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Matérias / Cinema

Hollywood Brasileira: Como a Companhia Cinematográfica Vera Cruz moldou o cinema

A criação da Companhia determinou um novo padrão de qualidade para o cinema nacional, e revelou astros como Eliane Lage e Amácio Mazzaropi

Jeanne Callegari e Érica Georgino Publicado em 14/02/2019, às 08h00

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Imagens de bastidores da gravação do filme “Tico-tico no Fubá” - Arquivo Companhia Cinematográfica Vera Cruz
Imagens de bastidores da gravação do filme “Tico-tico no Fubá” - Arquivo Companhia Cinematográfica Vera Cruz

Franco Zampari estava sempre muito ocupado em seu escritório da rua Major Diogo, no centro de São Paulo. O italiano vivia com os bolsos do paletó forrados do analgésico Optalidon, indicado para dores agudas. Ainda que a dose máxima recomendada fosse de quatro comprimidos por dia, ele costumava mastigar o medicamento e engolir toda a cota de uma vez. Zampari tinha motivos para que as enxaquecas persistissem. Ele se lançara como mecenas e administrava dois grandes empreendimentos: o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), cuja sala de espetáculos ficava no mesmo endereço, e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, com estúdios em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.

No fim da década de 1940, a capital paulista vivia um momento de ebulição cultural. A burguesia, enriquecida pela industrialização durante a Segunda Guerra, abriu o cofre. Assim surgiram o Masp (1947), o MAM (1948) e o TBC, em 1948. Só faltava florescer o cinema. A Companhia Cinematográfica Vera Cruz nasceu nesse cenário, no fim de 1949. O projeto, encabeçado por Zampari, pretendia dar ao cinema brasileiro qualidade e projeção internacional. O amigo e empresário Ciccilo Matarazzo aderiu à causa e doou o terreno onde foram montados os estúdios de São Bernardo.

Na época, já existiam outras produtoras nacionais, como a Atlântida, que fazia chanchadas populares, e a Cinédia, que lançara musicais nos anos 30. Mas, na visão dos mecenas ítalo-paulistanos, isso era pouco. “As chanchadas não tinham boa acolhida da crítica, que usava como parâmetro o cinema europeu e norte-americano”, diz o crítico José Geraldo Couto.

Para coordenar a Vera Cruz, Zampari convidou Alberto Cavalcanti, documentarista brasileiro bem-sucedido no exterior. Ele buscou na Europa seu time de técnicos. Eram ingleses, austríacos, alemães e, claro, italianos como Adolfo Celi, que já era diretor no TBC. “Do planalto abençoado para as telas do mundo” era o slogan da companhia, dando mostras de sua ambição: atingir padrões- e o mercado- internacionais. Não se poupavam gastos. Câmeras, cenários, tudo era do bom e do melhor. Os primeiros meses da Vera Cruz foram, contudo caóticos. A empolgação superava o senso prático. Havia muito dinheiro, mas não existia estrutura contábil; havia uma secretária poliglota, mas ninguém contrataria um office-boy.

Franco Zampari; Reprodução

Assim a empresa rodou o primeiro filme: Caiçara, lançado em 1950. Enquanto uma produção carioca da época custava entre 800 mil e 1 milhão de cruzeiros, a película da Vera Cruz consumiu dez vezes mais. O valor superou até mesmo o capital inicial da companhia: 7,5 milhões de cruzeiros, cerca de 2 milhões de reais.

Filmado em Ilha Bela (SP), Caiçara trazia qualidade técnica e atores de primeira linha. A protagonista foi Eliane Lage. “Era um período muito criativo, de bastante entusiasmo, uma fase em que boa parte da sociedade paulista estava envolvida no sonho de construir uma indústria cinematográfica no Brasil”, diz Eliane, colega de Tônia Carrero, Anselmo Duarte e Alberto Ruschel na Vera Cruz. A estrela animava os almoços e jantares com autoridades promovidos nos estúdios por Franco Zampari na esperança de conseguir apoio e patrocínio para o projeto. O italiano era muito presente. “Ele participava do processo de montagem de todos os filmes. Ás vezes caminhava pelos estúdios para lá e para cá; dava uma paradinha, refletia e, sempre fumando, retomava seu vaivém”, afirma o montador Mauro Alice. “Eu imaginava a quantidade de cifrões e preocupações que ele trazia na cabeça”.

Luz, câmera... inovação

Acusada por críticos de não desenvolver uma linguagem própria, a Vera Cruz inovou em pelo menos dois casos. Um foi a descoberta de Amácio Mazzaropi para o cinema. “Foi uma das grandes coisas boas da Vera Cruz. Artista bem brasileiro, que depois se tornou um atrativo de público”, diz Couto. O outro foi O Cangaceiro, de Lima Barreto. Temperamental, ele insistiu por anos para rodar um filme com temática nacional; foi o maior sucesso da Vera Cruz. A empresa construía sua marca nos detalhes. Na cena final de O Cangaceiro, por exemplo, o mocinho Teodoro é alvejado pelas costas e, trôpego, se apoia em uma árvore. Instalado nos galhos estava um rapaz, que passou um dia inteiro de filmagens lá em cima acompanhado de um saco de folhas. A cada tomada ele jogava um punhado sobre Alberto Ruschel para imprimir a veracidade à cena. A obra foi premiada como melhor filme de aventuras no festival de Cannes. Segundo Galileu Garcia, assistente de direção do filme, a moda “cangacerrô” varreu Paris, onde as moças passaram a usar sandálias e bolsas no estilo da película.

Mas nem o sucesso do filme, nem a arrecadação de 200 milhões de dólares foram capazes de salvar a companhia do buraco. As enxaquecas de Franco Zampari pioraram em 1954, quando o Banespa passou a cobrar as dívidas da companhia. Ele se afastou e nunca mais se recuperou do golpe. Do brilho original da Vera Cruz, ficou o legado. Seus técnicos estrangeiros ajudaram a formar aqui uma nova geração de profissionais. O padrão de qualidade foi elevado e abriu-se caminho para uma linguagem verdadeiramente nacional, que culminaria no Cinema Novo.