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Matérias / Metodologia

Os historiadores buscam a verdade absoluta sobre o passado?

Muito se espera que os historiadores saibam e escrevam sobre verdades concretas sobre o passado como ele foi. É isso mesmo o que um historiador faz?

André Nogueira Publicado em 08/04/2019, às 11h06

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A Persistência da Memória - Salvador Dali / wikimedia commons
A Persistência da Memória - Salvador Dali / wikimedia commons

O trabalho do historiador é estudar o passado. E isso não é uma tarefa fácil. Principalmente porque, como o próprio nome diz, o passado já passou. Ao mesmo tempo, se o passado já passou, é impossível que ele mude, certo? Isso faz com que todo historiador caia num problema central de seu trabalho: o que o historiador busca em sua pesquisa? É o passado concreto, como ele era, o factual e inquestionável?

O primeiro problema a se elencar é sobre a natureza de um evento passado. E essa questão é tão aberta e complexa que se faz impossível responder em uma única reflexão. O passado é uma coisa bastante complicada, principalmente por se tratar de uma coisa que fazia parte da realidade, mas que não faz mais. Ou seja, Genghis Khan, Getúlio Vargas e Napoleão Bonaparte existiram e sua presença no mundo fizeram mudanças que tiveram impacto sobre a vida, mas mesmo assim, nos dias de hoje, eles não existem mais. O passado já foi e é impossível reavermos essa realidade. Com isso, é possível dizermos que o passado já não existe mais, deixou de ser “real”.

O quadro é uma representação, não uma fonte ao "Napoleão verdadeiro" (Wikimedia Commons)

Isso descamba para as características singulares do trabalho do historiador. Antes de um estudioso do mundo passado, o historiador é um leitor dos vestígios do passado no presente. Ou seja, por mais que o historiador queira, ele é incapaz de acessar o passado, só sendo permitido a ele que tenha em mãos o que sobrou dele (o que, no método histórico, é conhecido como fonte documental). Um texto, uma imagem, um objeto ou um edifício... o que sobrou do passado será a fonte do pesquisador para estudar seu objeto. Mas o passado, em si, jamais poderá ser tocado novamente.

Se o passado já não existe mais e o historiador só tem acesso aos seus vestígios, faz-se impossível que saibamos realmente como o passado foi concretamente. Achar que o historiador deve saber a “única realidade possível”, que é o que “realmente” aconteceu no passado e que seria imutável é, no mínimo, desconhecer o método de pesquisa dos historiadores. Ou melhor, é se ater a uma metodologia bastante ultrapassada, que acredita numa história que estuda os fatos concretos e a história dos dados duros e inquestionáveis, relativos à famosa “Escola metódica” oitocentista de Augusto Comte, Leopold von Ranke e Charles Seignobos.

Muito mais do que uma enciclopédia de datas e eventos concretos, quem faz história narra processos e interpretações do passado, mas que passam pelo crivo de um método pensado para que a simples visão ideológica e tendenciosa do pesquisador não se sobreponha aos dados possíveis de se retirar das fontes. Para tanto, vale procurar dois livros introdutórios sobre o método do historiador: Apologia da História ou O Ofício do historiador (Marc Bloch) e A Escrita da História – Novas Perspectivas (organizado por Peter Burke).

Marc Bloch (Wikimedia Commons)

Ou seja, diante das reflexões (básicas para um historiador) sobre o tema do tempo, fica claro que é praticamente impossível acessar e reconstituir com exatidão o que já não é mais “real” (como o passado). Este deixou, há muito tempo, de ser o objetivo científico dos historiadores. Mais do que um reconstrutor do que existiu, o objeto de estudo da historiografia passa pelas narrativas, representações, compreensões, usos, materializações e elocuções sobre o passado por agentes sociais diversos. Por exemplo, não se estuda mais a sequência e as leis criadas pelos reis do Japão (que, além da relevância questionável, já foi feito e são dados que já não fazem parte da realidade), mas sim as formas como a política se desenvolveu no país e as construções deste passado por parte dos japoneses e outros povos, ou mesmo a construção da própria noção de "Japão". Assim, a historiografia passa não só pela análise fria de dados, mas é principalmente uma atividade interpretativa.

Não a toa, por exemplo, os mitos fazem parte do objeto de estudos do historiador e podem ser até fontes para ele. Ora, mesmo que possa se dizer que a narrativa mitológica não se prende à realidade, o estudo historiográfico está mais interessado em entender a formação do mito, a agência dele em sociedade e as construções narrativas que ele cria sobre o passado do que na veracidade ou não desse testemunho em relação a uma suposta realidade concreta. Os historiadores estão mais preocupados em contrapor perspectivas já engessadas sobre o passado e rever paradigmas, testar hipóteses já elaboradas, rever os princípios da análise de outros historiadores e entender os aspectos subjetivos da sociabilidade pretérita.

Os turcos ainda hoje negam o genocídio armênio (Latuff)

Aqui, faz-se necessária uma nota sobre a importante diferença entre o revisionismo historiográfico e os "negacionismos" ideológicos do passado. Dizer que a História não busca necessariamente a realidade concreta das coisas como “realmente foram” não significa que os historiadores são mentirosos e que qualquer besteira que falarmos sobre o passado é válido. O revisionismo sério, historiográfico, tenta trazer questionamentos inovadores e combater certezas endurecidas para reaver novas formas de interpretar as fontes do passado, o que é completamente diferente de uma defesa ideológica de pautas políticas sobre o passado para desestabilizar a seriedade da pesquisa histórica.

Um revisionista sério, diferentemente de um "negacionista", não fala que o holocausto nazista, a ditadura militar brasileira ou os expurgos stalinistas nunca existiram, mas tentam reinterpretar esses processos para compreendê-los a partir de uma perspectiva renovada. Ele busca levantar questionamentos válidos e narrativas sustentadas pela documentação, a partir da noção de que a história não é uma linha imutável de fatos inquestionáveis e, sim, uma narrativa sobre ações que já não existem mais.

Esses questionamentos não são simples de responder. É possível analisar a historiografia e pesquisar história sem a noção de busca pela realidade concreta, mas é impossível dizermos que este é uma questão já fechada, cuja resposta já se achou. O trabalho historiográfico é acima de tudo uma análise do mundo das narrativas sobre o passado, tendo o Tempo como grande matéria prima. Então, pense nisso antes de falar que um historiador “não sabe a história de verdade”. Afinal, história como profissão é bem diferente da história simplificada que vemos na escola, e é por isso que a curiosidade e o ceticismo de perguntar sobre história para historiadores e tentar criar debates é muito mais frutífero que a cega defesa de que historiadores mentem e manipulam de acordo com suas próprias vontades. 

"Tudo é real, porque tudo é inventado", dizia Guimarães Rosa (Reprodução)