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Matérias / Personagem

Ngungunhane, o imperador que virou troféu de guerra

Ele governou o reino de Gaza, um território ao sul da África que deu muito trabalho aos colonizadores

Rodrigo Casarin Publicado em 12/07/2019, às 08h00

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Ilustração de Ngungunhane, imperador do Reino de Gaza - Wikimidia Commons
Ilustração de Ngungunhane, imperador do Reino de Gaza - Wikimidia Commons

Ngungunhane virou um troféu de guerra em 28 de dezembro de 1895. O então imperador de Gaza, reino africano ao sul da área que hoje pertence a Moçambique — e que nada tem a ver com a atual Faixa de Gaza, é bom deixar claro — caíra nas mãos dos portugueses.

Levaram-no ao país ibérico para exibi-lo à população em Lisboa, mostrando o tamanho da importância, na visão dos próprios colonizadores, que era derrubar o mandatário, um personagem que desagradava parte dos europeus e dividia a opinião daqueles que estavam sob seu comando. Com seu fim, também acabava um Império que durou cerca de sete décadas e impôs muita resistência aos colonizadores – não apenas aos lusitanos mas também a ingleses e bôeres.

Nascimento do Império

Os nguni eram grupos que integravam populações que habitavam a região do sudeste africano. Rebeldes tanto aos estrangeiros quanto às forças de Shaka Zulu, chefe local que lutou contra os ingleses que tentavam dominar o local no início do século 19, em uma área que hoje corresponde ao nordeste da África do Sul, costumavam fugir de ambos os processos de centralização política. Esses grupos, que não esmoreciam, começaram a se agrupar – ou ser agrupados – e tomar forma de reino por volta de 1828, quando o general Sohangane, que permaneceria no poder até 1858, emergiu como uma liderança nguni – e mudou seu próprio nome para Manikusse.

Estabeleceram-se na região que chamariam de Gaza. Mesmo após a consolidação do poder de Manikusse, seriam atacados por regimentos de Zulu, obrigando-os a se deslocar um pouco mais ao norte, para as terras acima do Rio Save, que hoje marca a divisão entre o sul e o centro de Moçambique. Por lá teriam dias relativamente mais tranquilos – se é que poderia haver alguma tranquilidade em uma África repleta de europeus querendo tirar-lhe proveito.

“A ausência de intervenção direta europeia nesse processo de ocupação resulta na fraca existência de registros escritos que possam articular um relato definitivo. Por outro lado, os esforços de recuperação de uma história oral da região mostram que a chegada desses grupos foi muito mais contestada do que esperada e muitas vezes eles atuaram de acordo com as formas de resolução de conflitos de maneira submissa, principalmente frente aos grupos com os quais logo estabeleceram coalizões para o domínio dos mais interioranos”, explica Hector Guerra Hernández, doutor em antropologia social, professor do departamento de História da Universidade do Paraná e estudioso da história de Moçambique.

Os europeus não tiveram vida fácil depois que o Império de Gaza foi estabelecido. Os portos de Lourenço Marques e Inhambane, pontos estratégicos na região, por exemplo, foram atacados por Manikusse, que submeteu os portugueses que ocupavam as cercanias à sua liderança. Tensões por eventos semelhantes se estenderam até 1858, quando Manikusse morre, desencadeando um momento de instabilidade política que derivou para uma guerra interna pela sucessão do seu lugar.

Muzila e Mawewe, os dois irmãos que disputavam o posto, eram nomes fortes do governo e homens de confiança do recém-morto líder. Ao cabo, Muzila contou justamente com a ajuda dos lusitanos, além de bôeres e ingleses, para derrotar o irmão e tomar o poder para si.

“Após o conflito interno, Muzila estabeleceu um tratado de cooperação, em 1869, com os portugueses, que na leitura lusitana na metrópole equivalia a um tratado de ‘vassalagem’. No entanto, na prática, a presença e influência portuguesa na região se reduziam aos portos de Lourenço Marques e Inhambane”, diz Hernández.

Resistência

Muzila morreu em 1884 e foi seu filho, Ngungunhane, quem assumiu o poder. E um poder bastante conturbado. A maneira como ele lidava com parte de seu povo — ou, melhor dizendo, com todos os povos que integravam o império sob seu domínio — e aqueles que o cercavam também gerava desagrados.

Grupos como os chopes e bitongas, que habitavam a região Inhambane e Inharrime, a leste do reino, impunham constante resistência aos exércitos de Ngungunhane, enquanto outras lideranças contestavam a legitimidade de seu poder. O mandatário desagradava aos seus supostos pares principalmente pela maneira com que costumava se apropriar do gado das comunidades locais para obter recursos e fortalecer seu poder militar.

Olhando para a relação com os europeus, no entanto, o imperador mostrava habilidade. “Gaza sob o domínio de Ngungunhane foi palco de negociações com ingleses, bôeres e portugueses, seja para obter permissão de caça, seja para negociação de armas e escravos. Os três grupos procuravam acesso à região de Gaza tanto para entrar nas zonas de elefantes quanto para chegar ao Oceano Índico.

Ngungunhane, durante seu mandato, foi uma figura muito controversa, no entanto, em relação ao processo de partilha, caracterizou-se pelo seu senso de poder nas negociações com esses europeus, ao conseguir acirrar os desafetos entre as três partes, mantendo durante um bom tempo o controle sob a região”, explica o professor.

No entanto, os lusitanos procuravam fincar seu domínio sobre os territórios que justamente compõem o atual Moçambique. Com isso queriam evitar que ingleses (para quem a região possuía valor estratégico), bôeres (que ocupavam terras ao sul) e alemães (que estavam ao norte) o importunassem. Foi quando – depois de aborrecimentos com os portugueses – Ngungunhane estreitou relações e negociações com outros estrangeiros que o sinal de alerta soou com mais força ainda entre os que respondiam a Lisboa. Para estes, derrubar o imperador e acabar com o domínio nguni em Gaza se tornara um objetivo primordial.

Decadência

É difícil dizer com exatidão o que levou à derrocada do imperador, sua captura em 1895 e o consequente fim do Império de Gaza. O cenário internacional contribuiu, claro. “Após a Conferência de Berlim (1884-1885), acirraram-se as disputas pelos territórios africanos e a posse da província de Moçambique viu-se seriamente ameaçada pelo interesse britânico e por seu projeto expansionista de ligar o Cairo ao Cabo. Nesse contexto, o sul de Moçambique era particularmente importante como escoadouro natural de toda produção da África do Sul.

O anseio britânico de anexar a região resultou no envio de representantes ao poder que parecia desafiar e sobrepor ao de Portugal na região – o Reino de Gaza. Diante da ameaça crescente à posse da província, o governo português reuniu esforços concentrados enviando as tropas encarregadas de subjugar o Reino de Gaza e garantir a ocupação efetiva desse território”, aponta Gabriela Aparecida dos Santos na obra Reino de Gaza: O Desafio Português na Ocupação do Sul de Moçambique.

Gungunhana e suas sete esposas que o acompanharam para Portugal – um escândalo para a moral do Velho Mundo da época. Crédito: Domínio Público

Fato é que as populações locais tiveram uma participação central nesse processo, talvez até mais decisiva do que a ação direta europeia. A maneira como Ngungunhane lidava com o seu povo, ou parte dele, o desgastou internamente, fazendo com que os próprios africanos questionassem os seus abusos de poder, contestassem sua hegemonia e até se aliassem a lusitanos localizados na costa da região para derrubá-lo.

“Essa falta de hegemonia, por sua vez, foi percebida e habilmente usada pelos portugueses em função de reunir aliados para derrotar o exército de Ngungunhane. Porém a resistência à presença portuguesa foi igualmente grande, tanto de parte dos ainda apoiadores de Ngungunhane, liderados por Maguiguane Kossa, como por populações locais após a derrota deste último”, relata o professor Guerra Hernández. Depois de ser levado para Portugal e exibido à população local, o agora ex-imperador foi desterrado em Açores, onde morreria em 1906.

Segundo Hernández, a figura de Ngungunhane permaneceria controversa mesmo dois séculos depois de sua morte. “Ela é contestada principalmente pelas províncias no centro e norte do país, pois não aceitam o caráter nacional que o partido no governo insiste em lhe dar por ser apenas um personagem histórico sulista, mas também no próprio sul é contestado pelo caráter estrangeiro e autoritário com que dominou a região.”


Saiba mais

Mulheres de Cinzas, Mia Couto, Companhia das Letras, 2015

Reino de Gaza, Gabriela Aparecida dos Santos, Alameda Editorial, 2010