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Matérias / Corrida Espacial

Há 59 anos, era iniciada a perigosa aventura do soviético Yuri Gagarin no espaço

Conheça a trajetória do cosmonauta que se tornou o primeiro humano no espaço

Fernando Brito Publicado em 12/04/2020, às 00h00

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Yuri Gagarin foi o primeiro homem a ir ao espaço - Divulgação
Yuri Gagarin foi o primeiro homem a ir ao espaço - Divulgação

Na manhã de 12 de Abril de 1961, Alan Shepard foi acordado na Flórida com uma péssima notícia. Ele não seria mais o primeiro homem no espaço. Foi por pouco. Havia dois meses, em vez de um astronauta, a Nasa decidiu lançar do Cabo Canaveral outro macaco, o terceiro desde o início dos testes.

Sobre a cabeça dos americanos, a cerca de 250 km de altura e algumas horas antes, a Vostok I deixava claro, mais uma vez, quem liderava a corrida do século.

A bordo da pequena cápsula, um filho de camponeses de 27 anos testemunhou que a Terra é azul. Enquanto Shepard escovava os dentes, Yuri Alexeyevich Gagarin já colhia as glórias de seus 108 minutos em órbita.

O dedicado membro do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas não poderia exigir mais de si mesmo. Na última noite antes do lançamento, sensores pregados em seu corpo indicaram um sono tranquilo. Às 5:30 da manhã (hora de Moscou), Gagarin foi acordado.

Diante de dados normais demais para quem estava prestes a enfrentar viagem tão espetacular quanto desconhecida, os médicos perguntaram como foi possível para ele dormir tão bem. O rapaz foi enfático: "Seria correto decolar se eu não estivesse descansado? Dormir era meu dever, então eu dormi."

Não foi bem assim. Mais tarde, diante da desconfiança de todos, ele revelaria a verdade: sem pregar os olhos, procurou ficar imóvel o máximo possível para não parecer inseguro. Na plataforma de lançamento de Baikonur, no Cazaquistão, porém, não houve tempo para descanso.

Dezenas de técnicos vararam a noite preparando o Vostok-K, enchendo os tanques de combustível e realizando testes. Pela primeira vez, aquele foguete decolaria com um ser humano a bordo. Não havia margem para erros.

Poyekhali!

Após um saboroso café da manhã com tubos de pasta sabor carne, batata e chocolate, Gagarin começou a vestir seu traje espacial. Às 9h06, os 20 motores do primeiro estágio se acenderam. Segundos depois, as quatro garras de metal que seguravam o foguete se retraíram, liberando os 20 milhões de cavalos de potência do Vostok-K. Poyekhali! (Lá vamos nós!), gritou o cosmonauta, iniciando o voo mais importante de sua vida.

Lançamento da Vostok I&nbsp /  Crédito: Wikimedia Commons

Quatro anos antes, ele tornara-se piloto de caças. Em plena Guerra Fria, isso não era pouco. No começo de 1959, o governo russo iniciou a seleção do primeiro grupo de cadetes do espaço. Mais de 3 mil candidatos se apresentaram. Entre os critérios de avaliação, era essencial ter menos de 30 anos, medir menos de 1,70 m e pesar menos de 70 kg. Mas não bastava caber na diminuta nave espacial, ainda em fase de projetos.

A máquina de propaganda soviética também precisava de um espécime russo perfeito. Demonstrar um firme comprometimento com o partido e ter uma biografia impecável eram tão ou mais importantes que as qualificações técnicas. A maioria dos inscritos ficou pelo caminho. Somente 400 passaram para a segunda fase e pouco mais de 100 chegaram ao fim.

Em 25 de fevereiro de 1960, os 20 aprovados foram anunciados. Dois homens sobressaíram logo nos treinamentos: Yuri Gagarin e Gherman Titov. Ainda eram bonitos e tinham boas ligações políticas. Em uma votação entre os colegas, Gagarin recebeu 60% dos votos e Titov ficou em segundo lugar. Ainda assim, a quatro dias do lançamento, a decisão sobre quem seria o pioneiro em órbita não estava tomada.

Em 8 de abril, o comandante do destacamento dos cosmonautas, Nicolai Kamanin, anotou em seu diário: "É difícil decidir qual deles deve ser enviado à morte e é igualmente difícil decidir qual desses dois grandes homens deve ser tornar mundialmente famoso".

Gherman Titov, Nikita Khrushchev e Yuri Gagarin /  Crédito: Divulgação

A escolha foi tomada com base em um detalhe prático. O primeiro voo espacial seria rápido e exigiria pouco do cosmonauta. O segundo, já programado, duraria quase um dia inteiro. Titov, por ser mais novo e mais forte, acabou escolhido para o voo mais longo.

A Gagarin, sobrou a honra de ser o primeiro no espaço. Perguntado anos depois sobre o que lhe passou pela cabeça ao saber da decisão, respondeu: "Pensei em Titov. Por que eu? Por que não ele? Teria sido melhor fazermos a viagem juntos".

Preparação

Se os Estados Unidos tinham na Nasa o engenheiro Wernher von Braun, a URSS tinha Serguei Korolev. O sucesso da exploração espacial soviética se deve quase totalmente aos foguetes que ele ajudou a construir. Sua insistência em usá-los não só para lançar armas nucleares mas também como o transporte que levaria satélites e homens ao espaço se provaria acertada.

Sem a luta de Korolev para que a nação saísse na frente dos americanos, a corrida ao espaço teria sido bem diferente. "A demonstração cabal do avanço russo foi o voo do primeiro cosmonauta humano", afirma Gildo Magalhães, pesquisador da faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Das obras de Korolev, a mais genial foi o R-7, o primeiro míssil balístico intercontinental.

Sua capacidade e suas dimensões foram exageradas desde a encomenda pelo Exército soviético, em 1950. As bombas de hidrogênio podiam pesar até 10 toneladas. Se a URSS queria uma forma eficaz de destruir os EUA, era preciso ter um foguete capaz de transportá-las.

A família de foguetes R-7 é a mais antiga e confiável da história da exploração espacial. Ela colocou em órbita o Sputnik, o primeiro satélite artificial da Terra, e ainda hoje lança todas as naves Soyuz russas. O R-7 havia sido testado 46 vezes, com diversas configurações. Era, portanto, uma escolha natural para a mais pretensiosa das missões até então.

Sua versão adaptada, com a adição de mais um estágio, foi batizada com o mesmo nome da nave que carregaria: Vostok (que, aliás, significa leste, em russo), mais a letra K. O local de lançamento, no Cazaquistão, foi escolhido por ter uma grande área de planície, o que permitiria manter a comunicação com as naves por mais tempo. Embora a base se chamasse Baikonur, esse era o nome de uma cidade a centenas de quilômetros dali.

Ignição

Ninguém percebeu de imediato, mas o lançamento teve um problema potencialmente sério. A Vostok I deveria atingir a altitude máxima de 230 km e levava suprimentos de oxigênio, água e comida para dez dias.

A ideia era garantir que Gagarin sobrevivesse na nave caso os retrofoguetes (responsáveis pelo retorno ao solo) falhassem. Àquela altitude, a nave perderia velocidade e cairia de volta à Terra em menos de dez dias.

Mas uma falha no segundo estágio fez os motores do foguete desligarem segundos depois do previsto. Assim, a Vostok I alcançou até 327 km de altitude. Sem retrofoguetes para reduzir a velocidade da cápsula e a essa distância do solo, ela levaria 15 dias para cair, muito além do limite de suprimentos.

Yuri Gagarin a bordo da nave Vostok I /  Crédito: Divulgação

Enquanto esteve em órbita, Gagarin executou algumas experiências para avaliar seu estado físico e mental. Até então, ninguém sabia ao certo como o corpo humano se comportaria no espaço. (Teorias iam desde olhos saltando das órbitas até a morte.) Ele leu textos em voz alta para analisar a visão, ingeriu comida e água para verificar se era possível se alimentar em gravidade zero e fez testes de coordenação motora. Todos com resultados satisfatórios.

A atenção com a segurança era tanta que os controles da nave ficaram travados durante todo o voo. Temia-se que o espaço enlouquecesse as pessoas. Se isso acontecesse a Gagarin, era melhor protegê-lo de si mesmo. Os códigos de liberação dos controles foram guardados em um envelope selado e só poderiam ser usados em uma emergência que demandasse intervenção humana.

No fim das contas, o cosmonauta não passou de um passageiro. Para compensar, seus comandantes lhe prepararam uma surpresa: às 9h57 o primeiro tenente Yuri Gagarin foi promovido a major.

A incerteza sobre o sucesso fez com que as autoridades soviéticas só anunciassem ao mundo a missão quando ele já se preparava para voltar à Terra. Às 10h25, os retrofoguetes da Vostok I dispararam automaticamente por 42 segundos. Dez segundos depois, a cápsula de reentrada deveria se separar do módulo de serviço, mas isso não aconteceu.

Cabos ligando os dois módulos não se partiram como o programado e, unidos, começaram a girar sem controle, enquanto queimavam devido ao atrito com o ar. Só dez minutos mais tarde os cabos se romperam e a cápsula estabilizou. O cosmonauta sofria, então, com outro problema: a rápida desaceleração, que produziu uma força G até dez vezes maior que a gravidade terrestre.

Nada impediu, porém, que ele fosse ejetado e caísse de paraquedas nos arredores de Saratov. A visão daquele ser assustou duas meninas e um homem que dirigia um trator.

"Quando me viram de traje espacial laranja, começaram a se afastar com medo. Aí eu disse: Não tenham medo! Sou soviético como vocês! Eu venho do espaço e preciso de um telefone para ligar para Moscou!", contou Gagarin.

A sorte estava mais uma vez ao seu lado. Poucos dias antes do voo, técnicos notaram que o traje não tinha insígnias ou outros sinais que mostrassem o seu país de origem - o que poderia dar a impressão de que se tratava de um espião estrangeiro. Só então grafaram CCCP (URSS no alfabeto cirílico) em letras garrafais na testa do cosmonauta.

De acordo com as regras da Federação Internacional de Astronáutica, um voo tripulado ao espaço só seria considerado válido se o piloto pousasse com sua nave. Embora a Vostok I possuísse seus próprios paraquedas, ela não tinha um sistema de pouso suave.

Se os cosmonautas não ejetassem, poderiam não morrer, mas quebrariam alguns ossos. Por dez anos o governo e o próprio Gagarin negaram o pouso de paraquedas. Sem saber da artimanha, a federação validou o feito soviético.

Vostok I está exposta no Museu RKK Energiya / Crédito: Wikimedia Commons

Logo após seu voo histórico, o cosmonauta partiu para uma turnê mundial. No Brasil, foi condecorado pelo presidente Jânio Quadros no Rio de Janeiro e visitou a Baixada Santista, onde foi recebido por uma multidão. "As pessoas não entendiam bem o que aquele homem havia feito, mas sabiam que era algo importante e queriam se aproximar dele", conta Francisco Rodrigues, policial que fez a escolta de Gagarin durante o desfile em carro aberto pelas ruas de Santos e São Vicente.

Nos EUA, a reação não foi tão animada. O Congresso cobrava uma resposta à altura. Em 25 de maio de 1961, pouco mais de um mês depois da Vostok e após 20 dias do primeiro voo espacial americano (quando Alan Shepard finalmente chegou lá), o presidente John Kennedy lançou um desafio: "Esta nação deve se comprometer a conquistar o objetivo de, antes de esta década terminar, pousar um homem na Lua e trazê-lo de volta em segurança".

Começava uma nova etapa da corrida espacial. Para Shozo Motoyama, livre-docente em História da Ciência na USP, "o voo de Gagarin foi o início da aventura cósmica, e o Cabo Canaveral, o promontório de Sagres das grandes navegações. A Terra ficou pequena para a ambição humana".

Yuri Gagarin não viveu para ver o homem na Lua. A fama e as chances mínimas de voltar ao espaço (a URSS não arriscaria perder seu herói) o fizeram se interessar mais por mulheres e álcool do que pelo trabalho. Num ostracismo forçado, decidiu retomar a carreira de piloto. Em 27 de março de 1968, o caça Mig-15 em que treinava caiu. Embora os russos ainda tivessem o foguete mais seguro do mundo, descendente do R-7 e do Vostok-K, eles jamais voltaram a liderar a disputa pelo espaço. O Leste que assombrou o mundo em 1961 morreu com seu piloto.


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