamente controladas ou evitadas por completo por razões de saúde." Com o tempo, a teoria ganhou força entre os adeptos da nova religião. "Para os líderes latinos, gregos e sírios da Igreja dos três primeiros séculos, é quase um ponto pacífico que a vida de castidade, ou hagneia, e continência, ou enkrateia, deve ser preferida ao matrimônio", diz Luiz Felipe Ribeiro, doutorando em história do cristianismo antigo na Universidade de Toronto. Surgiu até a instituição denominada, em latim, de Virgines Subintroductae: homens virgens que se "casavam espiritualmente" com mulheres também castas e, em tese, não deveriam consumar a união. Separados na cama, mas juntos como casal, acreditavam que poderiam servir melhor a Deus.

Santo remédio

Embora esse ideal possa agora parecer opressivo, ele tinha um fascínio quase libertário para parte da juventude do Império Romano. Num mundo em que o pai tinha poder de vida e morte sobre os filhos, podendo decidir com quem se casariam, assumir o celibato por escolha própria talvez não fosse tão ruim assim. Para as meninas, forçadas a viver com um marido frequentemente décadas mais velho do que elas, logo após sua primeira menstruação, a virgindade soava ainda mais interessante.

Um exemplo dessa atração é o texto apócrifo (não incluído nos livros oficiais da Bíblia) conhecido como Atos de Paulo e Tecla. Na obra, afirma Ribeiro, "depois de ouvir a pregação de Paulo (em defesa do celibato) da janela de seu quarto, a jovem Tecla abandona a casa, a família, o noivo e, por fim, a cidade. Ela acaba encarnando a missionária por excelência". De volta ao Novo Testamento, porém, redigido no século 1, é possível encontrar nas Epístolas Pastorais uma perspectiva bem distinta sobre o papel da mulher na Igreja - e as tentações que ela representa. Trata-se de um conjunto de cartas atribuídas também a Paulo, mas provavelmente escritas por outros autores anônimos. Nas Epístolas, exige-se que as mulheres tenham um papel submisso e subalterno e recomenda-se que os bispos, que então estavam se tornando os principais líderes do cristianismo, fossem "maridos de uma só esposa" e governassem sua casa e seus filhos com mão firme.

São Hormisdas, papa de 514 a 523 Wikimedia Commons

Como se vê, quando os cristãos finalmente ganharam liberdade religiosa, com sua fé transformada no credo oficial do Império Romano, no fim do século 4, tiveram de lidar com uma série de visões mais ou menos contraditórias a respeito do celibato e da castidade em sua tradição. Embora o papa, como bispo de Roma, já fosse uma figura influente, ele não detinha o poder enorme e centralizado que exerce hoje e, por isso, as decisões dependiam dos concílios e sínodos, grandes reuniões dos bispos. Esses encontros tendiam a determinar que fiéis casados poderiam virar padres ou bispos, mas, a partir do momento da ordenação, deveriam encerrar as intimidades carnais. Se fossem viúvos, não poderiam voltar a se casar. Foi essa, por exemplo, a recomendação do Concílio de Elvira, na atual Espanha, em 306. Duas décadas depois, o Concílio de Niceia proibiu que qualquer sacerdote se casasse ou mantivesse relações sexuais, mas a lei simplesmente não pegou.

Há várias ocorrências de papas casados que deixaram a família para assumir suas funções, como são Sirício, no século 4 (que emitiu a primeira ordem papal determinando o celibato aos padres, conhecida como Directa) e são Ágato, no século 7. São Hormisdas, que morreu em 523, é o pai de outro papa, são Silvério. No fim do século 7, os católicos do Ocidente e os cristãos do Oriente, hoje conhecidos como ortodoxos, começaram a mostrar sérias divergências na maneira como interpretavam as regras sobre o celibato. No Concílio Quinissexto, realizado em Constantinopla em 692 por bispos orientais, ficou definido que os sacerdotes podiam continuar casados desde que tivessem contraído matrimônio antes de serem ordenados. O celibato perpétuo só seria exigido dos bispos. No Ocidente, o voto de castidade era demandado de todo o clero.

Na prática, a situação era bem diferente. "O casamento clerical tornou-se rotineiro em toda a Europa. Na Inglaterra, muitos párocos eram casados. O mesmo acontecia em Milão e no norte da Itália em geral, onde não eram raros os bispos casados e o cargo clerical podia passar de pai para filho", escreve o historiador Eamon Duffy, da Universidade de Cambridge, autor de Santos e Pecadores - História dos Papas.  

Luxúria em Roma

O fato, diz Duffy, é que esses casamentos só escandalizavam os religiosos mais severos. O mesmo não se pode dizer sobre o que muitos historiadores consideram uma das fases mais obscuras do papado, que durou quase todo o século 10. Nesse período, com o enfraquecimento do principal protetor militar e político dos papas, o Sacro Império Romano-Germânico, os pontífices viraram joguetes nas mãos das famílias poderosas de Roma, as quais queriam transformar seus membros ou aliados em líderes da Igreja mesmo que eles não tivessem a mínima vocação para isso. Eram figuras como Sérgio III, papa de 904 a 911, que fez da sedutora adolescente Marozia sua amante. Ela tornou-se concubina ainda de outro papa, João X (o qual também tivera um caso com Teodora, mãe da ninfeta), maquinou o assassinato de João e, mais tarde, conseguiu colocar no trono seu próprio filho com Sérgio, um rapaz de 20 anos que assumiu o papado com o nome de João XI. Anos depois, a família ainda emplacou outro pontífice, João XII, neto de Marozia. Crônicas da época afirmam que ele transformou a Basílica de São João de Latrão num bordel pessoal. Teria inclusive morrido nos braços de uma amante, em 964.

Sérgio III, papa de 904 a 911 Wikimedia Commons

Era de esperar que tamanha bagunça gerasse uma reação, e ela veio com uma série de papas reformistas no século 11. Eles fizeram de tudo para reafirmar a obrigação do celibato - um deles, Leão IX, chegou a rebaixar a padre o bispo de Nantes, na França, que tinha herdado seu cargo do pai. A partir daí, a repressão política às "escapadas" dos sacerdotes cresceu e, após o primeiro e o segundo Concílio de Latrão, o celibato se tornou um hábito da maioria dos religiosos.

Esforços moralizadores à parte, ainda não era o fim dos papas promíscuos. Pontífices da Renascença, como Alexandre VI e Paulo III, agiam como qualquer outro monarca da época, usando seus vários filhos ilegítimos como peças do xadrez político, casando-os com herdeiros de outros tronos e empregando exércitos para criar domínios pessoais em favor dos familiares. De certa maneira, figuras como as sedutoras Vannozza dei Catannei e Giulia Farnese, amantes conhecidas de Alexandre VI, reviveram o poder feminino sobre o papado que tinha sido tão importante nos tempos de Marozia. As duas se aproximaram de Alexandre quando ele ainda era cardeal. Deram-lhe herdeiros que acabaram reconhecidos publicamente e conseguiram riqueza e influência para suas famílias, apesar da fama de prostitutas. (Os romanos, jocosamente, apelidaram Giulia de "noiva de Cristo".)

Racha

O golpe decisivo na luxúria papal provavelmente foi a Reforma Protestante, que levou a Igreja Católica, entrincheirada, a uma nova busca por moralização. Enquanto os protestantes, seguindo o que consideravam ser o exemplo dos apóstolos, liberaram o casamento do clero, a resposta católica foi endurecer de vez o celibato de seus sacerdotes. O Concílio de Trento (de 1545 a 1563), que marcou a Contra-Reforma, deixou as coisas claras ao afirmar que o celibato era superior espiritualmente ao estado de casado.Essa visão da relação entre homem e mulher como naturalmente inferior à castidade só começou a dar sinais de mudança com o Concílio Vaticano Segundo, encerrado em 1965. Grande fonte de renovação para a Igreja, ele estabeleceu que poderia haver a ordenação de diáconos (na hierarquia, um degrau inferior ao de padre) já casados. Eles podem fazer a leitura do Evangelho durante a missa, entre outras atribuições. Ainda assim, muitos consideraram a iniciativa insuficiente. Havia a expectativa de que a obrigatoriedade do celibato fosse abolida. Segundo a última edição de 7 de junho da revista Time, desde então, a adesão aos seminários caiu 75%.

Já do ponto de vista teológico, líderes como João Paulo II deram passos rumo a uma visão menos puritana do sexo. "Ele provavelmente foi o único papa a escrever de forma positiva sobre o orgasmo feminino, por exemplo", diz Eamon Duffy.

A recente onda de denúncias de abuso sexual cometido por padres contra crianças e adolescentes colocou o celibato mais uma vez em xeque, mas não há sinais de que Bento XVI vá rever a norma. Em tese, como não é um dogma de fé, ela poderia ser "flexibilizada". Tampouco há pistas de que o Vaticano possa vir a aceitar relacionamentos homossexuais e ordenar mulheres, outras duas reivindicações bastante atuais sobre o funcionamento da Igreja.

De qualquer forma, é difícil negar o fato de que a pressão para que essas mudanças aconteçam existe e é significativa. Levantamento recente feito pela revista jesuíta Civilità Cattolica aponta que quase 70 mil padres abandonaram a batina entre 1964 e 2004. Só no Brasil, enquanto há 18 mil sacerdotes na ativa, cerca de 7 mil deixaram sua paróquia para se casar. Em 2008, um documento aprovado por 430 delegados no Encontro Nacional dos Presbíteros (que reúne representantes dos padres brasileiros) pediu que houvesse uma busca de "alternativas" ao sacerdócio de celibatários. Embora a Igreja considere que seus ensinamentos são imutáveis, o fato é que as coisas sempre mudaram dentro dela - e talvez continuem mudando.


Saiba mais

Santos e Pecadores - História dos Papas, Eamon Duffy, Cosac Naify, 1998.

Paul Among the People, Sarah Ruden, Random House, 2010.

Pedophiles and Priests - Anatomy of a Contemporary Crisis, Philip Jenkins, Oxford University Press, 1996.