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Matérias / Brasil

A misteriosa infância de Zumbi dos Palmares

Tese de que o líder negro foi criado por um padre português chamado Antônio Melo ainda divide opiniões

Gabriel Rocha Gaspar Publicado em 13/05/2019, às 17h00

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A infância de Zumbi dos Palmares é repleta de controvérsias - Reprodução
A infância de Zumbi dos Palmares é repleta de controvérsias - Reprodução

Em um final de tarde de 3 de dezembro de 1655, o padre português Antônio Melo trancou sua igreja na cidade de Porto Calvo, à época na Capitania de Pernambuco, hoje pertencente ao estado de Alagoas, e começa a atravessar a rua de terra batida que o separava da praça principal da pequena cidade. Mas, antes de chegar ao outro lado, parou, surpreendido pelo ruído de cavalos.

Homens mal-encarados e armados de flechas, espadas e pistolas apearam de seus cavalos. Junto com eles, uns poucos negros acorrentados, com feridas abertas por todo o corpo. Cabisbaixos, olhavam para o chão com olhos vazios. Já seus algozes tinham a arrogância típica dos capitães do mato, os violentos caçadores de escravos fugitivos.

O padre Melo ficou ainda mais nervoso quando viu o capitão Brás da Rocha Cardoso, herói da guerra contra os holandeses, encerrada um ano antes, que caminhava em sua direção segurando um embrulho de panos impregnado de todos os marrons da estrada. Sem beijar a mão ou pedir bênçãos, o capitão disse, seco: “Essa cria é sua, padre. Pegamos nos Palmares dos pretos e não temos serventia para ele. Faz dele o que o senhor achar melhor”.

O “Palmares dos Pretos”, sobre o qual Cardoso se referiu, era o Quilombo dos Palmares, local que foi abrigo para escravos fugidos dos engenhos de cana nordestinos. O padre desembrulhou os panos empoeirados e se compadeceu na mesma hora da criança, nascida havia poucos dias.

Representação do Quilombo dos Palmares/ Crédito: Wikimedia Commons

Mistério

Tão logo os capitães do mato e seus presos partiram, padre Antônio Melo sentou-se ao pé da igreja, olhou a criança e decidiu: “Vai chamar-se Francisco, é o santo do dia”.

O tempo passou e Francisco, já adolescente, lia, escrevia, falava latim e português, interessava-se pelas estratégias do jogo do xadrez, ajudava nas missas como coroinha e, nas palavras do próprio padre, demonstrava “engenho jamais imaginável na raça negra e que bem poucas vezes conheci em brancos”. Era um garoto brilhante, porém recluso. Vivia imerso nas letras e não tinha amigos, além do padre.

Numa manhã de domingo de 1670, Antônio Melo resolveu ir até o quartinho do garoto. Preocupara-se porque seu pupilo, sempre pontual e dedicado, não apareceu para ajudar no serviço matinal. Surpreso, constatou que Francisco havia partido com suas poucas posses.

A única coisa que deixou para trás foi um bilhete, escrito a carvão: “Padre, agradeço por cada lição que o senhor me passou, mas meu sangue clama: tenho de unir-me a meus malungos de Palmares. Francisco”. Pouco depois, Zumbi se tornaria o líder absoluto do quilombo e seria o comandante na sua derradeira batalha contra a Coroa Portuguesa.

“História bonitinha”

“É bonitinha essa história, né?”, ironiza o sociólogo e historiador Jean Marcel Carvalho França, coautor de Três Vezes Zumbi. Escrito em parceria com o também historiador Ricardo Alexandre Ferreira, o livro destrincha a construção da imagem de Zumbi ao longo de três séculos. A ironia com que França trata a versão do coroinha guerrilheiro é dirigida ao pesquisador gaúcho Décio Freitas, autor do livro Palmares, a Guerra dos Escravos, no qual ele conta a pretensa infância de Francisco-Zumbi.

“Freitas transgride uma regra do meio historiográfico: se você apresenta uma notícia muito nova, tem de trazer uma documentação coetânea, um indício que comprove as suas acepções. Sobretudo, se elas são polêmicas, se elas escapam ao que você tem de expectativa, de senso comum”, afirma França.

É aí que mora o problema: Décio Freitas morreu em 2004, sem nunca apresentar alguma prova dessa versão. Em seu livro, ele afirma que teve acesso a extensa correspondência entre o religioso de Porto Calvo e outro padre português, a quem ele contava a criação do garoto quilombola. “Nesse caso específico, Décio Freitas teria que ter trazido as tais cartas”, critica França.

A versão do Zumbi coroinha teve adeptos, como o historiador Clóvis Moura, falecido um ano antes que Freitas, que em seu Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, publicado pela Edusp, a editora da Universidade de São Paulo, publica a versão da infância do menino Francisco na companhia do padre Antônio Melo, no verbete que dedica a Zumbi. Também Jorge Landmann, que em 1998 escreveu o romance histórico Troia Negra – A Saga dos Palmares, defende que as cartas do Padre Melo existem e estão guardadas na Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal.

O historiador Carvalho França tem uma explicação para o fato de essa versão de um Zumbi com educação formal e inteligência acima da média ter conquistado adeptos, mesmo sem apresentar evidências documentais consistentes.

Segundo ele, na primeira metade dos anos 1970, época da publicação de Palmares, a Guerra dos Escravos, existia uma demanda por um herói romântico negro. E o protagonista de Décio Freitas é exatamente isso. “Primeiro, ele é naturalmente inteligente, esse é o traço romântico. É a primeira característica do herói. A segunda característica é a ideia de que o conhecimento ilumina. Ele vem, busca o conhecimento do branco e volta mais esclarecido. Ele leva a chama da liberdade.” Em posse dessa luz intelectual e moral, Zumbi comanda uma guerra dentro do quilombo contra o próprio tio, Ganga Zumba, depois que este assina um acordo de paz com os portugueses.

O restante da história de Zumbi é mais consensual entre os historiadores. Ele permaneceria na liderança do quilombo e resistiria a várias investidas das expedições lançadas contra a comunidade de negros libertos, na Serra da Barriga.

Em 1694, o quilombo foi invadido por forças lideradas pelo bandeirante paulista Domingos Jorge Velho. O quilombo foi desarticulado e seus moradores presos e tornados escravos. Zumbi foi ferido e desapareceu. Quase dois anos depois, acabou capturado e morto. Sua cabeça foi cortada e exposta em praça pública em Recife. Um selvagem recado para os escravos que sonhassem em rebelar-se contra seus senhores.