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Matérias / Drogas

Medo e delírio em Copacabana: Guerra às drogas no Brasil

Dos marinheiros da época ao descobrimento ao crack. Como o governo e a sociedade lidaram com a questão

Heitor Pitombo Publicado em 28/08/2019, às 08h00

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Cocaína, heroína e maconha: velha história - Crédito: Pixabay
Cocaína, heroína e maconha: velha história - Crédito: Pixabay

Há 30 anos, em setembro de 1987, o pesqueiro panamenho Solana Star, perseguido pela Polícia Federal, despejou 22 toneladas de maconha no litoral brasileiro. Durante meses, as praias do Sul e Sudeste foram invadidas por gente buscando freneticamente latas de alumínio. 

Assim como no verão da lata, os primeiros carregamentos de Cannabis indica chegaram ao Brasil por mar. Embarcadas em caravelas portuguesas, em 1549, as mudas foram trazidas por escravos e marinheiros, apresentados a elas na Índia. Chamada de bang pelos indianos, era diferente da Cannabis sativa Linnaeus que os europeus conheciam desde as invasões islâmicas da Península Ibérica e cultivavam principalmente por causa das fibras, que dão uma lona de alta qualidade, usada nas velas dos navios.

Conhecida como cânhamo, essa variedade não serve para propósitos recreativos e medicinais. Outra versões da sativa, sem o Linnaeus, são mais fortes que a indica, mas só chegaram bem depois.

Os colonos trataram de espalhar sementes da erva, em ambas as versões, por todo o território. Em 1785, o vice-rei Luiz de Vasconcellos e Souza enviou a São Paulo um ofício (com 16 sacas de sementes e um manual de cultivo), pedindo encarecidamente aos agricultores que plantassem Cannabis. No século 19, era vendida amplamente como remédio, assim como era a cocaína. 

Cigarro de pobre

O consumo estava enraizado nas tradições populares, entre ex-escravos, índios e repentistas do Nordeste, aumentava a repressão ao consumo. A primeira lei restritiva é de 1830, quando a "venda e o uso do pito de pango" (cachimbo de barro para maconha) foram proibidos no Rio de Janeiro - três dias de cadeia para o negro que pitasse. 

Com a abolição da escravidão, em 1888, os negros ganharam autonomia, mas continuaram a sofrer com desqualificação social. A capoeira foi proibida no ano seguinte à Lei Áurea, e, em 1890, o governo da República criou a Seção de Entorpecentes Tóxicos e Mistificação, para impedir o denominado baixo espiritismo. Ou seja, o uso da maconha em rituais de origem africana, como o candomblé. 

Textos de cunho racista, de 1916, passaram a defender a tese de que a Cannabis levava negros e nordestinos ao crime. Um dos propagadores dessa teoria foi o médico Rodrigues Dória: "Um indivíduo já propenso ao crime, pelo efeito exercido pela droga, privado de inibições e de controle normal, com o juízo deformado, leva à prática seus projetos criminosos". Vários médicos com ideias de pureza racial temiam que o uso da maconha contaminasse os cidadãos brancos. 

Assim, a partir de 1917, a receita médica passou a ser obrigatória para comprar a Cannabis. E, em 1932, ela entrou na lista de substâncias proscritas. O Estado Novo de Getúlio Vargas institucionalizou a repressão e estabeleceu pena de prisão para os usuários. O governo também negociou com os fiéis do candomblé a retirada da maconha dos cultos, em troca da legalização da religião.

Crédito: Reprodução

Pó de rico

Bem menos popular, a cocaína também passou de remédio à posição de droga criminalizada e antissocial. Depois da proibição, só se tornou novamente comum a partir dos anos 1970, sempre como um produto das classes mais abastadas. Ela surgiu como analgésico e começou a ser consumida no Brasil no fim do século 19.

Laboratórios como o Grimault indicavam o vinho de coca para pessoas fracas e "jovens pálidas e delicadas". Há registros de consumo da folha de coca de mais de 1200 anos na América do Sul. E seu chá era vendido no século 19 na Europa e na América do Norte. Mas seu princípio ativo, a cocaína, só foi isolado em 1860, pelo químico alemão Albert Niemann.

Guerra pró-drogas

A proibição não começou no Ocidente. As duas Guerras do Ópio (1839-1842 e 1850-1860) aconteceram pela proibição da droga pelo governo da China, num exemplo inicial do combate às drogas. Britânicos produziam o ópio na Índia e ganhavam fortunas com o vício dos chineses, considerado extremamente destrutivo pelas autoridades.

Entraram em guerra para forçar o país a aceitar seu produto. A derrota chinesa levaria ao que os historiadores do país chamam de o Século da Humilhação, o domínio indireto pelas potências ocidentais e direto pelo Japão. Só acabaria com a revolução comunista em 1949.  

Crédito: Reprodução

E, em pouco tempo, revelou efeitos colaterais, como arritmias cardíacas, problemas respiratórios e neurológicos. Por isso, lei de 1882 exigiu, no Brasil, receita médica na compra de pó. Mas o século 20 disseminou o consumo, recomendado até pelo pai da psicanálise, Sigmund Freud. Em 1914, o jornal O Estado de S. Paulo advertia: "Há hoje em nossa cidade muitos filhos de família, cujo grande prazer é tomar cocaína e deixar-se arrastar até aos declives mais perigosos deste vício. Quando atentam... é tarde demais para um recuo". 

Três anos depois, o Código Sanitário determinou o fechamento das farmácias (que eram, com os bordéis, os maiores distribuidores da droga) que vendessem cocaína sem receita. Para a pesquisadora Beatriz Rezende, organizadora do livro Cocaína: Literatura e Outros Companheiros de Ilusão, o Brasil respirava os ares da Primeira República, e "o entusiasmo pela modernização vai fazer com que a ideia de decadência de costumes frequentemente ligada ao ópio e ao haxixe seja substituída pela ambição da euforia encontrada no éter e na cocaína". 

Era usada por poetas e outras artistas. Na crônica A Favela (1922), Orestes Barbosa escreveu que, nos morros cariocas, traficantes vendiam a droga "malhada" (misturada a outras substâncias). E no samba A Cocaína (1923), de Sinhô, surgem sinais de alerta: "Mais que a flor purpurina é o vício arrogante de tomar cocaína.

Quando estou cabisbaixa chorando sentida, bem entristecida, é que o vício da vida deixa a alma perdida. Sou capaz de roubar, mesmo estrangular, para o vício afogar." Até que, em 1938, decreto-lei proibiu nacionalmente a cocaína, mesmo para fins médicos.

O dia da bicicleta

Nos anos 60, o movimento hippie deu às drogas status de experiência libertária. Acaba o estigma da maconha como droga de pobre e o LSD (dietilamina do ácido lisérgico) entra na moda. 

Ele foi sintetizado a partir de um fungo do centeio em 1938, pelo químico suíço Albert Hofmann, nos laboratórios Sandoz. Mas só em 1943 o cientista descobriu seus efeitos psicoativos, ao absorver na pele uma pequena quantidade da substância. Foi no dia 19 de abril, conhecido como o dia da bicicleta, quando ele experimentou delírios caleidoscópicos ao pedalar até em casa. 

O LSD foi usado no projeto ultrassecreto MK-Ultra, pesquisas da CIA para criar armas de controle mental, em que pessoas eram testadas sem consentimento ou conhecimento, que foi até 1973, com a fase mais ativa entre 1953 e 1964. Depois disso, acabou conhecido pelo público em geral. 

O cantor Tim Maia, após viagem a Londres, nos anos 70, foi visitar a Philips (sua gravadora na época) para oferecer ácido a todos: "Isto aqui é um LSD, que vai abrir sua cabeça, melhorar a sua vida, fazer de você uma pessoa feliz", conta o jornalista Nelson Motta, no livro Vale Tudo - O Som e a Fúria de Tim Maia. 

Também nessa época, o tráfico começou a se profissionalizar. No presídio da ilha Grande (RJ), militantes políticos e presos comuns trocaram experiências sobre táticas de luta, o que teria contribuído para a criação das atuais facções do narcotráfico. 

O crack, um resíduo da fabricação de cocaína que começou a ser vendido nos anos 1980, é a droga da desigualdade social. Consumido por moradores de rua e outras pessoas em situação desfavorável, é considerado bem pior que a droga-mãe: é mais barato e seus efeitos são efêmeros, durando segundos no lugar de mais de uma hora, como a primeira, o que leva ao consumo compulsivo.

Cena do seriado Breaking Bad / Crédito: Reprodução

Na década seguinte, também chegaram os sintéticos, MDMA (ecstasy, molly), usados pela classe média em shows, raves e festas.  Uma droga aparentada, a metanfetamina, viu seu consumo disparar após ser exibida na série Breaking Bad. 

Guerra às drogas

A Convenção de Drogas e Narcóticos das Nações Unidas, de 1961, assinada hoje por todos os países da ONU, foi o primeiro consenso mundial de que substâncias psicoativas deveriam ser coibidas, por causar dependência e danos à saúde. 

Em 1971, auge da popularidade das substâncias proibidas, o presidente americano Richard Nixon lançou a Guerra às Drogas, a campanha pela erradicação completa. Uma guerra às vezes militar mesmo, como a invasão do Panamá para derrubar o governo Noriega, em 1989, por sua ligação com o narcotráfico. Ou a presença de especialistas americanos colaborando com o exército da Colômbia para enfrentar as Farc e Pablo Escobar.

Evidências se acumulam mostrando que a Guerra às Drogas não atingiu seus objetivos. Entre vários outros, um relatório de 2013, publicado no British Medical Journal, demonstrou que os preços vêm caindo e a pureza, subindo. Ainda que haja uma tendência para liberar a maconha, a atitude contra as outras drogas continua a ser de guerra.

Um dia essa guerra será vencida? A julgar pela História, parece improvável.


Saiba Mais

Pequena Enciclopédia da História das Drogas e Bebidas: Histórias e Curiosidades sobre as Mais Variadas Drogas e Bebidas, Henrique Carneiro, Campus/Elsevier, 2005

Cocaína: Literatura e Outros Companheiros de Ilusão, Beatriz Rezende (org.), Casa da Palavra, 2006

Almanaque das Drogas, Tarso Araújo, Leya, 2012