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Matérias / Drogas

Santo remédio: quando Freud e o papa deram seu aval à cocaína

Antes de sua proibição, ela foi um grande negócio para a indústria farmacêutica

Déborah de Paula Souza Publicado em 03/01/2020, às 09h00

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Imagem meramente ilustrativa do uso de cocaína - Getty Images
Imagem meramente ilustrativa do uso de cocaína - Getty Images

Sigmund Freud podia comprar cocaína em qualquer farmácia de Viena. O pai da psicanálise adorava o seu efeito erótico. Numa de suas cartas apaixonadas a Martha Bernays (com quem depois se casou e conviveu por 53 anos), escreveu:

"Ai de você, minha princesa, quando eu chegar. Vou beijá-la até você ficar bem corada e alimentá-la até que fique rechonchuda. E se você for bem teimosa, verá quem é mais forte: uma delicada jovem que não quer comer o suficiente ou um grande e selvagem homem que tem cocaína no corpo". Em outras cartas, desculpou-se com a amada pelo ardor das confissões, alegando que a cocaína destravava sua língua.

De acordo com o psicanalista argentino Emilio Rodrigué, autor da biografia Sigmund Freud, o Século da Psicanálise, o médico vienense passou a consumir cocaína a partir dos 28 anos — e fez isso por mais de uma década.

Não fosse seu ímpeto em elogiar a substância na fase inicial das pesquisas, teria lugar de honra na psicofarmacologia moderna, já que foi um dos pioneiros a experimentar e fazer registros científicos de psicoativos. No século 19, seu artigo Über Coca (Supercoca) sintetizou o clima de esperança dos cientistas com a nova droga.

Sigmund Freud / Crédito: Wikimedia Commons

Freud recomendava o uso como estimulante, para distúrbios digestivos, fraqueza, no tratamento de dependentes de álcool e morfina, contra a asma, como afrodisíaco e, por fim, como anestésico.

Seu estudo abriu o caminho para que seu colega Carl Koller entrasse para a história da medicina como o descobridor da anestesia local. Rodrigué diz, brincando, que Freud teria antecipado a Coca-Cola ao escrever um bilhete chamando o médico de querido amigo Coca Koller.

Comoção

Os primeiros testes da anestesia local de Koller foram feitos em uma rã — bastaram algumas gotas de colírio à base de cocaína nos olhos do bicho para que fosse operado sem trauma nem dor. O trabalho causou comoção numa convenção de oftalmologia em 1884.

Koller levou a fama pela anestesia ocular, mas, no mesmo ano, nos Estados Unidos, o pai da cirurgia moderna, William Stewart Halsted (1852-1922), desenvolveu uma espécie de bloqueador neural.

Com injeções de cocaína em alguns nervos, conseguia anestesiar determinada área. Halsted publicou mais de mil casos bem-sucedidos de cirurgias indolores, mas como testava drogas em si mesmo, acabou viciado em cocaína e morfina.

No final do século 19, uma paciente de Freud morreu de overdose e, entre 1885 e 1990, novos relatos clínicos revelaram tudo o que a comunidade científica precisava saber para abandonar de vez o uso da cocaína como medicamento. A reputação de Freud só não foi destruída porque era impossível controlar abusos de pacientes.

O pó mágico era consumido livremente, fabricado por grandes laboratórios e considerado um remédio de largo espectro — era encontrado até em forma de pastilhas para dor de dentes. Os laboratórios Merck e Parke Davis apresentavam a droga em versões variadas: pó, extratos fluidos, inaladores, sprays e tônicos.

Além dos medicamentos, doses generosas de cocaína estavam presentes em cigarros e bebidas, como o Vinho Mariani e a Coca-Cola, que foi lançada em 1886 e só retirou o alcaloide da fórmula em 1903.

Bebida do papa

As propagandas do fim do século 19 pregavam que a cocaína "tornava os homens mais corajosos e enchiam as damas de vivacidade e charme". Para ter uma ideia da popularidade da droga, o papa Leão 13 (1810-1903) estampava o rótulo do Vinho Mariani, um poderoso coquetel à base de cocaína e álcool criado pelo químico francês Angelo Mariani em 1863 —, que se tornou a bebida predileta do Sua Santidade.

O médico Howard Markel, autor de Anatomy of Addiction (Anatomia do Vício), afirma que Mariani foi um dos primeiros a fazer fortuna com a cocaína — o drinque do papa conquistou rapidamente intelectuais e celebridades.

A lista dos admiradores inclui os escritores Julio Verne, Henrik Ibsen, Alexandre Dumas e Arthur Conan Doyle. Thomas Edison e o ex-presidente americano Ulysses S. Grant completam a lista. Antes de morrer de câncer na garganta, em 1885, Grant redigiu suas memórias sob o efeito desse vinho tônico. E é muito provável que tenha exagerado as façanhas e os efeitos da bebida.

À venda: A cocaína, exposta em anúncios do fim do século 19 / Crédito: Wikimedia Commons

A moda da cocaína no século 19 não poderia ter acontecido se o princípio ativo da folha de coca não tivesse sido isolado por Albert Niemann em 1859. Três séculos antes, a planta de coca, in natura, já havia desembarcado na Europa por meio dos navegadores espanhóis. Talvez os deuses americanos, aos quais era consagrada, tivessem tentado protegê-la do desastre, pois não fez nenhum sucesso entre os europeus.

As folhas chegavam murchas e perdiam suas propriedades na longa viagem. Durante 3 séculos, permaneceu intocável, para uso exclusivo da comunidade andina — que a consome até hoje. Qualquer turista em Cuzco e Machu Picchu toma chá de folhas ou chupa balas de coca para driblar os efeitos perversos da altitude.

O primeiro país a proibir a cocaína foram os Estados Unidos, em 1914. No Brasil, a primeira lei que restringiu a droga, junto com o ópio e a morfina, chegou em 1921 — fruto de um acordo internacional firmado em Haia dez anos antes. A maconha foi proibida em 1930 e as primeiras prisões por porte de droga foram registradas em 1933, no Rio de Janeiro. Até então, não havia controle policial e o uso era tolerado em prostíbulos frequentados por "rapazes finos".

O barato mortal 

Mesmo proibida, a cocaína nunca deixou de ser consumida, claro. O Brasil participa do ciclo criminoso com o refino e a distribuição da droga. Nos anos 1970, novas leis tentaram combater o narcotráfico colombiano, que, sob comando de Pablo Escobar, era responsável por 80% da cocaína distribuída nos EUA. A droga ficava cada vez mais barata e combinou com o espírito competitivo dos negócios da década seguinte.

A pedra de crack, resultado de uma pasta de cocaína em pó misturada com solventes (álcool, benzina ou parafina), surgiu nos bairros pobres de grandes cidades do EUA nos anos 1980, mas tem antecedentes em países andinos, onde anos antes já se fazia o "basuco", que chegou ao Brasil com o nome de paco ou oxi — basta trocar os solventes do crack por ácido sulfúrico ou querosene.

O crack costuma ser fumado — a versão de uso que se popularizou. A droga é barata e "eficiente". Em 15 segundos, uma baforada de crack provoca ondas de prazer e sensação de onipotência dez vezes maiores que a cocaína ao liberar endorfina no cérebro. A ilusão acaba logo e os usuários fazem qualquer coisa para repeti-la — roubo, prostituição e desagregação familiar são alguns efeitos colaterais.


+Saiba mais sobre a história da cocaína através de grandes obras

Cocaína: A rota caipira: A rota caipira, Allan De Abreu, 2017 - https://amzn.to/2trVaUt

Freud e a cocaína: A história do uso da droga nos primórdios da psicanálise, David Cohen, 2014 - https://amzn.to/36mNh1e

Romance com Cocaína. Memórias de Um Doente, M. Aguéiev, 2003 - https://amzn.to/2MNe1QO

Na fissura: Uma história do fracasso no combate às drogas, Johann Hari, 2018 - https://amzn.to/2MMI3Ew

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