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Matérias / Coluna

As transformações da família brasileira no Novo Mundo

A autoridade patriarcal garantia a união entre parentes, a obediência dos escravos e a influência política de um grupo familiar sobre os demais

Mary Del Priore Publicado em 20/02/2019, às 18h00 - Atualizado em 01/04/2021, às 09h45

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Pintura de Franz Schrotzberg, 'A Family Portrait' - Wikimedia Commons
Pintura de Franz Schrotzberg, 'A Family Portrait' - Wikimedia Commons

"E os príncipes se casaram, tiveram muitos filhos e foram felizes para sempre.” Será? Em nossa História, a sonhada harmonia só existe nos contos de fadas. Se formos examinar os documentos sobre a História do Brasil vamos ver que, em 500 anos, diferentes tipos de família se formaram.

Os portugueses trouxeram para o Novo Mundo uma maneira particular de organizá-la. Esse modelo, constituído por pai e mãe “casados perante a Igreja”, correspondia aos ideais definidos pela Igreja Católica no Concílio de Trento, servindo como instrumento na difusão do catolicismo.

Mas o europeu conseguiu impor esse tipo de família aqui? Sim e não. Para Gilberto Freyre, a família foi o mais importante fator de colonização. Era a unidade produtiva que abria espaços na mata, instalava fazendas, comprava escravos, bois e instrumentos. Nas áreas de monocultura, agia de forma mais eficiente para o desbravamento e transformação da terra do que qualquer companhia de comércio. Era a autoridade patriarcal que garantia a união entre parentes, a obediência dos escravos e a influência política de um grupo familiar sobre os demais. Uma grande família reunida em torno de um chefe, pai e senhor forte e temido que impunha a sua lei e a sua ordem em seus domínios.

Família Real no governo Pedro II / Crédito: Wikimedia Commons

Essa não era a realidade da maior parte da população, formada por famílias baseadas em ligações transitórias e consensuais de homens e mulheres livres, pobres e escravos, cuja necessidade de estabilidade a fazia muito semelhante à família patriarcal, mas onde o casamento legal era raríssimo. Viver numa família onde faltara o casamento na igreja não queria dizer viver na precariedade.

As ligações concubinárias, em que as pessoas viviam juntas sem estar casadas perante a Igreja, podiam ser e eram muito estáveis. O que era precário era a situação material dessas famílias e a obrigação de muitos homens de terem que abandonar as mulheres para ganhar a vida longe de casa. Mas a estima, o respeito e a solidariedade eram características que se encontravam tanto num tipo de família quanto no outro. Assim como as tensões ou violências. As “uniões à moda da terra” – nome que se dava aos amancebamentos – originaram famílias mestiças. As pessoas se escolhiam porque se gostavam, passando a trabalhar juntas e a ter filhos. Muitas só no fim da vida recorriam à Igreja para casar, por medo do inferno.

Outra razão para as famílias não se constituírem a partir do casamento era o preço da cerimônia. Casar custava uma fortuna, além de ser uma trabalheira para conseguir todos os papéis. O pior é que as pessoas eram perseguidas quando não contraíam matrimônio na frente do padre. Algumas marcas do passado sobrevivem: a família continua a correia de transmissão de valores e tradições. É “em casa” que aprendemos sobre o certo e o errado, sobre nossa cultura e nosso passado.

Encontramos também aquelas famílias em que o papel dos “agregados” – padrinhos e madrinhas, afilhados, parentes pobres – ainda é muito forte, assim como as chefiadas por mulheres independentes, uma velha tradição no país. Se compararmos nosso tempo com o do triunfo conjugal do início do século 20, vemos as mudanças. A baixa dos índices de natalidade, o aumento de casais e de nascimentos fora do casamento, o crescimento dos divórcios apontam modificações. A maior delas, contudo, é a simbólica. Está havendo uma brutal individualização da família.

Retrato da Família Imperial Brasileira / Crédito: Getty Images

Nela, assistimos à passagem do grupo ao indivíduo, que se constitui a célula-base da sociedade. A família deixou de ser um grupo predefinido para se transformar numa rede de trocas individuais, cada vez mais autônomas e eletivas. O surgimento de uma família caracterizada pelo apagamento das diferenças de sexo e de idade comprova a individualização. E gera duas correntes: a dos que dizem que a família está recuando, resultado de uma cultura fundada na defesa dos interesses pessoais e do egoísmo; e a que defende a capacidade do individualismo em valorizar escolhas capazes de fazer do outro uma fonte de realização de si. A fidelidade incondicional de outrora é trocada pela fidelidade enquanto se ama. De juramento solene, passa à consciência do provisório.

E amanhã? Os historiadores dizem que a modernização das sociedades não é feita contra a família, mas com ela. As crises matrimoniais poderiam representar um risco? Ao contrário, parecem reforçar os laços de parentesco que unem avós e netos, sobrinhos e tios em torno de mães ou pais que tenham que criar os filhos sozinhos. Se a família, hoje, se funda sobre escolhas eletivas e temporárias, o desejo dos indivíduos é o seu fundamento. Ela não pode ser separada da sociedade, da qual é, ao mesmo tempo, produto e suporte. A busca de continuidade é um dos desafios da humanidade e cada homem e mulher possuem o desejo de garantir sua descendência.


Por Mary Del Priore

Doutora em história social com pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, vencedora do Prêmio Jabuti e autora de Histórias Íntimas – Sexualidade e Erotismo na História do Brasil.