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Matérias / Mundo

O que favoreceu a retomada de controle do Afeganistão pelo Talibã?

Alcides Eduardo dos Reis Peron, professor da FECAP, conversou com o site Aventuras na História sobre os recentes episódios

Wallacy Ferrari, sob supervisão de Thiago Lincolins Publicado em 18/08/2021, às 15h57

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Afegãos pedem ajuda diplomática ao país-natal em protesto no Reino Unido - Getty Images
Afegãos pedem ajuda diplomática ao país-natal em protesto no Reino Unido - Getty Images

A acelerada tomada das províncias e capital do Afeganistão pelo Talibã surpreende, afinal, em uma semana conseguiu desestruturar 20 anos de intervenção dos Estados Unidos para uma tentativa de reestabelecimento de ordem e afastamento do poder nas mãos do grupo fundamentalista islâmico, que tem ua compreensão deturpada do Alcorão. 

A participação norte-americana ganhou vida logo após os eventos em 11 de setembro de 2001, com a confirmação da autoria dos ataques pela Al Qaeda acompanhada com o fornecimento de aparatos e esconderijo do Talibã, iniciando a chamada “Guerra ao Terror”.

Duas décadas depois, a temida retomada de instituição ao poder resultou em cenas históricas de milhares de civis tentando fugir e deixar para trás um possível retorno da violência já conhecida do grupo.

Para entender melhor a expansão e apropriação do território, o site Aventuras na História entrevistou Alcides Eduardo dos Reis Peron, professor do curso de Relações Internacionais da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP) e pesquisador de pós Doutorado no Departamento de Sociologia da USP. 

Combatentes do Talibã em frente ao Super Tucano / Crédito: Divulgação/Twitter/reporterenato

Chegada abrupta

Autor de "American Way of War: Guerra Cirúrgica e o emprego de drones armados em Conflitos Internacionais", ele explica que, apesar do espanto, a força do Talibã nunca foi dissolvida e lista três importantes fatores no desenvolvimento da retomada: os armamentos, as táticas e a movimentação estratégica do grupo. 

“As tecnologias em armas sempre foram provenientes dos EUA, desde meados dos anos 1980 durante o combate à URSS, então eles já tinham sistemas suficientes, RPGs para derrubada de helicópteros, equipando o grupo. O Talibã nunca deixou de existir, investindo nas táticas, usando técnicas de guerrilha — que envolvem movimentações rápidas, recuos e desaparecimentos estratégicos e até convencimento e aproximação de culturas locais para ganhar apoio de civis. E eles têm dinheiro, grana proveniente do tráfico de ópio e mineração, tanto de metais preciosos quanto de utilidade eletrônica”, afirmou o professor.

A soma destes fatores possibilitou o avanço do grupo, como Alcides acrescentou: “O avanço rápido expôs a fragilidade do governo norte-americano. Então, sim, nos surpreende, mas se você retomar e fizer uma análise minuciosa, dá para entender que o grupo nunca deixou de existir ou foi dizimado, mas se recolheu para regiões mais inóspitas e de menor interesse ou densidade populacional, sem perder força”.

Rendição do governo

As técnicas de guerrilha integradas a estratégia do grupo possibilitaram uma espécie de blindagem contra o governo afegão, de acordo com o professor; integrados em comunidades e auxiliando a produção local e habitantes, conseguiram aliados para desinformar o exército oficial e ajudar com informações.

Dessa maneira, a tomada de províncias até Cabul ocorreu gradativamente, aproveitando a retirada das tropas americanas.

Além disso, a abertura norte-americana para os diálogos de transição pacífica com o Talibã foi um fator favorável para os integrantes legitimar suas ações — que, em efeito de comparação, foi relacionado a uma reunião com os principais alvos da guerra, consequentemente desamparando o governo nacional e resultando em rendições incontestáveis.

“Não cabe ao Talibã respeitar certas normas e princípios institucionalizados pela própria postura do grupo. Apesar do Joe Biden dizer que nunca teve interesse em statebuilding (reconstruir o estado e infraestrutura) isto é uma grande mentira, pois na verdade, ao longo dos últimos 20 anos, os EUA tentaram colocar um governo, conduzir eleições democráticas — só que fizeram a parte de organizações internacionais, como a própria ONU (Organização das Nações Unidas) — e foi um resultado fajuto, que corrobora para essa situação que estamos vendo”, afirmou o professor.

Biden em coletiva no dia 16 de agosto, onde apoiou a retirada das tropas / Crédito: Getty Images

Derrota americana

Apesar da tentativa de justificar a retirada como uma medida de conclusão a uma suposta vitória contra o terrorismo, o pesquisador aponta que não há garantias de que todas as unidades terroristas foram eliminadas ou que não haverá possibilidades de se multiplicarem. 

"Eles nunca vão admitir essa derrota, assim como nunca admitiram contra o Vietnã. [...] Biden sempre foi a favor da retirada e já sabia que o governo ia cair, mas previa a retomada de Cabul pelo Talibã em 2 ou 3 meses, para depois jogar a culpa no governo afegão — mas uma retomada um dia depois com direito a entrevista coletiva contando com a imprensa internacional mostra o tamanho da derrota do governo norte-americano", argumentou Peron.

O professor acrescenta que, para a política interna estadunidense, a retirada já é usada como argumento da oposição ao governo pela retirada classificada como desastrada e sem plano nenhum.

"Ainda que a figura deJoe Biden sempre tenha sido contrária ao Afeganistão e a prolongada presença, o rosto da derrota será o de Joe Biden durante as declarações sem embasamento [no dia 16 de agosto]. [...] Foi uma tentativa de mitigar os danos dessa retirada, da qual o governo Biden afirma não ter a responsabilidade do que está acontecendo ali, e isso é um objeto de crítica sim, uma vez que sabe do conjunto de riscos que irá surgir ali, principalmente sobre ativistas e mulheres, objetos da violência instrumental do Talibã".

Coletiva do Talibã

Em uma conferência com representantes de veículos internacionais, o grupo extremista apresentou uma postura 'moderada' em relação aos princípios que os tornaram mundialmente conhecidos durante o final do século 20.

Argumentando maior cooperação para a garantia dos direitos sociais, a instituição diz rever alguns de seus valores, fator avaliado cuidadosamente por Alcides.

"O Talibã é reflexivo; pensou ao longo do tempo e está tentando ganhar legitimidade internacional a partir do momento em que instaurar um governo em Cabul, ainda que não obedeça regras de instituições internacionais. O ponto é que, nesse processo de escalada, é natural que eles assumam um conjunto de narrativas mais abertas e sofisticadas em relação ao Talibã dos anos 1980 e 1990 e, portanto, eles irão afirmar que não vão cometer violências”.

Contudo, o educador enalteceu um breve adendo que pode sinalizar a marca da instituição: “Eles colocaram uma nota de rodapé, que poucos deram atenção, afirmando que irão respeitar as mulheres e tudo, mas irão exigir o reconhecimento internacional dos dogmas internos do grupo. Pode ser que exista certas liberdades em termos de vestimentas ou fatores que não fere seu conjunto doutrinário, mas não acredito que a mulher se tornará um elemento de protagonismo”.

Talibã faz comunicado para população / Crédito: Divulgação/Vídeo/Talibã

Semelhança com Vietnã

As cenas de saídas massivas em helicópteros e aviões chamaram a atenção do mundo com a gravidade das imagens durante invasões em aeroportos e acidentes fatais durante decolagens, sendo amplamente comparadas aos episódios de diplomatas norte-americanos se retirando de Saigon, no Vietnã, após a derrota na guerra em 1975.

Alcides confirma que a semelhança visual possibilita uma comparação inegável, amplificada pelos veículos de comunicação, mas aponta grandes diferenças entre as retiradas.

“Saigon foi uma fuga, tropas americanas estavam morrendo a rodo e havia uma pressão da comunidade interna pelo alistamento obrigatório em uma guerra que não era de necessidade, relacionada a resistência da nação, mas sim de interesse pela presença local para contrapor o avanço soviético. [...] As forças americanas estavam desgastadas”.

Por outro lado, ele acrescenta os pontos da situação mais recente: “A saída afegã não foi pela morte, mas em um desgaste econômico e uma série de dificuldades relacionadas à política interna dos EUA, que não via mais importância nos gastos e presença feitas lá fora”, conclui.