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Matérias / Brasil

Forte Santa Cruz: Alcatraz do Brasil

Por quatro séculos, a fortaleza de Santa Cruz da Barra, em Niterói, com seu difícil acesso, tornou fugas quase impossíveis e protegeu o Rio de Janeiro de invasões inimigas

Flávia Ribeiro Publicado em 18/01/2019, às 11h00

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Forte Santa Cruz, no Rio de Janeiro, hoje em exposição para o público com entrada franca. - Getty Images
Forte Santa Cruz, no Rio de Janeiro, hoje em exposição para o público com entrada franca. - Getty Images

Não é exagero dizer que, nos séculos 17 e 18, Santa Cruz da Barra era para nós mais ou menos como Alcatraz foi para os americanos no século 20: de acesso difícil, quase impossibilitava as fugas. Suas celas foram construídas para a custódia de presos militares, como parte integrante do regulamento disciplinar das Forças Armadas. “Entretanto, ao que consta, a fortificação chegou a abrigar presos comuns. Foi utilizada para a custódia de militares insubordinados e rebeldes, bem como de presos políticos, notadamente durante os períodos imperial e republicano”, diz Ornellas. Muito além de servir de cárcere, porém, a construção era uma das principais fortificações do Rio de Janeiro. Por causa dela, durante séculos a cidade esteve livre de diversos invasores, principalmente franceses e holandeses.

Numa noite de 1710, fraco e machucado após meses em um cárcere úmido e imundo, o francês, Gaston Raymond de la Salle, escala sem qualquer proteção o íngreme morro do Pico, em Niterói, Rio de Janeiro. O risco de morrer ao cair sobre as pedras ou nas águas revoltas daquele trecho da baía de Guanabara era alto. Mas foi provavelmente assim que o corsário (espécie de pirata a serviço do rei) Gaston  fugiu da prisão, na fortaleza de Santa Cruz da Barra, fortificação que guardava, pelo lado de Niterói, a entrada da barra da baía – um estreito trecho de 1520 metros por onde chegavam as embarcações na época.

Há outra versão para a espetacular fuga do francês. Nela, ainda mais perigosa, ele teria escapado pelo mar, nadando até o morro do Pão de Açúcar – e vencendo uma corrente fortíssima. Tudo depois de conseguir, ninguém sabe exatamente como, sair de sua cela e passar pela muralha da fortaleza, que media de 5 a 6 metros e era fortemente guarnecida. “Os dois jeitos, mesmo vistos hoje, parecem impossíveis. O fato é que ele conseguiu fugir de lá. Há relatos posteriores de que ele voltou a morar na França”, diz o historiador César Ornellas, coordenador do curso de História do Centro Universitário La Salle (o nome da universidade ser o mesmo do corsário é mera coincidência), de Niterói, e autor do artigo Fortes da Banda D’Além: Niterói na Defesa da Baía de Guanabara.

Partes do interior do forte Santa Cruz Reprodução

Situada na extremidade da margem oriental da baía de Guanabara, numa península rochosa à entrada da barra e em frente ao complexo de fortificações de São João, Santa Cruz da Barra demarcava o canal de entrada dos navios de maior porte. “Ela era bastante segura, quase inexpugnável, como diziam os engenheiros militares do século 18”, diz Ornellas. “Desde a sua construção, no século 16, até o início da década de 1940, não havia estrada de acesso à fortaleza. O acesso costumeiro era feito por via marítima, com desembarque na parte abrigada das ondas. Mar violento, fortes correntezas, isolamento por terra, forte esquema de segurança e a tradição de repressão aos revoltosos dificultavam as tentativas de fuga. Tanto que essa, de La Salle, foi a única até o século 20.”

Forçando a barra

A fortaleza começou a ser construída em 1555 – e, por mais irônico que pareça, justamente por ordem de um francês. Nicolau Durand de Villegaignon chegara ao país naquele ano com a intenção de fundar uma colônia, a França Antártica. Os portugueses acabaram expulsando os franceses do local em 1567 e herdaram, além da construção de Santa Cruz da Barra, a fortaleza de Villegaignon, na mesma baía de Guanabara. Foi durante a campanha para expulsar os invasores que o militar português Estácio de Sá fundou, em 1º de março de 1565, entre o morro Cara de Cão e o Pão de Açúcar, no local onde foi erguida a fortaleza de São João, São Sebastião do Rio de Janeiro. Cidade que, como se vê, tem no passado a presença importante não apenas de portugueses, índios e negros, mas também de franceses, holandeses e piratas, com suas pilhagens e aventuras dignas de cinema e literatura.

Santa Cruz da Barra passou a fazer parte do sistema de defesa da baía de Guanabara. Sofreu ampliações em meados do século 17 e entre 1768 e 1769, além de acréscimos entre 1862 – época da Questão Christie, de rompimento de relações diplomáticas do Brasil com a Grã-Bretanha – e 1870, quando houve a finalização de seus dois andares de casamatas, os abrigos para estoque do material de abastecimento.

No século 18, chegou a contar com 44 canhões. Deles, saíam tiros se algum navio tentasse entrar à noite na barra. O porto só era aberto do nascer ao pôr-do-sol. “Se o navio quisesse entrar, era advertido por uma salva de canhões. Se insistisse, era alvejado”, diz César Ornellas. Nem todo esse esquema de segurança, porém, era capaz de acalmar a população do Rio de Janeiro, que se alarmava cada vez que via bandeiras holandesas ou francesas. Em 1695, por exemplo, o engenheiro francês François Froger passou pelo Rio de Janeiro e por Salvador em uma longa viagem, que resultou no livro Relation d’un Voyage Fait en 1695, 1696 e 1697 aux Côtes d’Afrique, Détroit de Magellan, Brésil, Cayenne et Isles Antilles (“Relato de uma viagem feita em 1695, 1696 e 1697 pelas costas da África, Estreito de Magalhães, Brasil, Caienas e Antilhas”, sem tradução em português). Ele conta que, ao avistarem os navios com bandeiras da França, os moradores do Rio mandaram suas mulheres, filhos e bens para o interior, temendo uma invasão seguida de saque. Não tinham motivo para tanto medo. Ao menos não daquela vez. Froger não era um corsário: estava em missão diplomática. Durante sua estadia, ele observou os hábitos da população e desenhou mapas detalhados da entrada da baía da Guanabara, com a localização de cada bateria ou fortaleza.

Partes do interior do forte Santa Cruz Reprodução

Foram esses mapas que deram subsídios para que, 15 anos depois, os temores da população se tornassem realidade. Em 1710, outro corsário francês, Jean-François Duclerc, à frente de uma frota de cinco navios e pouco mais de mil homens, tentou invadir a cidade pela entrada da barra. Impedido pelo fogo pesado especialmente da fortaleza de Santa Cruz, Duclerc aportou em Guaratiba, na baía de Sepetiba, e tentou invadir o Rio a pé. Acredita-se que aí tenha surgido a expressão “não adianta forçar a barra” – usada até hoje para caracterizar algo difícil de ser conseguido.

A luta entre franceses e portugueses deu-se em pleno centro da cidade. Duclerc acabou preso, com sua tripulação, e assassinado sob circunstâncias nunca esclarecidas na casa do tenente Tomás Gomes da Silva, que tinha sua custódia. Entre os homens do corsário estava o tenente La Salle – o mesmo que abre nossa matéria e que protagonizaria a fuga mais fantástica do Brasil colonial. Preso por participar do ataque, La Salle sabia que responderia por crime de lesa-majestade (traição ao rei ou a seu reino) e que só teria dois destinos em vista, caso não tentasse fugir: pena capital ou degredo perpétuo na África.

Quando ela falhou

A vida na masmorra da fortaleza de Santa Cruz da Barra não era fácil. “Celas subterrâneas, abaixo do nível do mar, úmidas e frias, submetidas ao permanente rigor do vento que soprava forte na entrada da baía de Guanabara e assobiava encanado como um bloco de entrudo pelos corredores internos, num constante convite a infecções pulmonares. Ratos infestavam todos os cantos, o que multiplicava o contágio dos presos pelo cólera-morbo”, descreve o jornalista Carlos Marchi em Fera de Macabu, que conta a história do fazendeiro Motta Coqueiro, uma das últimas pessoas a morrer na forca no Brasil, e que esperou julgamento na terrível prisão, em 1855.

La Salle foi o único preso que conseguiu escapar da fortaleza de Santa Cruz desde o início de sua construção, em 1555, até 1925, quando os tenentes Hugo Bezerra e Olímpio Falconière da Cunha, presos mas não encarcerados, fugiram disfarçados na madrugada de 8 para 9 de março. Cinco anos depois, em 1930, o capitão Juarez Távora e os tenentes Estillac Leal e Alcides Teixeira de Araújo, presos por sua participação no movimento tenentista (revolta promovida por oficiais do Exército contra o governo), também fugiram.

Partes do interior do forte Santa Cruz Reprodução

Se o cárcere falhou em três ocasiões, foi apenas uma vez que uma frota corsária conseguiu passar pelos canhões do forte e invadir o Rio de Janeiro. O feito pertence ao francês René Duguay-Trouin, que chegou ao Rio em 1711, com 18 navios e 6 mil homens. A serviço do rei francês Luís XIV, ele tomou a cidade como refém por dois meses, saqueou-a sem piedade e só saiu depois de receber resgate pago pelo governador Francisco de Castro Morais – com dinheiro dos cofres públicos. Naqueles tempos, era comum piratas receberem missões de pilhagens dos reis, que pretendiam enfraquecer seus inimigos.

O estrago promovido por ele valeu por todos os outros que tentaram. Além do resgate, a escritora Alice Maryan, autora de La Salle, o Fugitivo da Fortaleza de Santa Cruz, registra que os corsários pilharam cerca de 736 quilos de ouro em barra e em pó, 1 tonelada de moedas de ouro novas, 100 quilos de moedas velhas de ouro, 12 quilos de tostões, 1484 caixas de açúcar, 64 canhões de ferro e mais de 1200 barbatanas de baleia (que serviam para fazer espartilhos e armações de saias), entre outros produtos. Duguay-Trouin – que acabou perdendo cerca de metade da pilhagem com o naufrágio de dois de seus navios – só conseguiu tomar a cidade como refém porque a fortaleza de Santa Cruz e outras fortificações na entrada da barra estavam desguarnecidas, por ordem do governador Francisco de Castro Morais. “Ele temia que corsários tomassem as fortalezas e usassem suas armas contra a cidade, então resolveu transferir boa parte de seus armamentos e munição para os fortes de dentro do Rio”, afirma Ornellas. Guarnecida, impediu, entre outras tentativas, invasões espanholas no século 18.

A Fortaleza não funciona mais como presídio. Na defesa da nossa costa, seu último disparo, de aviso, foi dado em 1955 contra o cruzador Tamandaré. Tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional desde 1939, hoje pode ser visitada por turistas, que encontram mais de 40 peças de artilharia de diversos períodos, as masmorras, a capela de Santa Bárbara (construída no século 17), o relógio de sol (de 1820), o local de enforcamentos e o paredão de fuzilamentos, entre outros artefatos históricos. Além, claro, de uma vista belíssima.


Saiba mais

Fortes da Banda D’Além: Niterói na Defesa da Baía de Guanabara, César Augusto Ornellas Ramos, Sociedade Amigos do Centro de Memória Fluminense, Niterói, 2004

Fortificações do Brasil, Coronel Aníbal Barreto, Biblioteca do Exército Editora, Rio de Janeiro, 1958