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Matérias / Zé Carioca

80 anos do Zé Carioca: entenda a origem paulista do personagem da Disney

Inspirado no músico José do Patrocínio Oliveira, o papaguaio caricato foi criado com objetivos estratégicos e comerciais

Redação Publicado em 02/02/2020, às 20h50 - Atualizado em 24/08/2022, às 10h00

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Pato Donald e Zé Carioca em "Alô Amigos" (1942) - Divulgação/Youtube/varaya patule
Pato Donald e Zé Carioca em "Alô Amigos" (1942) - Divulgação/Youtube/varaya patule

Há 80 anos, em 24 de agosto de 1942, Zé Carioca aparecia pela primeira vez no filme "Alô Amigos", marcando a estreia do personagem brasileiro em um filme de Walt Disney. Depois disso, apareceria em "Você Já Foi À Bahia" (1944) e "Tempo de Melodia" (1948).

Embora apresente uma representatividade controversa ao Brasil no exterior, a figura conta com uma história curiosa que começa não com um carioca — como muitos podem imaginar — mas com um paulista,  até se consolidar nos quadrinhos. 

Origem do Zé

Em 1942, ao ser apresentado a Walt Disney nos Estados Unidos, o músico José do Patrocínio Oliveira logo emendou uma conversa usando seu inglês carregado de sotaque. Ao ouvi-lo, o desenhista recomendou: “Não tente ser americano, já temos americanos suficientes aqui. Seja brasileiro”. Isso Oliveira sabia fazer muito bem.

Inspirado nele, Disney criou seu personagem brasileiro: o Zé Carioca (Joe Carioca, em original). Só que o homem por trás do papagaio era... paulista! Nascido na cidade de Jundiaí, em 1904, o violonista e cavaquinista Oliveira, chamado pelos amigos de Zezinho, tinha vários trejeitos.

Ele era todo rapidinho, não parava de se mexer nem de falar”, conta o diretor de TVJosé Amâncio, que foi muito próximo do músico.

“Não é que Zezinho tivesse um jeito parecido com o do personagem. Ele simplesmente era o Zé Carioca!” No Brasil, a estreia do papagaio verde e amarelo viria ainda em 1942, com "Alô, Amigos" — batizado de "Saludos Amigos", em inglês —, uma pioneira mistura de filme e desenho animado. Nele, Zé Carioca — dublado pelo próprio Zezinho — recebe o Pato Donald em terras brasileiras.

Walt Disney em 1935 / Wikimedia Commons, Domínio Público/Agence de presse Meurisse - Bibliothèque nationale de France

Além de ser sucesso de público, "Alô, Amigos" também agradou às autoridades americanas. Afinal, o filme dos Estúdios Disney se encaixava perfeitamente na Política da Boa Vizinhança, lançada na década de 30 pelo presidente americano Franklin Roosevelt com o objetivo de manter toda a América alinhada com os Estados Unidos — e afastada da influência de comunistas e fascistas.

O responsável pela doutrina era o OCIAA (sigla em inglês para Escritório do Coordenador de Assuntos Interamericanos), que usava a cultura como um dos principais meios para manter a influência americana. O órgão encomendou a Disney — uma espécie de embaixador não-oficial da Política da Boa Vizinhança — personagens que conquistassem a simpatia da América Latina.

Para agradar os mexicanos, Disney criou o galo Panchito. Na hora de homenagear o Brasil, o desenhista decidiu usar um papagaio. Há diferentes versões de como isso ocorreu. A mais aceita é contada pelo escritor Ezequiel de Azevedo em "O Tico-Tico: Cem Anos de Revista".

Segundo ele, durante uma visita ao nosso país em 1941, Disney ganhou do cartunista J. Carlos o desenho de um papagaio abraçando o Pato Donald. Pronto, estava escolhido o animal — faltava só dar personalidade a ele. No ano seguinte, Disney foi apresentado a Zezinho. E seu papagaio ganhou chapéu de malandro, gravata borboleta, um guarda-chuva para usar como bengala e uma fala temperada por ginga e malandragem.

Muita gente pensa que o Zezinho fez aquela voz do Zé Carioca especialmente para os desenhos. Não fez, era a voz dele mesmo”, diz José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, diretor da TV Vanguarda, que conheceu Zezinho por intermédio do pai, na infância.

Em 1957, aos 22 anos, Boni reencontrou o músico e manteve com ele uma amizade que durou 30 anos. “Disney dizia que o Zezinho tinha até nariz de papagaio. E o levava para o estúdio, botava um chapéu nele, dava um guarda-chuva na mão dele e pedia para ele andar, sambar, rebolar... Os desenhistas ficavam assistindo para fazer o papagaio se mexer do mesmo jeito. E o Zezinho dizia: ‘Mas eu não sei rebolar, sou paulista!’”

Antes e acima de ser o Zé Carioca, Zezinho era um grande músico. Desde a década de 30, acompanhava as cantoras Aurora e Carmen Miranda, quando as duas cumpriam agenda pré-carnavalesca diariamente às 19h30, na Rádio Record do Rio de Janeiro. Em "Carmen — Uma Biografia", o escritor Ruy Castro conta que Aurora e sua irmã mais famosa se encantaram por Zezinho, graças a sua personalidade peculiar.

O músico, por exemplo, era ex-funcionário do Instituto Butantan de São Paulo, conhecido pelo estudo de animais peçonhentos. “Quando se empolgava, falava das cobras pelos nomes delas em latim”, escreveu Ruy Castro. O amigo José Amâncio relembra que outra coisa não saía da cabeça de Zezinho: todos os pontos das linhas de trem de São Paulo. “Ele tinha mania de citar um por um, na ordem certa.”

A incrível memória de Zezinho permitiu que ele decorasse praticamente todas as músicas de Carnaval já feitas até então. “A gente dizia o ano, e ele então enumerava cada marchinha e samba. Se a gente pedia, ele cantava”, conta Boni. Foi para os Estados Unidos no fim dos anos 30, no rastro do sucesso de Carmen Miranda. Lá, gravou três discos com Aurora e, em 1942, passou a fazer parte do Bando da Lua, o conjunto de músicos que costumava acompanhar as duas irmãs.

Em 1942, Zezinho estreou no cinema tocando com o Bando da Lua no filme "Minha Secretária Brasileira", estrelado por Carmen Miranda. Logo depois, em "Alô, Amigos", ele fez mais do que dublar Zé Carioca: apareceu tocando "Na Baixa do Sapateiro" e "Os Quindins de Iaiá", de Ary Barroso.

José do Patrocínio Oliveira / Crédito: Divulgação

Em 1944, voltou a dar voz a Zé Carioca e a atuar em mais uma combinação de filme e desenho animado produzida pelos Estúdios Disney: o clássico "Você já Foi à Bahia?". Lá, ao lado de Aurora, ele tocou "Aquarela do Brasil", também de Ary Barroso, e "Tico-Tico no Fubá", de Zequinha de Abreu.

A música brasileira, que tinha conquistado os Estados Unidos com Carmen Miranda, ganhava, ainda, mais espaço com o empurrão dado por Disney no cinema. Após a estréia de "Você já Foi à Bahia?", Zezinho tocou com Aurora no México.

Segundo Ruy Castro, apesar da fama da cantora, o nome dela era o segundo nos cartazes dos shows. Vinha logo abaixo de Joe CariocaZezinho tinha assumido o nome do papagaio por causa de sua popularidade. O músico tocou samba até os 75 anos, em vários estados americanos.

Apresentava-se quase todas as noites em hotéis de luxo, restaurantes, cassinos e na própria Disneylândia, na Califórnia. Sua primeira aparição por lá foi na inauguração do parque temático, em 1955 — entrou no palco anunciado pelo próprio Disney.

Assim como Zé Carioca em "Alô, Amigos", Zezinho era um caloroso anfitrião: fazia questão de manter as portas de sua casa nos Estados Unidos sempre abertas, transformando-a numa espécie de embaixada informal do Brasil.

Zé Carioca (primeiro da esquerda para a direita), com integrantes do grupo musical Bando da Lua e Carmen Miranda / Wikimedia Commons/Domínio Público

Segundo Boni, o músico se tornou cicerone de diretores que, tempos depois, se destacariam na TV brasileira, como Daniel Filho e Augusto César Vanucci. “Os amigos queriam conhecer melhor Hollywood, ver como as coisas eram feitas lá. Eu combinava com Zezinho e ele nos levava para todos os estúdios. Todo mundo por lá o conhecia”, diz.

Certa vez, o amigo José Amâncio foi testemunha de como a fama do músico se perpetuou. No início dos anos 80, o diretor de TV visitava a Disneylândia pela primeira vez, acompanhado por Zezinho. Assim que chegou ao parque, espantou-se ao ver todos os funcionários cumprimentando o músico, acenando e dizendo: “Hey, Joe Carioca”.

“Eu sabia que ele era o homem por trás do Zé Carioca, mas não imaginava que era reconhecido desse jeito. Descobri naquele dia como ele era querido”, diz. Zezinho já tinha quase 80 anos quando a cena aconteceu — e o filme de estréia do personagem já tinha mais de 40 anos.

Em 1987, depois de muita boemia, Zezinho morreu. E saiu de cena no melhor estilo Zé Carioca. “Na lápide dele está escrito: ‘Demais!’ Porque para ele tudo era ‘demais’”, diz o empresário José do Patrocínio Oliveira Júnior, o filho do papagaio. Ou melhor, do músico.