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Matérias / Segunda Guerra

Futebol em plena Segunda Guerra: o jogo moral entre nazistas e padeiros

As vitórias do time da casa não estavam agradando os invasores alemães e, o time formado por oficiais das baterias antiaéreas germânicas, desafiou o time ucraniano

M. R. Terci Publicado em 21/07/2020, às 17h00 - Atualizado em 07/05/2021, às 12h00

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Jogadores ucranianos - Wikimedia Commons
Jogadores ucranianos - Wikimedia Commons

Futebol não é apenas o esporte coletivo mais praticado do mundo. Mais do que isso, é uma maneira de se expressar. Uma paleta de vida que reflete todas as emoções – alegria, tristeza, coragem, desamparo, determinação. Muitas vezes, a derrota e desesperança de tempos sombrios só pode ser suportada pela esperança da próxima partida.

Que o digam os órfãos brasileiros daquele embaraçoso 7 x 1 na Copa do Mundo que jogamos em casa. Foram cinco gols apenas nos 29 minutos iniciais, em um confronto que, dado à disparidade técnica, física e tática, mais parecia um duelo entre profissionais e jogadores de várzea. Sorte que não se tratava de um jogo de vida ou morte contra os alemães do Flakelf, como aquele que ocorreu há 78 anos, no estádio do Zenit, em Kiev, na Ucrânia. O enfrentamento dos nazistas pelos jogadores do FC Start se tornaria o símbolo máximo da luta pela liberdade, numa partida de futebol que ficaria eternizada como o Jogo da Morte.

Venham comigo, pelos caminhos mais escuros da história, testemunhar o triunfo futebolístico que transformou alguns rapazes que trabalhavam em uma padaria de Kiev em mártires.

A Ucrânia, uma terra famosa por sua fertilidade, por séculos reivindicou a soberania, sendo alvo de vários conquistadores como o Império Austro-Húngaro e o Império Russo. Ao final da Primeira Guerra Mundial, com o início da Revolução Russa de 1917, a Ucrânia tentou obter sua independência, mas foi derrotada militarmente e seu território acabou partilhado entre Polônia e União Soviética.

Apesar do doloroso fracasso, os sonhos de uma pátria livre ainda moviam os ideais dos nacionalistas ucranianos. Para pôr termo a esses sonhos, a ditadura de Stalin se mostrou excessivamente monstruosa para aquela população, levando à morte milhões de ucranianos.

Quando Stalin e Hitler assinaram um acordo dividindo a Polônia em 1939, a porção oriental da Ucrânia, então sob domínio polonês, também foi entregue à União Soviética. Quando sobreveio a Segunda Guerra Mundial e a invasão da URSS pela Alemanha, muitos ucranianos aliaram-se aos nazistas, na esperança de conseguir a independência.

Cena da fatídica partida de futebol / Crédito: Wikimedia Commons

Não obstante, Hitler enxergava os ucranianos como sub-humanos e o domínio alemão acabou se mostrando ainda mais brutal. Os ucranianos, que já viviam oprimidos pelo regime stalinista, seriam submetidos a horrores indizíveis. O cartão de visita da chegada alemã era a chacina de 30 mil judeus, enterrados nos arredores de Kiev.

Logo, fazendo frente àquele horror, surgiram vários grupos de resistência, alguns pregando a luta aberta contra os invasores alemães, outros defendendo uma aliança com os russos para combater o inimigo. A cisão entre as duas convicções, contrárias uma à outra, enfraquecia a população local e deixava-a à mercê dos nazistas.

Os ucranianos possuíam uma segunda paixão.

O futebol chegou à Ucrânia no final do século 19, trazido por marinheiros ingleses e, em pouco tempo, se popularizou. Em 1927, durante a dominação russa, surgiu o Dínamo de Kiev, um time de futebol composto por policiais locais, que viria a se profissionalizar e se tornar destaque mundial. Na década subsequente, o destaque foi para o Lokomotiv, um time composto por operários ferroviários.

Tudo ia bem dentro de campo. O esporte, à nível nacional, estava muito bem representado com os dois times. Mas, com a ocupação de Kiev pelos alemães, ambos os clubes foram dissolvidos e, de maneira a sobreviver, os jogadores se tornaram empregados em uma padaria administrada por Iosif Kordik, figura que se notabilizou por salvar a vida de atletas ao abriga-los em seu estabelecimento durante aqueles tempos de guerra. Ginastas, pugilistas, esgrimistas e muitos outros atletas de outras modalidades encontravam abrigo sob o teto da grande padaria de Kordik.

A ocupação nazista impunha trabalho escravo à população, perseguia, prendia, torturava e assassinava aqueles que ofereciam resistência.

Os jogadores do Dínamo e do Lokomotiv, entretanto, decidiram que sua paixão não seria posta de lado por conta do terror. Formaram, então, um outro time, o FC Start – Começo Futebol Clube. Kordik, antigo torcedor do Dínamo, não apenas apoiou a ideia, como incentivou, patrocinou e organizou torneios locais para que a população de Kiev tivesse algum lazer durante aqueles tempos sombrios.

Os alemães, acabaram permitindo esses torneios, pois não só achavam que com isso ganhariam ainda mais simpatizantes entre os ucranianos, como também acreditavam que a superioridade dos atletas alemães se imporia naturalmente. De maneira geral, a ideia era que para se colocar os ucranianos em seu devido lugar, tornando-os escravos ainda mais subservientes, era necessário vence-los nos seus termos, em seu próprio campo de batalha.

Contudo, o FC Start venceu todas as partidas, inclusive sobre times compostos por alemães e simpatizantes nazistas. Essas duas partidas deram destaque ao time e algo pelo qual o sofrido povo ucraniano podia se orgulhar.

As vitórias do time da casa, obviamente, não estavam agradando os invasores nazistas e, logo, o Flakelf, um time formado por alguns oficiais brutamontes das baterias antiaéreas germânicas desafiou o time ucraniano.

Hora de colocar a tal superioridade ariana à prova.

O Flakelf levou um baile de 5 x 1.

A derrota da “raça superior” para um “bando de padeiros desnutridos” se tornou um embaraço difícil de ser ocultado. As notícias do desairoso episódio não só chegaram à Berlim – consequentemente aos ouvidos de seu Führer –, como também insuflaram o orgulho do povo ucraniano, que via na figura dos craques padeiros, seus heróis nacionais.

Adolf Hitler discursando em 1934 / Crédito: Getty Images

Irritados, os alemães marcaram um segundo jogo como revanche. O Flakelf foi reforçado com jogadores de outras guarnições alemãs. As orientações técnicas dos alemães chegavam em forma de ultimato: vencer e impor a superioridade da raça a qualquer custo.

Três dias depois, os times estavam prontos para o embate decisivo. A cidade estava eletrizada, a disputa ganhara caráter ideológico. O estádio do Zenit, em Kiev, estava lotado naquele dia 9 de agosto de 1942.

Contudo, para os alemães, mando de campo era pouco. O juiz da partida, um oficial da SS, momentos antes do início do jogo, desceu ao vestiário do Start e exigiu que eles fizessem a saudação nazista ao Terceiro Reich. O árbitro nazista deixava bem implícito para os jogadores do Start que outra vitória do time ucraniano significaria punição violenta. 

Mas em campo, os jogadores ucranianos se recusaram ao gesto e gritaram a tradicional saudação local: FitzcultHura! – algo como “vida longa ao esporte!”. Era oficial. O futebol, em especial aquela partida, se tornara instrumento de resistência contra a presença dos nazistas em solo ucraniano. Kordik, puxou o hino nacional e os torcedores ucranianos entraram em uníssono.

A partir de então, contando com a complacência do árbitro, os alemães se valeram de todo jogo sujo e truculência atípicas dentro das linhas do campo. Os jogadores do FC Start tiveram os corpos literalmente surrados pelos brutamontes nazistas. O time alemão marcou o primeiro gol.

Diante da violência excessiva dos jogadores do Flakelf, o público presente começou a vaiar e insultar os oficiais alemães que assistiam o jogo da tribuna de honra. Os alemães perdiam assim a simpatia de seus apoiadores locais.

Em campo, os esfarrapados rapazes do Start, mal alimentados, debilitados e maltratados fisicamente, com uniformes e chuteiras improvisadas, conseguem virar o jogo antes do final do primeiro tempo. O placar está em 3 x 1 para o valente FC Start.

No intervalo, outro oficial nazista vai ao vestiário e recomenda que percam o jogo sob pena de perderem a vida. A partida recomeça. O Start toma mais dois gols, mas a hesitação momentânea desaparece, os jogadores estão em paz com seu destino e tratam de virar o jogo com mais dois gols.

FC Start 5 x 3 Flakelf. A suprema humilhação dos alemães partiria, ainda, do mais jovem e franzino dos jogadores ucranianos. Nos minutos finais da partida, Klimenko dribla sozinho toda a defesa alemã, dá um chapéu no goleiro, para a bola em cima da linha do gol, vira-se para o centro do campo e, sem marcar o gol, põe a bola novamente em jogo.

O juiz nazista encerra o jogo antes do fim. A torcida, em êxtase, provoca os alemães, a polícia alemã faz o que pode para conter o ânimo dos brigões. Kordik e todos os jogadores do FC Start esperam pelo pior.

Nos dias seguintes, todos são presos e enviados a um campo próximo a Kiev. Um dos jogadores, que os alemães suspeitavam ser espião da URSS já fora assassinado. Durante uma represália, três dos jogadores são executados com tiros na nuca.

Os alemães eram péssimos perdedores. A cidade de Kiev antes da ocupação tinha 400 mil habitantes, ao final, 80 mil sobreviventes. Em 1943, o Exército Vermelho retomou Kiev e expulsou os alemães. Os jogadores remanescentes foram liberados e recebidos como heróis na cidade.

Na década de 1950, a história foi mitificada pela União Soviética como instrumento de propaganda para valorizar o socialismo. Os atletas sobreviventes mantiveram o silêncio com medo de reprimendas ainda piores por parte do regime comunista.

A versão que correu o mundo, reproduzida em obras como o livro "Futebol ao Sol e à Sombra", do uruguaio Eduardo Galeano, e servindo de base para filmes como "Fuga para a Vitória", de 1981, estrelando Pelé, Michael Caine e Sylvester Stallone, foi a de que todos os atletas teriam sido fuzilados naquele mesmo dia por não seguirem a recomendação de perder o jogo. Hoje sabe-se que isso não aconteceu e que apenas quatro jogadores não sobreviveram à guerra. Mas o destino do time realmente teria sido diferente caso tivesse saído derrotado daquela partida-revanche.

Um dos relatos considerados mais fieis sobre o destino do FC Start é o descrito pelo livro "Futebol & Guerra", do jornalista escocês Andy Dougan. Segundo ele, o time ainda disputaria mais uma partida sete dias após o "Jogo da Morte", mas logo depois seria desfeito por ordem do comando nazista da cidade, incomodado com as vitórias do Start servindo de inspiração para a resistência ucraniana.


M.R. Terci é escritor e roteirista; criador de “Imperiais de Gran Abuelo” (2018), romance finalista no Prêmio Cubo de Ouro, que tem como cenário a Guerra Paraguai, e “Bairro da Cripta” (2019), ambientado na Belle Époque brasileira, ambos publicados pela Editora Pandorga.


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