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Matérias / Nazismo

A amarga sifônia de Fania Fénelon: a judia que teve a vida poupada por sua voz

Durante dois anos em Auschwitz, Fénelon era obrigada a cantar para oficiais nazistas e presos que caminhavam para as câmaras de gás

Raquel Grisotto Publicado em 27/01/2020, às 11h49 - Atualizado às 10h26

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Vanessa Redgrave como Fania Fénelon em A Amarga Sinfonia de Auschwitz (1980) - Divulgação
Vanessa Redgrave como Fania Fénelon em A Amarga Sinfonia de Auschwitz (1980) - Divulgação

Fania Fénelon foi mais uma das pessoas salvas pela arte. Sua sobrevivência ao holocausto, no fim, rendeu um livro e inspirou um filme. Em Auschwitz, Fénelon teve lá suas regalias: Tomava banho todos os dias, ia ao banheiro sempre que tivesse vontade e não precisava dividir o colchão. Tinha roupas quentes, sapatos, escova e pasta de dentes. Magra, pouco mais de 1,5 metro de altura, ela pertencia à elite das prisioneiras dos campos de concentração da Polônia.

Ao lado de outras 80 mulheres, vivia no alojamento especial da orquestra feminina do complexo de Auschwitz e estava protegida da selvageria que vitimou mais de 1 milhão de pessoas entre 1940 e 1945 na maior fábrica da morte do império nazista.

Diplomada pelo Conservatório de Paris – foi aluna de Germaine Martinelli, famosa soprano francesa –, Fania era pianista e cantora talentosa. Como a gueixa Cio-Cio-San, de Madame Butterfly, da ópera de Giacommo Puccini, conseguiu agradar até os oficiais de Hitler.

Artista dos cabarés em Paris e com passe livre para circular durante a noite numa cidade dominada por tropas alemãs (a capital francesa foi tomada em junho de 1940), Fania (de batismo, Gold­stein) atuava com amigos na Resistência francesa. Filha de judeus, foi denunciada e, em 1943, capturada pela SS, a polícia nazista. Passou nove meses numa prisão francesa antes de ser enviada a Oswiecim, a pequena cidade que abrigava o complexo.

Chegou a Auschwitz em 23 de janeiro de 1944. Logo reconhecida pela violoncelista da orquestra, foi resgatada do terror do bloco de quarentena, um barracão imundo, abarrotado de gente. “Quando uma guarda entrou chamando por Madame Butterfly, não acreditei. Será que aquilo estava mesmo acontecendo, ou os poucos momentos naquele horror já haviam tirado minha sanidade?”, conta em sua biografia Playing for Time (“Tocando por um tempo”, no Brasil). Escrito em parceria com a jornalista Marcelle Routier, o livro, apesar de narrar as atrocidades do Holocausto, é um relato de coragem e fé.

Fania e suas companheiras serviam de atração para os oficiais da SS e prisioneiros. Tocavam todos os dias diante dos que marchavam em direção aos campos de trabalho forçado das indústrias químicas e de borracha sintética da I.G. Farben, em Auschwitz III.

E também se apresentavam nos momentos em que presos com menos sorte eram levados para a morte, nas câmaras de gás. Segundo a teoria dos nazistas, a música dava ares de normalidade ao genocídio e facilitava o trabalho. Os oficiais gostavam, além disso, de ouvir música para relaxar.

Cinderela de botas

Foi Rudolf Höss, o comandante de Auschwitz entre 1940 e 1943, quem instituiu a formação de uma orquestra. O grupo de músicas era responsabilidade de Maria Mandel, primeira entre as mulheres na hierarquia da polícia nazista dentro do complexo até 1942. A orquestra 100% feminina era motivo de orgulho para a SS.

Os oficiais prezavam pelo grupo e não admitiam interferência no trabalho de suas protegidas. Entre os muitos privilégios, as garotas só não tinham direito a mais comida – embora fizessem as refeições num alojamento exclusivo, distante das demais prisioneiras.

A preferência de Mandel por Butterfly era evidente e, por isso, Fania foi beneficiada pelos nazistas. Satisfeitos com uma performance, os oficiais davam às garotas direito de ir ao “Canadá” – espécie de mercado negro dentro do complexo. Ali elas encontravam roupas, sapatos, batons, artigos de higiene e bebidas. Eram miudezas que haviam sido confiscadas dos presos na chegada ao campo, mas que não tinham valor suficiente para ser enviadas a Berlim.

Numa ocasião, diante da dificuldade de Fania em encontrar sapatos de seu tamanho (34), Mandel saiu, ela mesma, à procura de um par de botas. Ao voltar, ordenou: “Sente-se e dê-me seus pés”. A orquestra observou estarrecida: Lagerführerin Maria Mandel, a todo-poderosa da polícia nazista, de joelhos para calçar uma judia. “Pés aquecidos são fundamentais para uma boa voz”, explicou Maria.

Enquanto a nazista Mandel garantia sobrevida às garotas, era da regente, a judia Alma Rosé, a tarefa de conseguir daquele grupo de meninas (com idades entre 17 e 20 anos) o empenho necessário para satisfazer os desejos da SS. Violinista renomada, sobrinha e filha de músicos, Alma não admitia amadorismos. Batia no rosto das moças e, com a batuta, golpeava a cabeça de quem errasse uma única nota.

Ex-adepta do Nacional Socialismo – só havia deixado de considerar Hitler a melhor solução para a Alemanha após deparar com os crimes cometidos pelo regime – a maestrina trancafiava as moças por até 20 horas em ensaios para garantir o sucesso de alguma apresentação.

Ouvidos ignorantes

Orquestra feminina de Auschwitz / Crédito: Domínio Público

Em meados de 1944, Auschwitz não tinha espaço para mais gente. Dos pouco mais de 10 mil prisioneiros da fase inicial, em 1940, os 40 subcampos comportavam nessa época cerca de 130 mil pessoas, entre judeus, ciganos e presos políticos.

Hitler havia anunciado o que chamava de “Solução Final” anos antes e, sob orientação de Heinrich Himmler, chefe da SS e idealizador da monstruosa estrutura das prisões no Leste Europeu, os oficiais nos campos estavam empenhados em garantir a purificação da Europa, conduzindo ações de extermínio de forma cada vez mais eficiente.

Dos comboios que chegavam diariamente, apenas homens e mulheres jovens que demonstravam ainda certa disposição para o trabalho tinham chance de sobreviver. Idosos, grávidas e crianças seguiam dos trens diretamente para as câmaras de gás.

Nessa fase pesada, os cinco crematórios de Auschwitz operavam com capacidade máxima, ininterruptamente. Quanto mais intensas as atividades do complexo, maior a demanda por música ao longo do dia.

Além de Mandel e do próprio Himmler, que assistiu à orquestra das garotas durante uma visita ao campo, era comum a presença de espectadores como Josef Kramer, o comandante de Birkenau, e Josef Mengele, executor das mais famosas atrocidades do campo de extermínio por suas experiências com crianças e gêmeos.

Elite dos geneticistas de Hitler na busca por uma solução científica para o aperfeiçoamento da raça humana, doutor Mengele – que veio viver no Brasil depois da Segunda Guerra, onde morreu, em 1979 – é descrito por Fania como “um cavalheiro, dotado de charme irresistível”.

Num ambiente tão inóspito a qualquer tipo de prazer, as visitas do médico à sala de música chegavam a provocar discreto alvoroço entre as meninas.

Mengele preferia Mozart e Mandel, Puccini. Mas, no geral, eram ecléticos os oficiais da SS. Os programas da orquestra eram um pot-pourri de compositores alemães, austríacos e italianos: Johann Strauss I (Danúbio Azul e as Valsas Vienenses); Johannes Brahms (com Danças Húngaras); Giuseppe Verdi (com a ópera Rigoletto); além de Robert Schuman, Franz Schubert e até mesmo o contemporâneo Peter Kreuders estavam entre os mais requisitados. “Na verdade, eles gostavam muito de música, mas entendiam bem pouco a respeito”, diz Fania. Discretamente, ela incluía nos programas canções compostas por judeus. Sem notar, eles ouviam, por exemplo, Felix Mendelssohn (Primeiro Movimento em Ré Menor para violino) e Antonín Dvorák (que “adoravam”).

Orientada a colocar mais um alemão no repertório, Ludwig van Beethoven, a copista não teve dúvidas: alegou lembrar de cabeça apenas o primeiro movimento da Quinta Sinfonia. A obra popularizou-se durante a Segunda Guerra Mundial por abrir os noticiários da rede inglesa BBC.

A emissora manteve-se engajada na Resistência durante todo o combate, transmitindo informações importantes aos soldados no front e exaltando as vitórias das tropas aliadas. O início da composição, com três notas curtas e uma longa, reproduz o código Morse para a letra V – sinal que virou marca registrada de Winston Churchill, o primeiro-ministro britânico, na ocasião.

Liberdade ao vivo

Em janeiro de 1945, os judeus de Auschwitz minutos antes de serem libertos / Crédito: Domínio Público

As tropas aliadas, a essa altura, fim de 1944, já vislumbravam a queda do exército alemão. Paris havia sido libertada em setembro e, no mesmo ano, o complexo de Auschwitz começou a ser evacuado, após as enormes dificuldades dos nazistas em território russo. O Exército Vermelho chegou a Auschwitz em 27 de janeiro de 1945. Restavam pouco mais de 7 mil prisioneiros no campo. Fania, suas colegas de orquestra e a maioria dos presos já estavam em Bergen-Belsen.

O campo alemão não tinha infra-estrutura alguma e apenas um crematório. Os barracões de madeira, a fiação adaptada para prover energia ao alojamento, tudo foi sendo construído com a chegada dos novos ocupantes. Estava claro que se tratava de uma situação emergencial. Esporadicamente a SS cortava a água e a comida. Não havia câmaras de gás e os assassinatos eram com injeção de veneno no coração das vítimas. A maior parte, no entanto, morria de tifo, desnutrição ou frio.

A música não tinha lugar. Sem Mandel, a orquestra deixou de existir. Das 80 meninas do grupo, restavam vivas 47. “Em Bergen-Belsen, pela primeira vez, tive medo de não resistir”, assume a cantora. Sujeita às brutais condições de prisioneira comum, Fania havia contraído tifo e pesava, seis meses depois de chegar ao novo campo, apenas 29 quilos.

“Seremos todas mortas às 3 da tarde”, foi o que ouviu ao acordar em 15 de abril de 1945, na enfermaria. Às 11 da manhã, as portas do barracão foram abertas. Um soldado britânico entrou no galpão. “Achamos vocês por sorte. Não sabíamos que havia um campo de concentração aqui.” Era o fim. Desorientadas, rindo e chorando, as garotas cantavam e insistiam para que Fania também desse uma canja.

O soldado providenciou um microfone e o entregou à soprano. Era para a BBC: o momento de avisar ao mundo que estavam livres. Ela começou com God Save the King, o hino nacional britânico, e terminou em coro com as russas, entoando A Internacional.

Entre 1973 e 1975, Fania escreveu suas memórias. Em 1980, o livro inspirou o filme de TV A Amarga Sinfonia de Auschwitz (Playing for Time no original), do dramaturgo Arthur Miller, vencedor de quatro prêmios Emmy. A produção foi protagonizada por Vanessa Redgrave. A atriz, conhecida por sua simpatia pela OLP (Organização para Libertação da Palestina), havia usado seu discurso no Oscar de 1978 para fazer duras críticas à posição de Israel em relação às questões árabes.

Por isso, Fania jamais escondeu sua indignação pela escolha de Redgrave para o papel principal. O livro da cantora também serviu de inspiração para musicais nos anos 80 e 90. E continua a inspirar artistas.

Ano passado, o compositor alemão Stephan Heucke se baseou na história da musicista para escrever a ópera Das Frauenorchester von Auschwitz (“A orquestra de mulheres de Auschwitz”) e relembrar o Holocausto na Alemanha. Fania morreu de câncer, em Paris, em 1983.