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Matérias / Idade Média

Cruzada das Crianças: A lendária expedição da Idade Média para libertar a Terra Santa

Conduzida por meninos pobres, o episódio das procissões até Jerusalém são marcadas como tragédias anunciadas

Isabelle Somma e Kako Publicado em 12/10/2021, às 07h00 - Atualizado em 10/06/2022, às 05h00

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Imagem meramente ilustrativa - Arquivo AH
Imagem meramente ilustrativa - Arquivo AH

Estêvão tinha apenas 12 anos. Era analfabeto e ajudava a família cuidando de cabras em Cloyes, no norte da França. Em maio de 1212, foi até Saint Denis, onde o rei Felipe Augusto havia se instalado, para entregar-lhe uma carta.

O menino dizia que Jesus em pessoa lhe pedira para liderar uma nova cruzada contra os muçulmanos. Mas, diferentemente das quatro incursões anteriores à Terra Santa, o exército cristão deveria ser formado por crianças. Segundo Estêvão, com o coração e a alma livres de pecados, elas receberiam a ajuda de Deus, venceriam os infiéis e retomariam Jerusalém.

Não se sabe se Felipe recebeu o menino e é provável que ele sequer tenha lido a tal carta. Sabe-se porém que o monarca ficou intrigado com a pregação do pequeno pastor e, como não tinha certeza do que fazer com ele, mandou consultar os acadêmicos da Universidade de Paris. A resposta foi sábia: o rei deveria mandá-lo de volta para casa. E assim o fez. Até aqui, a história está documentada e consta dos textos dos principais cronistas da época, entre eles Vincent de Beauvais e Roger Bacon.

A partir daí, o que aconteceu a Estêvão virou um mito que foi recebendo enxertos aqui e ali, até se tornar um dos episódios mais emblemáticos da Idade Média, conhecido como a Cruzada das Crianças. Estêvão se tornaria uma lenda, mas não seria o único. 

Na Alemanha, no mesmo ano, movimentos muito semelhantes aconteceram. "Juntas, essas procissões teriam reunido cerca de 40 mil pessoas, segundo os textos medievais, mas a maioria dos especialistas acredita que é exagerado", diz o historiador Malcolm Barber, da Universidade de Reading, Inglaterra.

As migrações

Para entender essas manifestações populares é preciso voltar ao início do século 13. Na baixa Idade Média, as migrações eram comuns em toda a Europa. A população crescera bastante e havia muitos camponeses sem terras, migrando de vila em vila, procurando trabalho ou algum tipo de assistência. 

Essa multidão que vivia em trânsito ou à beira das estradas era um público farto para os pregadores messiânicos, que dominavam a cena religiosa. "O cristianismo estava ameaçado por muçulmanos e bárbaros e os movimentos de 1212 são filhos dessa crise", diz Christopher Tyerman, professor do Hertford College, em Oxford, Inglaterra.

Após o fracasso da Quarta Cruzada, entre 1202 e 1204, surgiu no norte da França e no vale do rio Reno (na atual Alemanha) a ideia de que uma dessas peregrinações deveria se transformar numa nova cruzada popular composta apenas por pessoas comuns e desarmada que iria retomar Jerusalém apenas com o auxílio divino. 

As procissões teriam reunido mais de 40 mil pessoas / Acervo AH

Assim, quando Estêvão apareceu em Saint Denis, parecia uma resposta às preces daquelas almas cristãs atormentadas que perguntavam: "Por que nós não conseguimos expulsar os muçulmanos de solo sagrado?". Na lógica medieval, Deus não parecia disposto a ajudar as tropas comandadas por nobres pecadores, usurpadores e impuros. 

Por isso, a ideia de realizar uma cruzada com crianças, imaculadas e livres de pecados, como o próprio Jesus, fazia sentido. Se do ponto de vista religioso essa pregação não representava novidade, do ponto de vista prático era um tremendo desafio.

De Saint Denis a Jerusalém seria uma viagem de 4 mil quilômetros que duraria meses ou até anos. Quem seguiria uma criança numa aventura como essas? Que pais deixariam seus filhos partirem assim?

A marcha dos incluídos

Para Tyerman, algumas características da época podem nos ajudar a responder. Primeiro, o próprio conceito de criança era muito diferente do que é hoje. Depois, a palavra latina pueri pode ter sido mal traduzida. "O termo significa "homens jovens" tanto quanto "crianças"", afirma. O professor Barber concorda. "A maioria dos peregrinos não eram crianças, mas jovens trabalhadores rurais, pastores e padres", diz.

Segundo Barber, já havia um movimento popular em Saint Denis antes da entrada do menino na cidade. "Estêvão de Cloyes chegou à cidade e se juntou a religiosos e peregrinos que voltavam do Oriente pregando a realização de uma nova cruzada. Na cidade, o menino, que tinha fama de milagreiro, foi considerado líder, antes que o grupo fosse dispersado pelo rei", diz.

No entanto, Christopher Tyerman acha que esse pode ser o ponto final da história. "Se nos basearmos apenas em provas documentais é impossível afirmar que o grupo tenha ido além de Saint Denis", diz. Para ele, Estêvão e seus amigos nunca chegaram ao Mediterrâneo. "As crônicas francesas da época citam as andanças pelo interior, mas nenhuma afirma que eles estiveram nas proximidades do litoral."

A jornada

Porém, num clássico artigo publicado em 1917, na American Historical Review, o historiador Dana Munro, de Princeton, Estados Unidos, afirmou que a turma de Saint Denis seguiu em procissão até Marselha. Munro se baseou em textos escritos entre 30 e 150 anos depois dos fatos e, segundo eles, o cortejo prosseguiu e, por onde passava, recebeu adesões de homens e mulheres de vida irregular – em outras palavras, prostitutas, vagabundos e vigaristas. Clérigos, que desejavam conhecer Jerusalém, e velhos, que queriam morrer por lá, também se uniram à trupe.

O historiador britânico Steven Runciman reproduz em seu livro "A História das Cruzadas: O Reino de Acre" alguns desses textos antigos. Eles contam que Estêvão teria sido elevado ao posto de santo e quando chegou a Vendôme, no final de julho, uma multidão já o esperava.

"Eram por certo vários milhares de jovens, oriundos de todas as partes do país, muitos deles trazidos pelos próprios pais", escreve Runciman. Dali, partiram para o litoral, onde Estêvão havia prometido fazer com que o mar se abrisse. O menino ordenou ao Mediterrâneo que lhes desse passagem, mas as ondas, é claro, continuaram a bater na praia.

Jovens embarcaram em longas jornadas / Crédito: Wikimedia Commons

Decepcionados, alguns voltaram para casa, mas a maioria ainda esperava um milagre. E não é que aconteceu algo inusitado? Dois mercadores da cidade, Hugo "o Ferro" e Guilherme "o Porco", se ofereceram para levar os pequenos cruzados de navio para a Terra Santa. Sem cobrar um tostão, tudo pela glória de Deus. "Em julho de 1212, cerca de 2 mil jovens embarcaram em sete navios", escreveu Munro. Durante 18 anos, não se ouviria mais falar deles.

As cruzadas germânicas

Não muito longe dali, em Colônia (na região onde atualmente fica a Alemanha), ocorria um movimento popular muito semelhante. Para Steve Runciman, trata-se do mesmo fenômeno: "As histórias de Estêvão devem ter chegado à Renânia (no vale do rio Reno) e apenas algumas semanas depois de ele ter estado em Saint Denis, um jovem camponês de nome Nicolau pregava diante do santuário dos Três Reis Magos". 

Ele também dizia que o mar se abriria para que as crianças chegassem a Jerusalém e que elas converteriam os muçulmanos. As semelhanças não param por aí: "Nicolau era um menino camponês de 10 anos, humilde e religioso. Ele chegou a reunir cerca de 7 mil pessoas, mas a média de idade era certamente maior que a dos cruzados franceses", diz Tyerman.

A história dos cruzados germânicos foi mais bem documentada. O antigo bispo de Cremona, Sicardus, relata em um texto da época que o objetivo do grupo de Colônia era ir para o porto de Gênova (na atual Itália) e de lá embarcar para Alexandria, no Egito, de onde seguiria para Jerusalém. 

Ele também afirma que a população dos vilarejos distribuía-lhes comida e apoiava a marcha, que chegou a ter 20 mil integrantes. Por onde passavam, missas eram celebradas e mais gente seguia com eles.

Mas nem as preces nem as aleluias foram suficientes para proteger aqueles meninos durante a travessia dos Alpes. Segundo os Annales Stadenses, textos apócrifos do século 13, apenas um terço do grupo conseguiu vencer as montanhas. Alguns desistiram e voltaram para casa, outros morreram de fome ou de frio.

Chegada em Gênova

Os sobreviventes continuaram a jornada até o litoral e em 25 de agosto de 1212 a procissão finalmente chegou a Gênova. Apavorado com aquele bando de maltrapilhos vagando pela cidade, o governador local deu a eles duas alternativas: quem quisesse se instalar na cidade seria bem-vindo, quem tivesse outra intenção deveria deixar a cidade. 

Cansadas e famintas, algumas crianças conseguiram abrigo nas casas de generosos genoveses. Cada vez menor, a procissão continuou até Pisa, onde novamente se dividiu. Segundo Runciman, alguns embarcaram em dois navios que partiram para a Palestina e também sumiram dos registros históricos. 

Mas a maioria seguiu com Nicolau para Roma, onde foram recebidos pelo papa Inocêncio III, que ficou comovido pela sua fé, mas constrangido com sua insensatez, e pediu que todos voltassem para casa.

Os registros medievais, a maioria escrita por padres e religiosos, não se importaram em relatar a volta desses peregrinos para casa. Segundo os Annales Stadenses, no entanto, o grupo se dispersou pelas aldeias italianas e jamais se ouviu falar de Nicolau.

Trágicos destinos

Em 1230, chegou à França um padre vindo do Palestina, com uma incrível história para contar. Ele dizia ser um dos jovens sacerdotes que seguiu Estêvão a Marselha e embarcou com ele nos navios rumo ao norte da África. Seu relato foi contado por outro religioso, Albericus Trium Fontium, o único texto da época que cita o acontecido. 

Segundo ele, três dias depois da partida, na altura da costa da Sardenha, uma forte tempestade atingiu as embarcações. Duas delas foram arremessadas pelos ventos e ondas fortes contra uma pequena ilha rochosa e naufragaram. Todos os passageiros e a tripulação morreram afogados. 

Os cinco navios restantes seguiram até Alexandria, no Egito. No desembarque, os cerca de 700 sobreviventes foram presos. A generosa oferta dos mercadores era uma armadilha e os jovens integrantes da cruzada foram vendidos como escravos no mercado da cidade.

O jovem padre e alguns outros que sabiam ler e escrever teriam sido comprados pelo próprio governador do Egito, Malek Kamel, que se interessava pela cultura ocidental e empregava-os como intérpretes. Outros foram levados a Bagdá e, desses, nunca mais se ouvira falar.

O relato de Albericus, no entanto, está longe de ser uma unanimidade. "Ele está cheio de inconsistências, mas é provável que esteja baseado em relatos verdadeiros e que seja fiel à história", afirma o historiador Barber. Já para o professor Tyerman, porém, o texto do religioso não passa de literatura. Seja como for, Albericus não explica qual foi o fim de Estêvão, o menino de 12 anos que liderava o grupo.