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Matérias / Estado Novo

Capitães de Areia: o best-seller que pisou nos calos do governo Vargas

Os primeiros exemplares do livro foram queimados em praça pública

Marleine Cohen Publicado em 19/04/2019, às 03h00

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Divulgação / Imagem Filmes
Divulgação / Imagem Filmes

Uma gangue de meninos de rua à solta na cidade grande, ociosos, abandonados à própria sorte. Uma mistura de miséria, violência, ódio, trapaça, humilhação e solidão, valentia, fraternidade, sonhos. Pense em uma obra assim. Lembrou-se de Pixote, a Lei do Mais Fraco, filme de Hector Babenco de 1981? Ou de Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, baseado no romance do escritor Paulo Lins? Pois, quase meio século antes deles, houve Capitães da Areia, de Jorge Amado.

A primeira obra a escancarar o universo da delinquência juvenil no Brasil provocou reações exacerbadas assim que saiu do prelo. Publicado em 1937, pouco depois da instauração do Estado Novo, o livro foi lançado sob o prenúncio da inovação e da polêmica, o que gerou uma resposta política imediata por parte das autoridades. A primeira edição foi apreendida, e 808 de seus exemplares, queimados em praça pública na capital baiana, Salvador, na presença de membros da Comissão de Busca e Apreensão de Livros. O argumento? Os livros eram "simpatizantes do credo comunista", segundo o jornal O Estado da Bahia de 17 de dezembro daquele ano.

Em meados de 1940, porém, Capitães da Areia voltava à cena com novas edições nacionais e estrangeiras, provando que não tinha perdido sua atualidade. Ao contrário, o preciso retrato da vida dos jovens infratores e das crianças abandonadas na Bahia - cujo único momento da narrativa em que parecem aproveitar a infância, e se dão ao luxo de sonhar, é quando brincam em um velho carrossel mambembe que chega à cidade - só ganhou contornos mais urgentes com a passagem do tempo. O livro foi traduzido em dezenas de idiomas e rendeu adaptações para o rádio, o teatro e o cinema.

Aquele era apenas o início da ditadura Vargas, que se arrastou até 1945, acumulando perseguições políticas e restrições às liberdades individuais e coletivas. Crianças e adolescentes eram submetidos ao Código de Menores (ou Código Mello Matos), de 1927, o primeiro do país. Seus estatutos previam a Doutrina da Situação Irregular, que, sob o argumento de "recuperar os menores" carentes e abandonados, criou diversos reformatórios. "Crianças eram recolhidas nas ruas por meio de um aparato policial repressivo e punitivo e encaminhadas às inúmeras instituições criadas nas décadas de 1930 e 40", afirma a cientista política Irene Rizzini. Em uma tentativa de centralizar os esforços, o governo Vargas fundou, em 1941, o Serviço de Assistência ao Menor, "uma instituição na qual se praticavam abusos e corrupção tais que lhe garantiram apelidos como Escola do Crime e Sucursal do Inferno", diz Rizzini.

Meninos da rua

Em meio à outorga da Constituição Federal de 1937, orquestrava-se um ambiente de populismo trabalhista e de propaganda oficial para exaltar a figura de Vargas, o "pai dos trabalhadores". Nas palavras de Jorge Amado, "no ano que foi todo ele uma noite de terror", os jornais voltavam a falar de greves e lideranças sindicais, brigadas de choque e comícios, revolução agrária e liberdade de expressão. É esse o pano de fundo em que se articula o dia a dia dos "capitães de areia", grupo de 100 crianças e adolescentes que habita um velho trapiche abandonado, nos areais de Salvador, e trata de sobreviver na capital à custa de furtos, assaltos e outras transgressões. Os pequenos heróis interagem com os principais representantes da cena política de então: João de Adão, líder dos estivadores em greve, Loiro (pai de Pedro Bala, o chefe do bando de garotos), morto pela polícia durante uma manifestação trabalhista, e o diretor do reformatório, entre outros personagens que encarnam a luta entre os trabalhadores e o poder constituído.

A capa da obra / Reprodução 

Os meninos são chamados de capitães numa clara referência à hierarquia militar do coronelismo, que ainda imperava à época. E suas relações com o mundo adulto, francamente hostis, com direito a maus-tratos no orfanato (ou reformatório) e desdém e marginalização por parte da Igreja Católica e do Juizado de Menores.

Em meio a tropeços e aventuras (que arrancam do leitor a simpatia por eles), Jorge Amado vai costurando com maestria o perfil e o destino de alguns (se você preferir não saber o que acontece com eles, pule este e o próximo parágrafo). Pedro Bala, filho mestiço da Bahia, de cabelos loiros e rosto marcado por um corte de navalha, cederá à vocação política, seguindo os passos do pai. Sem-Pernas, deficiente físico de perna coxa, preso e humilhado por guardas na infância, alimenta um ódio incontido contra tudo e contra todos. Durante uma perseguição policial, acaba se jogando do alto do elevador Lacerda em busca da morte. Gato, aprendiz de cafetão e galã do grupo, expert na arte da sedução e da jogatina, trapaceia com o seu baralho marcado e torna-se amante de Dalva, uma prostituta. Já Volta Seca é grande admirador do cangaceiro Lampião, a quem chama de "padrinho", e lutará a seu lado, destacando-se pela sua crueldade. No enredo, há ainda lugar para a liberdade de culto, contemplada no sincretismo religioso do capoeirista Querido-de-Deus ou da mãe de santo Don’Aninha, numa época em que somente a religião católica era reconhecida pelo governo. 

Os capitães conheciam o sexo, mas nunca tinham experimentado a doçura feminina. E então surge Dora - irmã, amiga, mãe. Aos 13 anos, depois de perder os pais para a varíola, ela aparece no trapiche, conforta os meninos e torna-se companheira de Pedro Bala. Fará parte da quadrilha até ser levada a um orfanato. Um mês de maus-tratos e castigos basta para deixá-la doente. Os amigos conseguem salvá-la num resgate épico, mas ela, debilitada, não resiste. Para o amado, Dora vira uma estrela no céu.

Inovação

Jorge Amado tinha 25 anos quando publicou a obra. Viajava pela América Latina e pelos Estados Unidos quando, ao chegar em Belém, foi informado pelo escritor Dalcídio Jurandir sobre o golpe de Vargas. Como já havia sido preso por motivos políticos um ano antes, em 1936, fugiu para Manaus. Mas foi detido novamente e soube na cadeia que seus livros haviam sido queimados. Segundo Lusia Ribeiro Pereira, pesquisadora do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas da PUC-MG, "a repressão a Amado não era gratuita. Desde o começo da década, ele vinha se notabilizando pela contestação em livros como Cacau, Suor e Jubiabá". Os dois primeiros são referências explícitas ao mundo do trabalho, e o terceiro e Capitães, à marginalidade social urbana. "Em todos eles, temos o avesso da literatura ‘sorriso da sociedade’ - expressão utilizada para definir a produção do tipo ‘água do açúcar’ que pontificara entre nós no período da belle époque", afirma Pereira.

Para Simone André, mestranda em educação pela Uerj, Capitães da Areia inovou na linguagem e na temática. "Foi um dos primeiros a trazer o problema da violência urbana e da desigualdade para a literatura, colocando a mão na ferida da pederastia, no contexto da infância abandonada, e descortinando ideias da Teologia da Libertação, pelo personagem do padre José Pedro", diz, citando o movimento surgido nos anos 1970 voltado aos pobres. No livro, o sacerdote de origem humilde é discriminado por não ter a erudição dos seus iguais. Convivendo com as crianças nos areais, assumiu a missão de dar-lhes amparo espiritual.

Capitães da Areia retrata as condições dos menores de rua que ainda fazem parte do cotidiano das grandes cidades do país e rastreia as implicações políticas do alcance da imprensa - inserida no enredo por pequenas notícias acerca das personagens -, fazendo uso de uma linguagem acessível aos adolescentes, que reproduzia o falar do povo. De todos os livros de Jorge Amado, é o que mais vendeu em todo o mundo.