Busca
Facebook Aventuras na HistóriaTwitter Aventuras na HistóriaInstagram Aventuras na HistóriaYoutube Aventuras na HistóriaTiktok Aventuras na HistóriaSpotify Aventuras na História
Matérias / Idade Média

Existia ateu na Idade Média?

Não crer em Deus era como não acreditar na existência do ar. Mas havia questionamentos sobre a importância Divina na vida humana

Maria Carolina Cristianini Publicado em 16/09/2019, às 08h00

WhatsAppFacebookTwitterFlipboardGmail
Reprodução
Reprodução

Idade das Trevas, é o consenso hoje, foi um exagero dos iluministas. A Idade Média teve muitos avanços, como o renascimento da filosofia e a criação da educação superior. Mas, definitivamente, isso veio num contexto dominado pelo pensamento religioso. 

Ateu definia não uma posição filosófica válida, mas um tipo de insanidade. Negar a Deus era como negar o formato esférico da Terra. De acordo com Christopher Bacich, doutorando no tema pela Universidade Stanford, simplesmente dizer que Deus não existe não era uma crença – ou descrença – concebível na Idade Média, “já que toda a cultura da época afirmava, com força, a existência de Deus, tanto filosoficamente quanto teologicamente”.

A questão, na verdade, mora alguns passos atrás. “Estou absolutamente certo de que havia pessoas que não acreditavam nos princípios de suas supostas religiões, fossem cristãs, judias, muçulmanas ou pagãs. Mas a maioria delas acreditava em Deus da mesma forma que acreditava na água, no ar e em outras coisas essenciais”, afirma Daniel L. Smail, do Departamento de História da Universidade Harvard, nos EUA.

O que não quer dizer que não existiam dúvidas em cima do que era pregado. Questões práticas da vida, como ter filhos, viver e morrer, entravam em conflito com diversos conceitos, incluindo o nascimento a partir de uma mulher virgem e a ressurreição.

Para Dorothea Weltecke, historiadora alemã, no livro The Oxford Handbook of Atheism (“O Manual de Oxford sobre Ateísmo”), “nenhum ensino teológico, seja esse judeu, muçulmano ou cristão (ou pagão), ficou sem ser questionado por polêmicas vindas de fora, por grupos opositores de dentro ou até por aqueles que, com as melhores das intenções, não podiam evitar a não convicção”.

Algumas das objeções feitas durante a Idade Média chegaram a ser denunciadas como ateísmo. Mas estavam mais para um jeito de crer. Por exemplo: o padre Thomas Müntzer, um dos defensores das ideias de Martinho Lutero, rejeitava a revelação divina da Bíblia (isto é, era só um livro para ele), mas era profundamente religioso. O conceito do ateísmo não pode nem ser considerado um tabu para a época, de acordo com Bacich, por se tratar de algo ilógico, sem o menor sentido. 

Irônica origem

Se negar a existência de Deus não era concebível, “em vez disso, houve a negação de Deus como summum bonum, o bem mais elevado”, conta Bacich. A rejeição dessa ideia foi a real questão que começou a aparecer na cultura medieval do início dos anos 1100: o que fazia a vida valer a pena, o que dava sentido a ela. “Nessa época, parece que os cristãos começaram a notar algumas pessoas ao seu redor para quem Deus não tinha uma real importância. Elas estariam ‘presas’ ao aqui e agora, cegas para qualquer coisa além de seus próprios impulsos, prazeres e poder”, explica Bacich.

Diante desse cenário, um filósofo ganhou importância durante o final da Idade Média e o Renascimento: o grego Epicuro (341-270 a.C.). Para ele, o acaso governava o Universo, os deuses – se existissem – não se importavam com a humanidade e, quando uma pessoa morria, a alma perecia com o corpo. Epicuro negou qualquer vida após a morte e afirmou que ao aceitar isso é que se teria paz. 

Ironicamente – e contrário ao clichê da Idade das Trevas – “debates escolásticos da Idade Média podem ter tido alguma influência no desenvolvimento do ateísmo moderno. Teólogos e filósofos medievais examinaram, levaram a sério, questionaram e se engajaram com pontos de vista que eram diferentes dos deles”, diz Bacich.

Um desses pontos é justamente a imortalidade da alma – já citada em Epicuro e bastante debatida nos anos 1200, quando De Anima (“Da Alma”), texto do grego Aristóteles, foi redescoberto junto com as ideias do filósofo muçulmano Ibn Rushd (Averroes) – para quem a alma morria com o corpo.

“Esses debates mostram que filósofos e teólogos medievais estavam lutando com a possibilidade de não haver vida após a morte, o que certamente implicaria a rejeição da maioria (se não de todos) na crença cristã e demandaria um entendimento muito diferente de Deus e da Sua existência.” 

Esse tipo de inquietude só aumentaria com a Reforma Protestante. Ainda hoje se discute se figuras do século 17, como Descartes, Hobbes e Spinoza não eram ateus no armário. O primeiro a sair dele é o nobre polonês Kazimierz  Lyszczynsky, que escreveu um tratado sobre a não existência de Deus, e foi executado por isso em 1689.

No século seguinte, desconfia-se haver muitos ateus, mas, mesmo no Iluminismo, poucos assumiram essa posição de forma não ambígua. Ser ateu só se tornou seguro no século 19.