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Matérias / Civilizações

Tão desenvolvida quanto o Egito e a Mesopotâmia: Harappa, a primeira civilização da Índia

Uma das maiores da Antiguidade, a história da cidade enigma está apenas começando a ser desvendada

Beto Gomes Publicado em 17/02/2020, às 16h24

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Harappa - Reprodução
Harappa - Reprodução

O vaivém de peregrinos é intenso, frenético, louco. Eles chegam aos montes, vindos de pequenos vilarejos vizinhos, nos vales ao leste do Paquistão. As ruas, tomadas por mercadores itinerantes, ganham, aos poucos, o colorido dos artistas performáticos e das trupes de circo. Músicos ajudam a entreter as multidões. Luzes e sons misturam-se.

Mulheres procuram peregrinos mais experientes, para dar a eles as oferendas religiosas que serão repassadas a divindades de lugares distantes – tudo para garantir que, no futuro, seus filhos sejam saudáveis e, de preferência, do sexo masculino. À primeira vista, esse é apenas mais um ritual de cultura popular, desses que o tempo insiste em manter vivos.

 E é mesmo. Conhecido por sang – algo como feira de encontro –, é realizado até hoje nas grandes cidades do Vale do Rio Indo, perto da fronteira entre o Paquistão e a Índia. Mas esconde uma curiosidade. Remete a uma das civilizações mais desenvolvidas de toda a Antiguidade, um povo que viveu ali há milhares de anos. Não eram egípcios nem mesopotâmios, tampouco chineses.

Esse povo esquecido atingiu um surpreendente grau de desenvolvimento, comparável ao dos célebres vizinhos. A diferença é que não ficaram tão conhecidos – pelo menos nos dias de hoje –, embora tenham interagido com algumas dessas culturas avançadas. Eles eram a civilização do Vale do Indo, ou civilização harappiana, nome derivado de sua principal cidade, a capital Harappa.

 Por volta de 3000 a.C., numa época em que Egito, Mesopotâmia e China começavam a esbanjar desenvolvimento e a ocupar o centro do mundo, os harappianos floresciam no Vale do Rio Indo. Como as potências vizinhas, também dominavam técnicas e conhecimentos inimagináveis para aquele período da história. No seu auge, entre 2600 a.C. e 1900 a.C., espalharam-se por mais de 1500 vilas e estenderam-se por uma área duas vezes maior que o próprio Egito Antigo e a Mesopotâmia.

Crédito: Reprodução

Ergueram cidades amplas e muito bem planejadas, com sistemas de drenagem sofisticados e prédios muito complexos. Eram artesãos habilidosos, que se destacavam principalmente por seus trabalhos com cerâmica e argila. O conhecimento avançado traçou os rumos de Harappa. Seus habitantes abriram rotas comerciais que os levaram ao Golfo Pérsico, à Ásia Central e à Mesopotâmia.

Por outro lado, as cidades harappianas viraram centros de comércio do mundo antigo. O artesanato local espalhou-se, tendo sido encontrado até nos sítios arqueológicos mesopotâmios.

Textos antigos dessa civilização, as inscrições cuneiformes, comprovam o contato entre as duas culturas. Falam sobre o comércio com povos originários da distante Índia. Assim como ainda acontece atualmente, naquela época os moradores dos pequenos vilarejos harappianos iam para as grandes cidades em dias de festivais para comprar, vender ou trocar produtos, participar de cerimônias e até para rever familiares.

Democracia e religião

Apesar de ser a maior das quatro civilizações da Antiguidade, o Vale do Indo só foi descoberto em 1920, quando arqueólogos escavaram parte das ruínas de Harappa e Mohenjo-daro, as duas maiores cidades da região, áreas que hoje correspondem às províncias paquistanesas de Punjab e Sindh, respectivamente.

Mesmo assim, ainda há muito a ser escavado e, principalmente, desvendado. Questões básicas sobre esses povos continuam sem respostas. Vários sítios arqueológicos permanecem intocados, incluindo grandes cidades, e sua escrita está longe de ser decifrada. Alguns pontos, porém, são dados como certos.

 A semelhança entre as plantas e a arquitetura das cidades harappianas, por exemplo, mostram que o Vale do Indo mantinha uma estrutura social e econômica uniforme. A economia era baseada na produção agrícola e nas atividades comerciais. O povo era pacífico, embora possuísse armas, como lanças e espadas. Não havia reis nem teocratas – prova disso é a inexistência de palácios e templos suntuosos, mesmo nas ruínas das grandes cidades.

Essa organização social não exclui, no entanto, a participação e a influência de líderes religiosos na sociedade. É provável que eles tenham sido a chave para manter unida uma civilização tão abrangente, que não tinha como característica usar a força para subjugar outros povos. Apesar de não haver provas arqueológicas da existência desses líderes, estudos indicam que eles formavam uma elite, que manteve a hegemonia por meio da religião e de rituais sagrados.

Crédito: Reprodução

O apogeu

A cidade de Harappa viveu seu boom econômico entre os séculos 2800 a.C. e 2600 a.C. Foi nesse período que os artesãos desenvolveram técnicas avançadas de manipulação de argila e outras matérias-primas, criando tijolos simétricos de barro e objetos refinados de cerâmica cobertos por uma espécie de esmalte. A fabricação de produtos têxteis também decolou no período. Enquanto os egípcios notabilizavam-se pela manufatura de peças de linho, os harappianos teciam com algodão.

 Surgiu nessa época ainda o sistema formal de escrita do lugar, estampada em vasos e selos de argila. Esses objetos, ilustrados com figuras geométricas ou com representações de animais, parecem também ter tido uso comercial ou administrativo. Seriam usados pela elite e funcionavam como um mecanismo de controle econômico e demonstração de poder político. Alguns pesquisadores, como Mahadevan, acreditam que eles também indicavam os títulos de seus usuários e até nomes e profissões.

Para os harappianos, seria algo útil numa cidade que chegou a ter cerca de 80 mil habitantes, segundo as estimativas do arqueólogo americano Jonathan Mark Kenoyer, um dos maiores especialistas do mundo na Civilização Antiga do Vale do Indo e um dos líderes dos grupos de escavações na região. Esses e outros segredos de Harappa, no entanto, continuam escondidos atrás de um enigma: a indecifrável escrita do Vale do Indo.

A queda 

Depois de quase 2 mil anos de existência, essa civilização começou a entrar em declínio. A mais aceita das teorias combina uma série de motivos. O primeiro seria a incapacidade da elite em manter a ordem num território tão vasto e povoado, que por volta de 1900 a.C. já se estendia para além das planícies do Rio Ganges. “Essa falta de autoridade levou a uma reorganização da sociedade em toda a região do Vale do Indo”, escreveu Kenoyer em artigo publicado na revista Scientific American. Prova disso é o desaparecimento gradual de símbolos característicos da região, como os selos, vasos e pesos usados na taxação e comércio de produtos.

 Outro fator importante para a queda da civilização harappiana foram as alterações climáticas que ocorreram ao longo dos séculos, ligadas provavelmente ao desflorestamento para obtenção de matérias-primas. Em 2000 a.C., um dos rios da região, o Sarasvati, começou a secar e deixou várias cidades sem uma base viável de subsistência. Essas populações teriam migrado para áreas agrícolas e cidades como Harappa e Mohenjo-daro, superpovoando lugares que não tinham estrutura para receber mais pessoas. Por consequência, os mecanismos de manutenção das rotas comerciais acabaram comprometidos.

Artefato da civilização / Crédito: Reprodução

 Outra teoria diz que teria havido uma simples dispersão da população para outras regiões. Mas é improvável. “Vestígios arqueológicos encontrados em escavações recentes mostram que as cidades continuavam habitadas entre 1900 a.C. e 1300 a.C.”, escreveu Kenoyer. Uma terceira tese aponta que os harappianos foram aniquilados pelos indo-arianos a partir do segundo milênio antes de Cristo. De fato, o período entre 2000 a.C e 1300 a.C. foi conturbado, com guerras eclodindo em várias partes do mundo.

 Mesmo assim, não se imagina que os indo-europeus tenham destruído toda a civilização. A maioria dos especialistas acredita que a imigração ariana aconteceu depois que os harappianos entraram em declínio – e a relação entre esses povos foi pacífica. “Quando chegaram à região, os indo-europeus tornaram-se sedentários e seus rebanhos ajudaram a fertilizar os campos agrícolas. Em troca, seus cavalos alimentavam-se da palha da cevada que era produzida pelos agricultores”, argumenta Barbosa.

E por fim há uma hipótese indiana ultranacionalista, que defende a ideia de que a civilização do Vale do Indo deu origem aos védicos, povos que surgiram em seguida aos harappianos e formularam o Rig Veda, a mais antiga escritura sagrada hindu. De acordo com a tese, eles conquistaram os sumérios e expandiram seus domínios para o oeste, influenciando também os povos do Ocidente.

Ufanismo? Pode ser. Mas, se a tese estiver correta, os harappianos mudaram o mundo que nós conhecemos. Como cabe às grandes civilizações da história.