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Matérias / Religião

Deserdados do cristianismo: A história da excomunhão

Martinho Lutero, Napoleão, Cervantes e até a cantora Sinéad O'Connor fazem parte da longa lista de expulsos da Igreja Católica

Álvaro Oppermann Publicado em 17/04/2019, às 12h00

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A Igreja Católica expulsou uma longa lista de figuras conhecidas - Shutterstock
A Igreja Católica expulsou uma longa lista de figuras conhecidas - Shutterstock

Em 1184, o bispo de Auxerre, na França, Jean de Nevers, excomungou uma cidade inteira. No pátio da igreja da cidade, homens, mulheres e crianças choravam em desespero. Na época, esse tipo de cerimônia reunia multidões. Apinhados, os fiéis aguardavam a danação do próximo com horror e uma pontinha de sadismo. Naquela ocasião, porém, todos foram impedidos de entrar. Afinal, eram eles os julgados. Acompanhado de 12 sacerdotes que empunhavam velas acesas, o bispo entrou pela nave principal da igreja e dirigiu-se ao altar. Lá, recitou a fórmula terrível, extraída do Código Jurídico Canônico: "Nós os excluímos da Santa Madre Igreja no céu e na terra; e nós os declaramos excomungados. Nós os julgamos danados, condenados ao fogo infernal, caso não se arrependam". Tudo isso porque o bispo Nevers tinha uma rixa com um conde local, Pierre de Courtenay, e a cidade ousou apoiar o nobre.

Mais de 200 anos depois, o padre Jan Hus (1369-1415), da cidade de Praga, foi expulso da Igreja duas vezes. A primeira em 1409, pelo papa Alexandre V (1339-1410). A segunda em 1414, por ordem de João XXII (1249-1334), que revisava as decisões do antecessor. Na ocasião, Hus teve a rara chance de se defender pessoalmente. Não adiantou. Ele sofreu nova excomunhão, foi enviado a um calabouço no atual sudoeste da Alemanha e morreu na fogueira. O que Jan Hus e os moradores de Auxerre têm em comum é que eles foram vítimas de uma das instituições mais tradicionais da Igreja Católica. Ao longo dos séculos, milhares de pessoas foram punidas com a medida - entre elas, personalidades históricas como Napoleão e Fidel Castro. 

A palavra "excomunhão" vem do latim ex communio, ou "fora da comunidade". A princípio, seu teor seria medicinal, e não punitivo: o excomungado é temporariamente exilado a fim de que se arrependa. Mas não perde a condição de fiel, já que o batismo não pode ser apagado. "A excomunhão é uma sanção penal. Não significa condenação eterna", diz Jerônimo Trigo, professor de teologia da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. Ou seja: para a Igreja, nem todo excomungado vai para o inferno.

Desde o Concílio de Niceia, em 325, que criou a punição, o afastado não recebe sacramentos. A partir do Concílio de Lyon, em 1215, a medida passou a ser de dois tipos, latae sententiae (automática) ou ferendae sententiae (dada por sentença judicial). No primeiro caso, o católico que comete um pecado punível com a medida (como o aborto) está expulso imediatamente. No segundo, a sentença é dada por um juiz - que pode ser o papa, um concílio geral, um concílio provincial, um bispo ou um superior de uma ordem religiosa. Padres não tem esse poder.

Portanto, na teoria, a excomunhão seria simplesmente um grande puxão de orelhas. Mas foi assim na prática?

Contra os hereges

O livro bíblico dos Atos dos Apóstolos registra a mais antiga referência a um expulso, Simão, o Mago. "Ele era especialista em magia e arrebanhava multidões. Isso não era bem visto pela aguerrida comunidade de primeiros cristãos", diz o professor de teologia Jon Mark Robertson, autor de Christ as Mediator ("Cristo como mediador"). Depois de 325, o afastamento virou arma em caso de divergências teológicas. Começou então uma saraivada de exclusões mútuas entre os líderes da Igreja. Quatrocentos anos depois, a prática estava disseminada. O rei franco Pepino, o Breve (714-768) ordenou que todo excomungado fosse expulso do território francês. Na Inglaterra, os punidos não podiam mover ações judiciais (e essa lei durou até 1813).

Não existe um equivalente exato da excomunhão em outras religiões, com uma exceção: o judaísmo. A primeira menção à punição está no Livro do Êxodo, no código da aliança entre Javé e o povo de Israel. Havia uma exclusão de até 30 dias e uma permanente. Em 1657, o filósofo holandês de origem judaica Baruch Spinoza (1632-1677) conheceu essa medida. Os rabinos de Amsterdã decidiram pela excomunhão quando o jovem pensador divulgou suas ideias a respeito de Deus (que seria apenas um mecanismo imanente da natureza) e da Bíblia (para ele, o livro não deveria ser tomado ao pé da letra). Em reunião rabínica realizada na noite de 27 de julho, foi lida a sentença: "Anatematizamos, execramos, amaldiçoamos e expulsamos". A única forma de voltar ao convívio social seria pela retratação. O pensador preferiu o isolamento Wikimedia Commons

Na Idade Média, quando o Vaticano vivia às turras com reis rebeldes, o poder de coerção foi fundamental. Nos séculos 11 a 13, foram expulsos vários imperadores do Sacro Império Romano, como Frederico II (1194-1250) e Luís IV (1282-1347). Essa mistura de religião e politicagem tinha um tom farsesco, principalmente em casos evidentes de abuso. Por exemplo: o escritor espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), autor de Dom Quixote, foi punido em 1587 por um motivo banal: funcionário do Fisco, ele brigou com os padres de Sevilha depois de recolher pão e cevada da Igreja para uso do Exército. O bispo o excomungou durante um processo humilhante. A decisão foi anulada no ano seguinte.

Ainda no século 16, a medida voltou a ser adotada contra religiosos questionadores. Como Martinho Lutero, que em 1520 foi expulso por Leão X (1475-1521). Mas os tempos eram outros, e a autoridade da excomunhão não era mais a mesma. Anos depois, o teólogo francês João Calvino (1509-1564) reagiria à sua simplesmente se mudando para Estrasburgo.

A excomunhão virou arma ideológica. Em 1984, o ex-cardeal Joseph Ratzinger condenou o teólogo Leonardo Boff a dois anos de "silêncio obsequioso" por defender a Teologia da Libertação. O processo que foi conduzido pelo ex-papa Bento XVI, debateu a exclusão do brasileiro.

Diga-me quem julgas...

"Atos de excomunhão, muitas vezes, são fruto de estratégia teológica", afirma o historiador italiano Alberto Melloni. Como essa estratégia varia ao longo do tempo, as alterações em seu uso ajudam a entender a evolução da própria Igreja. "A excomunhão medieval, de caráter político, tornou-se inócua. Na Inquisição, ela foi marcada pelo fanatismo. Hoje, tem fundo ideológico", diz a historiadora María Tausiet, da Universidade de Saragoça, na Espanha. Ou seja, mais que uma avaliação sobre a pessoa punida, a medida é também um juízo sobre quem excomunga. Nesse sentido, a Igreja também está no banco dos réus.

Os sem-sacramento

Casos ilustres de expulsão da Igreja ao longo dos séculos

Henrique VIII (1491-1547)

Wikimedia Commons

O segundo casamento com Ana Bolena (1500-1536) gerou um conflito com o papa Clemente VII (1478-1523), que expulsou o rei. Em resposta, Henrique criou a Igreja Anglicana.

Napoleão (1769-1821)

Wikimedia Commons

Quando se tornou imperador francês, em 1804, retirou a coroa das mãos do papa Pio VII (1742-1823) e coroou a si mesmo. Excomungado em 1809, mandou prender o papa.

Juan Perón (1895-1974)

Wikimedia Commons

A punição ao presidente argentino, em 1955, foi uma reação do papa Pio XII (1876-1958) à expulsão de dois bispos católicos, Manuel Tato e Ramón Novoa, críticos do governo.

Joe Di Maggio (1914-1999)

Reprodução

O jogador americano de beisebol foi punido em 1954 por se casar em segundas núpcias com a atriz Marilyn Monroe (1926-1962). A medida foi revogada quando ela morreu, em 1962.

Fidel Castro (1926-2016)

Reprodução

O papa João XXIII (1881-1963) expulsou o ex-ditador cubano em janeiro de 1962. O motivo é evidente: a instalação de um governo comunista de Cuba.

Sinéad O'Connor (1966)

Reprodução

Em 1999, a cantora irlandesa recebeu a pena após ser ordenada sacerdotisa da Igreja Independente Católica. Na ocasião, ela disse que gostaria de ser chamada Madre Bernadete Maria.

Saiba mais

Excommunication in the Middle Ages, Elisabeth Vodola, 1986