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Matérias / América Pré-Colombiana

Antes dos Incas: o grande enigma da civilização Moche

Por séculos, um misterioso povo que praticava sacrifícios humanos, dominou a costa norte do Peru. O pouco que se sabe sobre ele deve-se à incrível cerâmica com motivos eróticos

Júlia Priolli Publicado em 14/11/2019, às 08h00 - Atualizado em 08/12/2022, às 10h15

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Ilustração representando a civilização Moche - Divulgação
Ilustração representando a civilização Moche - Divulgação

Os guerreiros sabiam que, ao chegar à cidade, após mais uma conquista, seriam recepcionados com uma festa preparada por membros da elite. Ornamentados com plumas e pinturas no corpo, levantaram suas armas, maças de madeira ou metal, nas quais penduraram armas e adornos dos inimigos combatidos.

À frente deles, alguns dos próprios derrotados caminhavam, desarmados, nus e atados pelo pescoço por uma corda. Ao entrar no centro cerimonial, os vitoriosos foram recebidos pelos integrantes da elite, que, de mãos dadas e usando seus melhores enfeites, se dispuseram ao lado do caminho percorrido pelos guerreiros, dançando para recepcioná-los.

A cena aparece em um mural em relevo de Huaca de la Luna, na costa norte do Peru — feito, muito provavelmente, em comemoração a alguma vitória do povo que habitava esse local sobre uma etnia vizinha. Eles eram os Moche (ou mochicas), uma das mais antigas civilizações da América do Sul.

Esse povo, que desapareceu mil anos antes de os incas dominarem os arredores andinos, deixou para trás poucas pistas de sua existência. Por isso é tão difícil determinar, de fato, quem foram, como viviam e como sumiram. “Os incas têm narrativas sobre povos que dominaram ou incorporaram. Mas os Moche vieram tanto tempo antes que não estão nessas narrativas”, afirma o historiador Eduardo Natalino dos Santos, da USP, especialista em povos pré-colombianos.

A costa peruana é um lugar completamente árido, repleto de dunas. Assim, acredita-se que esse povo foi capaz de dominar o deserto — se bem que as coisas podem não ter sido tão difíceis assim. “O rio Moche e outros rios da região têm um afluxo de água constante do degelo dos Andes. A costa, em termos de pesca e coleta, é uma das mais ricas do mundo”, diz Santos. Os Moche, porém, deram sua contribuição: com um sistema sofisticado de canais e dutos, irrigaram o deserto para não depender do regime de chuvas. E o mar garantia a oferta de peixes e algas, a base da alimentação.

Arte erótica Moche / Crédito: Getty Images

Os mochicas viveram entre os séculos 100 a.C. e 600 d.C., aproximadamente, quando desapareceram ou acabaram absorvidos por outras culturas. Foram os primeiros a erigir na região uma arquitetura monumental, com pirâmides imensas. O que hoje chamamos de moche era, na realidade, um mosaico de grupos autônomos que compartilhavam tradições. “Não existia uma política unificada, mas pelo menos duas instituições políticas independentes”, afirma a historiadora Cristiana Bertazoni, do Centro de Estudos Andinos e Mesoamericanos da USP.

Uma delas estava localizada nos vales de Moche e Chicama. A segunda, nos vales de Lambayeque e Jequetepeque. Todas estão na costa norte peruana, mas convencionou-se chamar os grupos de, respectivamente, mochicas do sul e do norte.

"Enquanto os do norte limitavam-se à sua área tradicional, os demais iniciaram uma política expansionista, principalmente em direção ao sul. Mas ambos compartilhavam similaridades políticas, cerimoniais, funerárias, artísticas e rituais."

Como não tinham escrita, eles relatavam o cotidiano e a mitologia em murais e peças de cerâmica. A secura do deserto contribuiu para a preservação dos objetos, que permitem afirmar com certeza algumas poucas coisas sobre o passado esquecido dessa população. "Era uma sociedade hierarquizada, de elites expansionistas, que fazia capturas, decapitações e guerras", diz Santos. "Redes políticas absorviam outras cidades, formando grandes confederações.

A cerâmica Moche se espalha por uma região bastante ampla. Era objeto de comercialização e influência, exportada e copiada em outras localidades. Assim, sabemos que houve uma expansão, combinando trocas comerciais e ações bélicas, que abrangeu uma grande região e depois entrou em decadência."

Os governantes eram considerados semideuses. Quando havia cerimônias, os servos espalhavam sulfato de mercúrio no chão para que não pisassem diretamente no solo. Sempre acompanhado de um militar (que ia com ele até para a tumba), o monarca portava uma coroa, o cetro do poder e uma narigueira de ouro. A sociedade era extremamente hierarquizada - pinturas corporais representavam o estado social e o clã do indivíduo. Abaixo do rei, encontravam-se os sacerdotes e depois os chefes militares, os nobres, os artesãos e os pescadores, sucessivamente.

Um cetro de madeira de 5 kg, recoberto com cobre, era a principal arma (por causa dele, abundam crânios com fraturas profundas nos jazigos locais). Desde a infância, os guerreiros eram iniciados em ritos decisivos para seu futuro. Uma corrida marcava a chegada da maturidade. O vencedor passava era incorporado à guarda pessoal do governante.

A cerâmica com estilo Moche foi incorporada, entre outros povos, pelos incas. As mais famosas são as que reproduzem o ato sexual e os objetos fálicos, que suscitam todo tipo de interpretação, como a de que celebravam, por meio do artesatano, o milagre da vida. Mas isso é apenas uma suspeita.

Sacrifícios e fim

Os Moche praticavam sacrifícios humanos. Nos rituais, virgens atiravam-se no abismo sob o efeito de um cacto alucinógeno conhecido hoje por "são pedro". Os prisioneiros de guerra eram as vítimas preferenciais do decapitador, que aparece desenhado em muitas vasilhas e era um semideus.

Sacrifícios (com direito a goles de sangue do escolhido) podem ser explicados de forma simples entre os mochicas. Como ocorreu em toda a América pré-hispânica, são mecanismos de coerção e poder. Serviam para que a elite garantisse sua hegemonia. Na cultura mochica, os rituais também eram úteis para agradar aos deuses e manter o equilíbrio do mundo.

Crédito: Getty Images

Só que o mundo Moche começou a ruir por volta do ano 500. Nunca se soube bem por que até 1955, quando o arqueólogo Steve Bourget encontrou na Huaca de la Luna milhares de ossos enterrados no lodo. Ele percebeu, em função do lodo, que ocorreram sacrifícios em época de chuva abundante. Mas a chuva, até hoje, é coisa rara no litoral.

A pista para desvendar o mistério veio dos Andes. Por meio da observação de glaciares, constatou-se que a costa sofreu, entre 560 e 650, uma mudança climática atroz causada por um fenômeno que até hoje assola o continente americano: o El Niño. Foram 30 anos de inundação na costa, seguidos de 30 anos de seca.

E, aparentemente, mais 30 anos de guerra civil em virtude dos recursos escassos. Ninguém mais queria ser sacrificado, duvidando da eficiência dos rituais. Os deuses deram provas em demasia de uma ira que parecia não terminar jamais. Até uma sociedade moderna teria sucumbido.