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Matérias / Chile

Há 21 anos, o sanguinário ditador Augusto Pinochet era preso

Atuando como senador vitalício do Chile, sua prisão marcou a jurisprudência internacional em relação a estadistas criminosos

Eduardo Szklarz Publicado em 16/10/2019, às 12h15

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Augusto Pinochet, o ex-ditador chileno - Wikimedia Commons
Augusto Pinochet, o ex-ditador chileno - Wikimedia Commons

Uma estranha movimentação perturbou a rotina dos pacientes internados na London Clinic, em Londres, às 23 horas de 16 de outubro de 1998. Naquele dia, agentes da polícia inglesa Scotland Yard entraram em um dos quartos do edifício para cumprir uma inusitada missão: encontrar um velhinho de 83 anos que se recuperava de uma cirurgia na coluna para informar-lhe, ainda na cama: “O senhor está preso”. Quando a imprensa divulgou que o paciente era o ex-ditador chileno Augusto José Ramón Pinochet Ugarte, milhares de pessoas se manifestaram.

De um lado, reações de alívio e alegria pelo pedido de prisão feito pelo juiz espanhol Baltasar Garzón para levar a julgamento o homem responsável pela morte de milhares de chilenos e estrangeiros que se opuseram ao seu regime.

Do outro, mensagens de indignação com a decisão do juiz e de solidariedade ao ex-ditador enviadas por admiradores chilenos e antigos aliados – como a ex-primeira-ministra inglesa Margareth Thatcher, que contou com o apoio de Pinochet no confronto armado com a Argentina pelas Malvinas, em 1982.

Em 10 de dezembro de 2006, Pinochet morreu de um infarto no miocárdio aos 91 anos. Logo depois de anunciada sua morte, manifestações tanto contra quanto a favor do regime do ditador se instalaram em frente a sua cara.

Após sua morte o mundo inteiro deve relembrar o ano de 1973, quando teve início um regime de brutal repressão política e liberalização econômica que, a um só tempo, traumatizou o Chile e o preparou para se tornar o país mais competitivo da América Latina.

Augusto Pinochet / Crédito: Getty Images

O golpe

No dia 11 de setembro, foram dadas ordens para que os aviões ligassem os motores e atingissem o alvo: o Palácio de La Moneda, sede do governo chileno. Naquele dia, em 1973, o edifício amanhecera rodeado por tanques liderados pelo general Augusto Pinochet, que exigia a renúncia de Salvador Allende – o primeiro presidente socialista eleito no Chile.

Os golpistas ordenaram que o palácio fosse evacuado até as 11h. Do contrário, seria atacado. A resposta de Allende, transmitida pela rádio Magallanes, não podia ser mais contundente: “Não vou renunciar. Pagarei com minha vida a lealdade do povo”. Com a aproximação da hora estipulada pelos militares, algumas mulheres e assessores do presidente deixaram o palácio.

Outros decidiram ficar com Allende e entrar no tiroteio ao lado de sua guarda pessoal. Às 11h50, dois aviões Hawker Hunter manobraram a 3 mil pés, posicionaram-se em eixo de ataque e lançaram os primeiros foguetes. As forças de Allende resistiram até as 13h45, quando unidades especiais finalmente tomaram o local e impuseram a rendição.

Às 14h, ouviu-se a última bala: Allende disparou contra a cabeça usando o fuzil que ganhara do amigo Fidel Castro. Ao ver o corpo, o general Palácios, líder das tropas, avisou o quartel-general da Guarnição de Santiago: “Missão cumprida. Moneda tomada. Presidente morto”.

Assim começavam os 17 anos do regime Pinochet. Para entendê-los, é preciso voltar no tempo até a década de 60, quando a Guerra Fria transformou o Chile numa nação polarizada. Grupos como o MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária) proclamavam a luta armada para chegar ao poder, enquanto agrupamentos de direita como o Movimento Nacionalista Pátria e Liberdade pregavam o uso da violência contra os marxistas.

A tensão aumentou com a eleição do socialista Allende, em 1970, e com a crise econômica e política acirrada pela oposição sistemática ao seu governo, que paralisou o país dois anos depois. Allende propôs realizar um plebiscito para solucionar a contenda sem recorrer às armas, mas não deu tempo: um grupo de oficiais já tramava sua derrubada.

No início, o golpe sofreu resistência nos quarteis. “Diferentemente de outros países da região, as Forças Armadas chilenas sempre foram constitucionais”, diz o cientista político chileno Arturo Valenzuela, que foi assessor do ex-presidente Bill Clinton e hoje dirige o Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos.

Aos poucos, porém, os generais golpistas afastaram os “brandos” e deixaram o ministro da Defesa, Carlos Prats, numa sinuca: se não renunciasse, poderia haver uma guerra civil. Para proteger a democracia, Prats renunciou e indicou para o cargo um general que sempre lhe fora leal: Augusto Pinochet. Allende aceitou.

O curioso é que, até então, era difícil saber de que lado Pinochet estava. Ele diz em seu livro El Día Decisivo (inédito em português) que liderou os planos para o golpe. Entretanto, vários relatos de militares mostram que Pinochet só aderiu à conspiração no fim, quando ela já havia sido deflagrada pela Marinha.

“Pinochet nunca participou das reuniões que fizemos para planejar a ação”, disse o ex-general Nicanor Díaz à jornalista chilena Mónica González no livro La Conjura (sem tradução no Brasil). Mas, embora tenha chegado tarde, ele logo assumiria a liderança sobre os golpistas.

Com a morte de Allende, subiu ao poder uma junta militar formada por Pinochet (Exército), Gustavo Leigh (Força Aérea), Toribio Merino (Marinha) e César Mendoza (dos carabineiros, a força policial). O embaixador do Brasil em Santiago, Antônio Cândido da Câmara Canto, foi o primeiro diplomata a reconhecer o governo.

A junta suspendeu a Constituição, dissolveu o Congresso, calou a Suprema Corte, eliminou partidos, declarou estado de sítio, censurou a imprensa e proibiu manifestações sociais.

Como o Exército era a instituição militar mais antiga, Pinochet foi nomeado chefe da junta e se manteve no cargo, que era para ser rotativo, com o apoio de Merino e Mendoza (contrário a essa personalização do poder, Leigh seria excluído do grupo mais tarde). Pinochet concentrou o monopólio da administração, das leis e dos canhões, inaugurando o terror político no Chile.

Manifestação contra o regime de Pinochet / Crédito: Getty Images

Repressão política

Para o jornalista americano John Dinges, ex-correspondente no Chile e professor da Universidade de Columbia, Estados Unidos, Pinochet formulou um modelo inédito na região, cuja meta era eliminar fisicamente toda uma classe política supostamente culpada pelos males do país.

Na prática, isso significava o extermínio de qualquer um que se opusesse aos quatro pilares de seu regime: capitalismo, civilização cristã, escolha dos Estados Unidos como guia para proteger o Ocidente e a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), que considerava os cidadãos como possíveis ameaças. Em geral, as ditaduras do continente importaram a doutrina dos Estados Unidos e a aplicaram de distintas maneiras, mas Pinochet deu a ela uma versão extrema.

“Seu projeto era a antipolítica: visava não apenas os comunistas, mas tudo que fosse democrático”, diz Dinges. Jornalistas, advogados, grupos de direitos civis, todos eram considerados “inimigos internos” passíveis das sentenças dos recém-criados conselhos de guerra. Muitas vezes, Pinochet intervinha pessoalmente para garantir a morte de seus opositores. Era a face mais dura do golpe.

Em outubro de 1973, ele encarregou o coronel Arellano Stark da formação de um esquadrão que percorreu o país fuzilando dezenas de pessoas – a chamada Caravana da Morte. “O objetivo era matar os prisioneiros sem julgamento prévio e espalhar medo entre os oficiais constitucionalistas”, diz o jornalista chileno Jorge Escalante no livro La Misión Era Matar (inédito no Brasil).

A Caravana semeou o terror. “Mas seria difícil manter uma política de extermínio tão aberta, como se fosse a guerra de um exército contra outro inexistente. Era preciso criar um organismo que ligasse os serviços de inteligência e continuasse o trabalho por outros meios”, diz o jornalista espanhol Ernesto Ekaiser, autor de Yo, Augusto (também inédito no Brasil).

Queima de livros no regime, 1974 / Crédito: Wikimedia Commons

Para continuar a exterminar seus opositores de maneira menos escrachada, Pinochet criou a polícia secreta Dina (Direção de Inteligência Nacional). Da noite para o dia, quartéis, barcos, prefeituras, escolas e hospitais foram transformados em centros de detenção. O Informe da Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura fala da existência de 1132 lugares desse tipo. O Estádio Nacional, sede da Copa do Mundo de 1962, chegou a abrigar 7 mil presos que dormiam no chão sem cobertor nem higiene.

A Comissão ouviu 35.868 pessoas que viveram sob o fogo de Pinochet. Entre as que estiveram detidas, 94% disseram ter sofrido torturas, como choque, lesões, simulação de fuzilamento, nudez forçada, roleta russa, asfixia, temperaturas extremas e privação do sono. Das 3.399 mulheres ouvidas, quase todas disseram ter sido objeto de violência sexual. Trezentas e dezesseis alegaram ter sido estupradas e 13 engravidaram dos agressores.

A Dina também eliminava parentes e amigos dos perseguidos. Foi o caso da jovem Jacqueline Droully, casada com o militante de esquerda Marcelo Salinas. Aos 24, grávida de três meses, ela foi presa e nunca mais apareceu. “Os agentes voltaram para levar Marcelo, depois de roubar a casa e quebrar tudo”, diz Nicole Droully, irmã de Jacqueline e integrante do grupo Memória Viva, que reúne um banco de dados sobre os crimes da ditadura.

Segundo o Informe da Corporação Nacional de Recompensa e Reconciliação, o regime Pinochet produziu 2.095 corpos e 1.102 desaparecidos, mas há estimativas que indicam que o número de mortos pode ter ultrapassado os 5 mil. No total, mais de 40 mil pessoas foram exiladas.

Muita gente protestou nas ruas de Santiago, mas foi recebida a bala e gás lacrimogêneo. Alguns padres levantaram a voz contra os abusos e a Organização das Nações Unidas aprovou condenações ao ditador, mas o Vaticano manteve silêncio.

A eliminação de dissidentes extrapolou a fronteira do país andino graças ao Plano Condor, aliança que Pinochet fez com Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. Oficializado em 1975 e liderado pelo coronel chileno Manuel Contreras, chefe da Dina, ele envolvia troca de informação, seqüestro, tortura e assassinato de inimigos dentro e fora do continente.

“O Condor foi desenhado para imitar, com métodos ilegais, a cooperação internacional das polícias que caracteriza a Interpol”, diz John Dinges, que rastreou a operação em documentos liberados nos Estados Unidos e na América do Sul. “Está provado que o Brasil treinou agentes chilenos. Contreras confirma que os mandou ao país para formar a Dina.”

O Condor desmantelou a JCR (Junta Coordenadora Revolucionária), organização que reunia o MIR no Chile, o Exército Revolucionário do Povo, na Argentina, e o Movimento de Libertação Nacional Tupamaros, no Uruguai. Com 5 mil integrantes e cerca de 22 milhões de dólares financiados por seqüestros, a JCR preparava uma ofensiva multinacional contra as ditaduras.

O Condor também cravou as garras em opositores chilenos no exílio. Matou o ex-ministro do Exército chileno, Carlos Prats, em Buenos Aires, e o ex-chanceler Orlando Letelier em plena Washington. Devido a pressões americanas pela investigação desses crimes, a Dina foi dissolvida e deu lugar à CNI (Central Nacional de Informações). A essa altura, contudo, Pinochet já havia mudado a cara do Chile.

Imagine como os militares brasileiros seriam vistos se entregassem o país com as contas equilibradas e com a economia preparada para crescer sustentavelmente nas décadas seguintes. Pois é, foi mais ou menos isso o que ocorreu no Chile após o governo Pinochet.

Apesar de o país não ter tido, inicialmente, o pujante crescimento que nações como o Brasil tiveram na década de 1970, o Chile se preparou para se tornar o único capaz de crescer cerca de 5% ao ano por mais de 20 anos – enquanto as décadas de 1980 e 1990 foram consideradas perdidas para o Brasil.

Não é à toa que, atualmente, o Chile é uma das economias mais globalizadas e competitivas do planeta. E não há como negar que a estrada para o crescimento foi pavimentada no governo Pinochet, ainda que da forma mais violenta possível. 

Mão do Tio Sam

Em 4 de setembro de 1970, soou o alerta vermelho no gabinete de Henry Kissinger, conselheiro do presidente americano Richard Nixon para assuntos de segurança. O socialista Salvador Allende acabava de se eleger presidente do Chile. Se a moda pegasse, a ameaça marxista perigava se alastrar aos vizinhos pela via democrática.

Os Estados Unidos vinham despejando dinheiro em Santiago para favorecer políticos de direita, mas não tiveram sucesso contra Allende. Portanto, era preciso instigar um golpe antes de 24 de outubro, quando o Congresso ratificaria a eleição. Em 15 de setembro, Kissinger e Nixon se reuniram com Richard Helms, diretor da CIA, para pôr em marcha o novo plano.

Helms anotou as seguintes orientações de Nixon: “Dez milhões de dólares disponíveis, mais se necessário”, “Os melhores homens”, “Arrebentar a economia” e “Não meter a embaixada nisso”. As ordens foram reveladas em 1975 pela Comissão Church, do Senado americano, que investigou a ação encoberta dos Estados Unidos no Chile entre 1963 e 1973.

Diante o fiasco do plano, Kissinger partiu para a última opção: derrocar o presidente. Nos três anos seguintes, os Estados Unidos gastaram 8 milhões de dólares para semear a discórdia no Chile, o que incluía propagandas e notícias falsas em jornais, dinheiro para opositores e apoio a grupos privados que incentivavam as greves. O plano fomentou o caos que antecedeu o golpe.

Embora tivesse uma relação mais próxima com a Argentina, Kissinger garantiu todo o apoio a Pinochet. A CIA treinou a polícia secreta chilena em 1974. Documentos liberados pelos EUA em 1999 mostram que o secretário de Estado também orientou seu pessoal a não pressionar o ditador sobre a violação aos direitos humanos. Isso ficou claro quando ele foi a Santiago, em 1976, para uma reunião da OEA (Organização dos Estados Americanos). Antes do discurso, Kissinger garantiu a Pinochet que não falaria nada do Chile. Dito e feito: carta branca para o ditador.

Os planos do governo eram traçados pelos gremialistas, jovens conservadores formados pela Universidade Católica do Chile (UC) e defensores da idéia de democracia protegida. Eles estavam por trás da Constituição de 1980, que deu mais poder ao presidente depois de aprovada com fraude por um plebiscito. Para pilotar a economia, Pinochet escalou os chamados Chicago Boys, estudantes com pós-graduação na Universidade de Chicago e seguidores do economista liberal Milton Friedman.

“O projeto dessa nova direita combinava semi-autoritarismo político, economia liberal, sociedade hierarquizada e cultura conservadora”, diz o historiador chileno Cristián Gazmuri, da UC, no artigo El Lugar de Pinocheten la Historia. Segundo ele, era natural que esses grupos se alinhassem com os militares, pois se complementavam: os militares trariam autoridade e ordem; os tecnocratas, o projeto histórico.

Em 1975, convencidos de que o caráter estatizante da economia chilena era a causa das crises, os Chicago Boys impuseram uma política de choque que privatizou indústrias e desregulamentou o mercado. As medidas produziram uma reviravolta na economia, tirando o Chile da crise econômica do governo Allende deflagrada em 1972.

Enquanto as outras ditaduras de direita, como a brasileira, defendiam o controle estatal da economia, Pinochet implementou reformas econômicas liberais profundas que seriam adotadas por seus vizinhos mais de 20 anos depois. “O Estado chileno era menos comprometido com os industriais e os poderosos do que os vizinhos. Essa autonomia permitiu que os Chicago Boys fizessem as reformas”, diz Arturo Valenzuela.

Fim do Regime

A estratégia que mesclava liberalização econômica e autoritarismo político foi efetiva durante quase dez anos até que, em 1982, uma queda no desempenho econômico serviu de estopim para uma onda gigantesca de protestos.

No famoso Maio de 83, estudantes e sindicatos organizaram greves e ergueram barricadas para exigir democracia. Os carabineiros responderam com prisões em massa. No ano seguinte, padres, intelectuais e grupos de direitos civis aumentaram a pressão ao criar a Comissão Nacional contra a Tortura.

O clima favoreceu a reorganização parcial de grupos extremistas apoiados por cubanos e soviéticos. Em 1986, as forças de segurança encontraram milhares de armas e explosivos no povoado de Carrizal Bajo. Pouco depois, Pinochet sofreu um atentado de FPMR (Frente Patriótica Manuel Rodríguez, braço armado do Partido Comunista chileno) ao partir com sua comitiva da cidade de El Melocotón, a 50 quilômetros de Santiago. Cinco seguranças morreram, 11 ficaram feridos, mas Pinochet só teve um corte na mão.

Em 1988, o ditador aceitou colocar seu mandato à prova com a realização de um plebiscito. Ele achava que poderia ganhar de novo, como fizera para aprovar a Constituição oito anos antes.

Mas agora era diferente. “A lembrança do caos de 1972 enfraquecera e a opinião pública sabia melhor das violações dos direitos humanos. Também havia uma pequena direita democrática e uma limitada imprensa de oposição”, diz Gazmuri. Ao contrário do plebiscito anterior, o de 1988 foi limpo.

Resultado: o “não” (ao governo) triunfou com 54% dos votos, contra 43% do sim. Sinal verde para as eleições diretas do ano seguinte, quando o ditador transferiu o poder ao democrata-cristão Patrício Alwyn. “Pinochet errou ao pensar que podia depurar a sociedade da política”, diz Valenzuela.

“No Brasil, os militares permitiram a fundação de partidos para conduzir a transição. No Chile, tentaram eliminá-los e não conseguiram. Por isso, os partidos voltaram e derrotaram Pinochet no plebiscito.”

Mas o general não jogou a toalha. Influente, foi comandante-em-chefe do Exército até 1998, quando assumiu como senador vitalício. Diante da pouca disposição do governo chileno em levá-lo a julgamento, tudo indicava que teria sombra e água fresca para o resto da vida.

Era um bom momento para uma viagem à Inglaterra, palco de tantas visitas e chás com a ex-primeira-ministra Margareth Thatcher. E foi assim que, em 21 de setembro de 1998, o senador viajou a Londres sem convite oficial, aparentemente para tratar de uma hérnia de disco. Passeou por museus e mandou flores para Thatcher, mas a paz durou pouco: o médico lhe advertiu que ficaria inválido se não fosse operado com urgência.

Entrou no bisturi dias depois na London Clinic, onde foi detido por ordem do juiz espanhol Baltasar Garzón, que pedia sua extradição à Espanha para que fosse julgado. Os defensores alegaram que ele tinha imunidade (o que foi negado pela Inglaterra) e depois que sofria de demência.

Após 16 meses de batalha judicial, o chanceler britânico Jack Straw acatou o argumento médico e o enviou de volta ao Chile em março de 2000. Ao aterrissar em Santiago, Pinochet se levantou da cadeira de rodas e fez o V da vitória. Em 2004, depois de idas e vindas, a Suprema Corte chilena decidiu que ele tinha condições mentais de sentar no banco dos réus.

Em dezembro, o juiz Juan Guzmán colocou-o em prisão domiciliar pelo desaparecimento de nove ativistas da oposição. Ao completar 90 anos, o ex-senador não mostrou culpa. “Deus me perdoará se me excedi em algumas coisas, o que não creio”, disse.

Ainda hoje, mesmo depois de sua morte em 2006, Pinochet é objeto de centenas de querelas no Chile e no exterior, por casos como violações de direitos humanos, tráfico de armas e evasão de divisas. Uma recente investigação do Senado americano mostrou que ele usou nomes falsos para manejar cerca de 8 milhões de dólares em contas secretas pelo mundo, muitas no banco americano Riggs.

Envolvidos na falcatrua, a mulher e os filhos também têm pedidos de captura internacional. “O Chile finalmente pode julgar esse personagem que não somente é um genocida, mas também, como dizemos na Espanha, um vulgar chorizo – ou seja, um ladrão”, diz a advogada argentina Susana García, colaboradora de Baltasar Garzón.

Segundo a maioria dos pesquisadores, o grande incômodo causado pelo regime de Pinochet advém do fato de que, ao menos em comparação com as ditaduras de países como o Brasil e a Argentina, onde os militares saíram do poder desmoralizados, o regime chileno foi eficiente no cumprimento de sua meta: fazer do país uma vitrine da livre iniciativa na região.

“Pinochet marca o momento em que a história da América Latina mudou. Todo o projeto da velha esquerda termina com a morte de Salvador Allende”, diz o jornalista John Dinges.

Pinochet também alcançou popularidade inédita na região ao governar numa sociedade altamente dividida. “O golpe teve apoio de quase metade da população. Além disso, entre 20% e 30% das pessoas apoiavam a idéia de matar os allendistas”, afirma Dinges. “Hoje, entre 10% e 20% dos chilenos ainda consideram Pinochet um heroi, apesar de tudo que já se sabe sobre ele".


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2. O longo adeus a Pinochet, de Ariel Dorfman (2003) - https://amzn.to/2MOQyhk

3. The Pinochet File: A Declassified Dossier on Atrocity and Accountability, de Peter Kornbluh (2003) - https://amzn.to/2IWa0HI

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