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Matérias / Brasil

50 anos do Massacre de Manguinhos: quando a ditadura militar perseguiu até os cientistas

Diversos médicos e cientistas do Instituto Oswaldo Cruz foram perseguidos pelo governo militar. Entenda o caso

André Nogueira Publicado em 14/04/2020, às 10h17 - Atualizado às 10h18

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Augusto Cid Mello Perissé, Tito Arcoverde Cavalcanti de Albuquerque, Haity Moussatché, Fernando Braga Ubatuba, Moacyr Vaz de Andrade, Hugo de Souza Lopes Massao Goto, Herman Lent, Sebastião José de Oliveira, Domingos Arthur Machado Filho. - Crédito: Instituto Oswaldo Cruz
Augusto Cid Mello Perissé, Tito Arcoverde Cavalcanti de Albuquerque, Haity Moussatché, Fernando Braga Ubatuba, Moacyr Vaz de Andrade, Hugo de Souza Lopes Massao Goto, Herman Lent, Sebastião José de Oliveira, Domingos Arthur Machado Filho. - Crédito: Instituto Oswaldo Cruz

Diferentemente do que muitos afirmam hoje em dia, a ditadura militar brasileira (1964-1985) foi responsável pela perseguição política e ideológica de diversos brasileiros e estrangeiros, em seus mais diversos motivos.

A perseguição não se limitou a poucas áreas ligadas à política, à esquerda e à guerrilha, mas foi um sistema repressivo generalizado que, além da tortura, afetou diretamente uma infinidade de grupos de áreas completamente distintas. Um desses grupos foi a cúpula de cientistas brasileiros internacionalmente reconhecidos que trabalhavam para o Instituto Oswaldo Cruz durante os anos de chumbo.

Dez cientistas renomados da instituição foram perseguidos e diretamente afetados pela truculência das cassações políticas e perseguições policiais nos anos 1970, além de um mar de aposentadorias compulsórias e limitações das liberdades. Em 1970, esse ataque aos dez cientistas do IOC ficou conhecido como Massacre de Manguinhos, nome dado por Herman Lent (médico e entomologista) em referência ao Castelo Mourisco, sede do IOC no RJ, no bairro de Manguinhos.

Trata-se da cassação política dos pesquisadores Haity Moussatché, Herman Lent, Moacyr Vaz de Andrade, Augusto Cid de Mello Perissé, Hugo de Souza Lopes, Sebastião José de Oliveira, Fernando Braga Ubatuba e Tito Arcoverde Cavalcanti de Albuquerque no dia 1° de abril de 1970 e, dois dias depois, da aposentadoria compulsória desses servidores.

O choque do evento foi gigante, pois todos eram líderes de pesquisas inovadoras no combate a efemeridades comuns no território brasileiro e muitos estudavam curas para doenças negligenciadas, sendo que a cassação levou ao desmonte de diversos laboratórios de pesquisa do IOC e a precarização da pesquisa em medicina na época.

Castelo Mourisco, no Rio de Janeiro, sede do IOC / Crédito: Arquivos Fiocruz

Cientistas políticos apontam que a perseguição a esse grupo de cientistas ligados à área da medicina experimental e combate a doenças tropicais remete aos anos 1940, pois em 1946 esses cientistas reconheceram e apoiaram o então senador do Partido Comunista (PCB) Luís Carlos Prestes em sua defesa da retirada das tropas estadunidenses do Nordeste brasileiro e fim da base militar do RN, montada durante a Segunda Guerra Mundial.

Desde então, esse grupo de cientistas estaria sendo vigiado pela direita autoritária presente no governo e no exército. O grupo chegou a enviar um telegrama à Tribuna Popular elogiando a ação política de Prestes. Nos anos que se seguiram, esse grupo ficou marcado também por sua campanha pelo desenvolvimento de oportunidades mais fundamentadas para a pesquisa científica no Brasil.

Esses cientistas participaram de disputas políticas pela criação de instituições de fomento à pesquisa e de um ministério voltado à pesquisa, à ciência e à tecnologia, defendiam a autonomia do IOC e prezavam pela consolidação da produção científica nacional. A direita autoritária tinha esses cientistas como alvo significativo, mas é a partir de 1964 que a perseguição e as pressões do governo se agravaram.

A princípio, muitas demandas do IOC eram também defesas de princípios que confluíam com os objetivos e projetos da Ditadura. A produção científica nacional consolidada seria de grande consonância com o projeto nacional-industrialista do governo militar e a projeção de tecnologias de origem brasileira poderiam ser bem úteis à defesa das megaobras e projetos de expansão do período militar, como a Ponte Rio-Niterói, as hidroelétricas mastodônticas e a ocupação da Amazônia.

Ao mesmo tempo em que o controle de epidemias era um dos princípios da Doutrina de Segurança Nacional. Porém, a única relação amigável que o governo federal tinha com os imunologistas e sanitaristas do IOC era as campanhas de vacinação fomentadas pelo governo e encabeçadas pelo Instituto.

Ao mesmo tempo, a desestabilização do IOC teve bases internas significativas. Isso porque o grupo referido de cientistas que foram perseguidos possuía uma rixa política e administrativa com o então diretor do Instituto Oswaldo Cruz, Francisco de Paula Rocha Lagoa (que sairá da diretoria em 1970 e assumirá o Ministério da Saúde do governo Médici).

Rocha Lagoa era diretor-interventor indicado pelo Presidente Humberto de Castelo Branco e era um típico reacionário, adepto ao anticomunista vigente nos anos 1960 e mantinha um profundo embate com os líderes dos laboratórios de pesquisa do Instituto em relação aos rumos que a instituição levaria.

Vivíamos os anos de chumbo nos anos 1970 / Crédito: Reprodução

Os pesquisadores defendiam a autonomização e o fomento à pesquisa experimental de doenças endêmicas e um projeto acessível e com metas de desenvolvimento científico, enquanto o diretor pretendia seguir a cartilha do governo de vacinações em massa, apoio aos produtos norte-americanos e a submissão da instituição ao governo federal e seu projeto ideológico anticomunista.

Por essa rixa, Lagoa abre um inquérito policial contra esses 10 cientistas apontando conspiração contra a administração pública e desenvolvimento interno de uma célula comunista.

O governo, tendo aval para essas perseguições devido o Ato Institucional número 5, declara a cassação dos cientistas e inicia um movimento de ordenamento ideológico no interior dos grupos de pesquisa científica. Começou-se um patrulhamento interno no IOC e muitas coleções de laboratórios, incluindo o Acervo Científico-Histórico do Laboratório de Entomologia, um dos mais ricos e completos da América Latina, foram desmantelados e dissolvidos pelos policiais intervencionistas.

Também se incentivou um cerceamento financeiro por parte da diretoria do IOC que fechou fluxos que financiavam diversas pesquisas do instituto e impediu as relações diplomáticas e financeiras traçadas por Walter Oswaldo Cruz (filho do Oswaldo Cruz) com grupos de financiamento, que adquiriu por influência pessoal. Isso leva à inviabilização de diversos trabalhos e o fechamento de diversos laboratórios.

Francisco Rocha Lagoa / Crédito: Arquivos Fiocruz

Por último, o governo federal fundiu o Instituto Oswaldo Cruz com diversas instituições ligadas à saúde pública e a pesquisa médica, como a Escola Nacional de Saúde Pública, o Instituto de Produção de Medicamentos, o Instituto Fernandes Figueira, o Instituto de Endemias Rurais, o Instituto Evandro Chagas e o Instituto de Leprologia.

Nasce a Fundação do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz). Isso encerrará qualquer projeto de autonomização do IOC e criará um sistema descentralizado de pesquisa científica, fragilizando o Instituto em termos de capital político e capacidade de articulação.