Inspirada em ideais da Antiguidade, a lista dos erros mais sérios pela Igreja Católica levou séculos de bate-boca para ser compilada
Todas as religiões, de qualquer época, estabelecem normas claras de comportamento. Mas só o cristianismo se deu ao trabalho de passar vários séculos depurando e revisando uma lista dos erros mais graves que um ser humano pode cometer. Para chegar ao resultado final, teólogos, filósofos e até mesmo um poeta recorreram a diversos textos judaicos e da Antiguidade clássica.
O esforço foi recompensado: pergunte a quem quer que seja no Ocidente a respeito dos Sete Pecados Capitais e pode ter certeza de que a maioria vai se lembrar de todos, ou quase todos. São eles, pela ordem de popularidade, de acordo com uma pesquisa realizada entre os britânicos há três anos: luxúria, raiva, soberba, preguiça, inveja, gula e avareza.
A primeira referência, claro, é a Bíblia. Em nenhum lugar da obra a lista cristã está apresentada dessa forma. Mas existem ali diversas recomendações e proibições. Algumas estão nos Dez Mandamentos, ditados por Javé a Moisés: não adorar outros deuses; não mencionar o nome de Deus em vão; não matar; não desonrar pai e mãe; não cometer adultério; não roubar; não dizer falso testemunho.
Já o capítulo 16 do livro dos Provérbios afirma: "Estas seis coisas aborrecem o Senhor, e a sétima a sua alma abomina: olhos altivos, a língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, coração que maquina pensamentos viciosos, pés que se apressam a correr para o mal, testemunha falsa que profere mentiras e o que semeia contendas entre os irmãos".
O Novo Testamento também tem suas próprias orientações. O Sermão da Montanha de Jesus Cristo, enunciado no Evangelho de Mateus, traz algumas diretrizes ("qualquer um que se encolerizar contra seu irmão será réu de juízo"; "qualquer um que atentar numa mulher para a cobiçar já cometeu adultério em seu coração"; "não julgueis"). As recomendações ainda são detalhadas nas epístolas de São Paulo.
Até aqui, todos os textos sagrados descrevem atitudes concretas. Mas os pensadores cristãos queriam algo diferente: uma seleção de posturas perniciosas. "Os pecados capitais não são erros concretos, mas o estado de espírito que pode levar uma pessoa a cometê-los", afirma Aviad Kleinberg, professor de história das religiões da Universidade de Tel Aviv. Por inveja, alguém pode mentir. Por raiva, matar. E assim por diante.
Para buscar as origens dos atos contra Deus e os outros seres humanos, os teólogos foram beber nas fontes clássicas da Antiguidade. "Pelo menos 20 anos antes do nascimento de Cristo, o poeta latino Horácio apresentou os pecados mais graves de uma forma muito semelhante à que conhecemos hoje. Isso é um sinal de que o cristianismo reflete uma sensibilidade comum aos gregos e aos romanos", diz Kleinberg. Esse processo de fusão de influências deu os primeiros resultados pouco antes da Idade Média.
No século 4, o monge grego Evagrius Ponticus (345-399) selecionou as oito atitudes mais graves que os cristãos poderiam assumir: gula, fornicação, avareza, descrença, ira, desencorajamento, vanglória e soberba. No ano 590, a sugestão do monge ganhou ares canônicos pelas mãos do papa Gregório I (540-604). Foi ele quem usou o termo "capital", que vem do latim caput (cabeça, líder ou chefe).
A lista do papa também tinha oito itens, com alterações. Descrença e desencorajamento foram fundidas em uma só transgressão, assim como vanglória e soberba - e assim a soberba começava a ganhar a concepção atual, que funde orgulho, vanglória e vaidade. A fornicação acabou retirada e inveja e extravagância, acrescentadas. E foi dessa forma que os pecados capitais ficaram conhecidos por mais de seis séculos. Em 1273, a Suma Teológica de São Tomás de Aquino, um dos documentos seminais do cristianismo, revisou a relação de desvios e deu a ela a formação final.
Quase simultaneamente a São Tomás, um advogado italiano também adaptou a lista de Gregório. O resultado apareceu em um dos poemas épicos mais importantes da literatura: A Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265-1321). "Tomás transformou os sete pecados em um conceito totalmente integrado à teologia católica. Mas foi Dante quem fez deles um dos temas mais influentes e populares do catolicismo", diz a americana Phyllis Tickle, fundadora do departamento de assuntos religiosos da revista Publishers Weekly.
A obra se divide em três partes: Céu, Purgatório e Inferno. O Purgatório é formado por sete círculos, ao longo dos quais o autor distribui atitudes contra Deus (e, com algum grau de maldade, relaciona desafetos pessoais e personalidades de sua época). Para cada círculos há um pecado (assim como São Tomás, Dante enxugou a versão papal).
Os menos graves ficavam mais próximos de Deus e os piores, do diabo. Pela ordem proposta, a lista seria, partindo do menos para o mais ofensivo: luxúria, gula, avareza, preguiça, raiva, inveja e soberba. Ele ainda os agrupou em três tipos. Soberba, inveja e raiva são os pecados cometidos por amor pervertido. Preguiça, por insuficiência de amor. E avareza, gula e luxúria, pelo amor excessivo aos bens materiais.
O fato é pouco conhecido, mas para os católicos cada pecado vem acompanhado de uma virtude correspondente. Mas por que os erros são tão mais conhecidos que os acertos? "Somos mais atraídos pelos pecados que pelas virtudes. O proibido sempre parece mais interessante", diz Phyllis.
A lista da Igreja rendeu várias outras. Mahatma Gandhi fez a sua, a dos Sete Pecados Sociais: política sem princípios; riqueza sem trabalho; comércio sem moralidade; ciência sem humanidade, colaboração sem sacrifício; prazer sem consciência e conhecimento sem caráter.
O próprio Vaticano elaborou uma espécie de versão moderna das transgressões. Divulgada em 2008 pelo bispo Gianfranco Girotti, ela não anula a seleção anterior: poluição ao meio ambiente; manipulação genética; riqueza obscena; empobrecimento alheio; tráfico de droga; experiências científicas amorais e violações aos direitos humanos.
Esse tipo de tentativa, da parte do Vaticano, de surfar na própria onda criada na Idade Média só reforça o quanto o conceito de pecado capital faz parte da nossa vida - seja como norma de conduta, seja como referência cultural. Entenda detalhadamente os 7 Pecados Capitais:
Não há pecado mais sedutor que a luxúria, o desejo extremo pelos prazeres do sexo. Na história do pensamento ocidental, o grego Hipócrates já alertava que a prática podia consumir perigosamente a energia das pessoas. "Consideradas as consequências para os outros, esse é o menos grave pecado da lista", diz Philip Gorski, professor de religião da Universidade de Yale. "Mas foi o mais perseguido pela Igreja por estimular instintos que achava ela essencial combater."
O conceito ganhou nova perspectiva no século 13, com são Tomás de Aquino. Para ele, a luxuriae, do latim, também diz respeito às pessoas que se deixam dominar por paixões - por poder, dinheiro ou comida. Examinados os caminhos de todos os Sete Pecados Capitais, parece claro que um erro sempre leva a outro.
Para o papa Gregório I, esse é o pecado original por excelência. "É o começo de todos", ele escreveu. "Quando a soberba, a rainha dos pecados, domina totalmente um coração, ela o faz sucumbir imediatamente a todos os demais." É dominado por superbia, do latim, e hubris, do grego, que Lúcifer rompe com Deus e cria seu próprio território do mal. Assim como Adão e Eva contrariam Javé, provam da árvore do conhecimento e acabam expulsos do Paraíso.
A definição da soberba como pecado capital foi inspirada nos gregos antigos e se consolidou sob a influência de Santo Agostinho (334-430), que a entendia como "o amor de uma pessoa pela própria excelência" - logo, a transgressão suprema é uma atitude que inclui, ao mesmo tempo, presunção, vaidade e vanglória. Em várias culturas e certos contextos, tem caráter positivo e autoafirmativo. Mas não adianta. Está cristalizada a ideia de que o orgulho excessivo destrói a relação de respeito com Deus.
Não parece justo que dormir até mais tarde seja definido como um pecado capital. Mas pode ser. Por deliciosa que seja, a preguiça é levada tão a sério pelo cristianismo que a primeira lista organizada pelo monge Evagrius Ponticus (345-399) dedica a ela dois itens: acedia e tristicia, o latim para "apatia" e "desespero". Foi o papa Gregório I (540-604) que fundiu a segunda na primeira.
Mas o que explica tamanha preocupação com atitudes supostamente inocentes? A acedia é caracterizada pela apatia espiritual, incapacidade de se importar com o próximo ou com qualquer coisa, procrastinação (deixar tudo para depois) e sensação de autopiedade e letargia. "É uma morfina espiritual, doce, mas venenosa a longo prazo", diz o cientista político Hugo Cyr, professor da Universidade de Québec. Já a tristicia é a antítese da fé. Na versão atual, a depressão. No limite, leva à omissão diante de um assassinato - ou ao suicídio.
Atire a primeira pedra quem nunca sentiu inveja. "É o pecado mais endêmico. À parte Sócrates, Jesus, Marco Aurélio, Madre Teresa e apenas alguns mais, uma hora ou outra, todos temos nossos flashes de inveja", diz o escritor Joseph Epstein em Inveja. Não tem jeito: o gramado do vizinho é mais verde.
A transgressão não fazia parte da lista original de pecados capitais, do século 4. O papa Gregório I a incorporou ao panteão do mal em 590 como invidia (nome da deusa romana que envenenava tudo à sua volta). "A inveja é o grande nivelador: se não consegue por cima, vai nivelar por baixo", afirma a ensaísta Dorothy Sayers. Quando se trata da vontade de alcançar o outro, sem agir para prejudicá-lo, há um estímulo à competitividade. Mas o limite é tênue. O invejoso se sente mal com o que não tem - e começa a desejar que ninguém mais tenha.
Nenhum outro pecado capital deixa marcas tão visíveis no organismo de quem o pratica. Pelo menos no imaginário popular. Dependendo da época ou da cultura, um corpo roliço pode significar saúde, fartura e prosperidade ou abuso, doença e desleixo, mas ele costuma ser associado ao consumo excessivo de comida - e bebida. No contexto cristão, a gula (do latim gluttire, "devorar", "engolir às pressas") representa a dependência do mundo material, em detrimento da valorização de Deus. Antes do nascimento de Jesus, o poeta romano Horácio já dizia que comer demais retirava a energia das pessoas.
No século 20, a transgressão ganhou outros contornos. "A gula deixou de ter uma conotação religiosa para se tornar um grave pecado social", diz Simon Blackburn, professor de filosofia da Universidade de Cambridge.
Pessoas poderosas e bem-sucedidas financeiramente despertam admiração. Suas histórias inspiram livros e filmes. Até aí, tudo bem. O problema é quando nada, nunca, é o suficiente. "O pecado está menos no acúmulo do que no apego, que leva as pessoas a prejudicar outras para amontoar ainda mais algo que já têm", diz Phyllis Tickle, autora de Avareza. Assim como a gula e a luxúria, a avareza decorre do excesso. É o pecado do desejo desenfreado por riqueza e status.
Para o papa Gregório I, que compilou a lista definitiva das transgressões capitais no século 6, esse mal passo tem sete filhas: a traição, a fraude, a mentira, o perjúrio, a inquietude, a violência e a dureza de coração. Como se vê, a palavra latina avaritia não se refere apenas aos mãos de vaca. Acusa também os gananciosos, os mesquinhos, os egoístas, os corruptos, os ladrões - e mesmo as pessoas excessivamente ciumentas.
Pode-se dizer que, na Bíblia, Deus comete um dos Sete Pecados Capitais com certa regularidade. Faz desabar o dilúvio, derruba a Torre de Babel, queima Sodoma e Gomorra. "Deus é destruidor tanto quanto criador", afirma Jack Miles em Deus - Uma Biografia. E não é o único. Num acesso de ira, mesmo depois de recomendar a oferta da outra face, Jesus derruba as barracas dos comerciantes do templo.
Talvez por isso seja comum identificar na raiva ou na ira do latim um sentimento natural que pode ser canalizado para corrigir injustiças. Mas, da lista católica, ela é o pecado mais instintivo e mortal. O filósofo romano Sêneca a definiu como "loucura temporária". Leva até ao genocídio. "Para as religiões ocidentais contemporâneas, ela não é um problema", diz o teólogo e budista Robert Thurman, da Universidade de Colúmbia. "Mas temos de ser livres da escravidão gerada pela cultura da ira, da violência e da guerra."
Coleção Pecados Capitais, vários autores, Arx, 2005
Contos de Cantuária, Geoffrey Chaucer, T.A. Queiroz, 1991
Os Sete Pecados Capitais, Civilização Brasileira, vários autores, 1998