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Matérias / Personagem

Os estudos de Sigmund Freud, o gênio paradoxal

Em sua teoria sobre a sexualidade feminina, o austríaco revelou-se um arquétipo de machista. Mas inventou a psicanálise para dar voz às mulheres

Alexandre Carvalho Publicado em 01/04/2020, às 10h00 - Atualizado em 25/02/2022, às 09h00

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Freud em foto pessoal - Wikimedia Commons
Freud em foto pessoal - Wikimedia Commons

“Uma mulher inquieta vai ao médico ou às compras.” A frase machista poderia ser dita num grupo de amigos bêbados, fazendo piada sobre as esposas. Mas saiu da boca do pensador que mais se dedicou a investigar a mente humana, partindo justamente dos distúrbios emocionais das mulheres.

Sigmund Freud, aliás, teria como preencher um pequeno livro só com seus ditos misóginos — como este, que soltou durante os debates da Sociedade Psicanalítica de Viena sobre a “posição natural das mulheres na sociedade”, em 1906: “Uma mulher não pode ganhar o sustento e criar os filhos ao mesmo tempo”.

Um ano antes, chamado a atuar como perito para uma reforma na lei do divórcio, o austríaco ainda diria: “A igualdade entre os sexos é impossível devido aos seus diferentes papéis no processo de reprodução”.

Fosse apenas por essas falas desastrosas, o pai da psicanálise poderia ter passado abaixo do radar de feministas de diversas épocas. Mas o que gerou mais revolta, inclusive entre psicanalistas mulheres que seguem em grande parte o seu legado, foi que Freudnão era apenas mais um homem machista na virada do século 19 para o 20.

O pensador construiu a mais poderosa e influente teoria sobre o funcionamento da mente, destacando o papel do inconsciente como fator determinante das nossas escolhas, nossos comportamentos e nossa personalidade.

E, entre as muitas teorias que alimentam o universo da psicanálise, Freud lançou, em 1905, sua obra mais polêmica — que lhe rendeu fama de pansexual, além do ódio de mulheres ativistas: Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade.

Nesse estudo, baseado principalmente no que ouvia das pacientes que frequentavam seu divã em Viena, Freud apresentou em detalhes sua famosa teoria do complexo de Édipo, segundo a qual meninos teriam fixação sexual pela mãe, o que refletiria em seu amadurecimento.

Também chocou pais, mães e avós na mesma obra ao sugerir que crianças têm desejos e brincadeiras sexuais. E ainda aproveitou para transformar seus pensamentos conservadores a respeito da mulher em suposto achado científico: a famigerada inveja do pênis. Uma teoria que afirma, basicamente, que meninas são meninos com defeito de fábrica.

E que a ausência desse órgão determinaria para sempre a inferioridade feminina em relação aos homens. Foi aí que esse viciado em charutos — curiosamente um símbolo fálico — comprou briga com mulheres do mundo todo. E foi contestado até pelos próprios seguidores.

Freud, aos 16 anos, e sua mãe, Amalia, em 1872 / Crédito: Wikimedia Commons

“Freud achava a psicologia das mulheres mais enigmática que a dos homens”, contemporizou seu amigo e biógrafo Ernest Jones (1879-1958). Mais contundente foi o comentário da psicanalista alemã Karen Horney (1885-1952), fundadora da escola neofreudiana — que alterna consensos e conflitos com o pai da psicanálise —, uma das pioneiras a combater a ideia de que o feminino nasce da constatação da falta do órgão masculino.

“Como em todas as ciências, a psicologia das mulheres tem sido considerada até agora apenas do ponto de vista dos homens.” Horney contra-atacou, sugerindo em seus escritos que o macho é que teria uma inveja do útero.

“Quando alguém começa a analisar os homens, como eu fiz, após uma vasta experiência de análise de mulheres, tem a impressão surpreendente da intensidade dessa inveja da gravidez, do parto e da maternidade.”

Até a filósofa Simone de Beauvoir (1908-1986), em seu livro 'O Segundo Sexo', dedicou um capítulo inteiro da obra para apontar os equívocos do ponto de vista psicanalítico a respeito das mulheres.

Tanta revolta tem por quê. Sigmund Freud fez articulações geniais para dar verniz científico a concepções que, na sua essência, representam — ainda que por meio de uma elaboração ultrassofisticada — o pior do machismo cotidiano. Chegou a especular por que os maridos, esses abnegados vigias da insensatez feminina, têm de esperar por horas até que as esposas terminem de retocar a maquiagem diante do espelho.

A inveja do pênis

Segundo a teoria de Freud sobre a sexualidade feminina, é na chamada fase fálica, entre os 3 e 5 anos, que as crianças começam a diferenciar o que é menino e o que é menina. Para sorte de uns e frustração de outras. Seria nessa fase que as mocinhas dão atenção ao fato de que seus amiguinhos, irmãos e primos têm pênis.

Mesmo que ainda pequenininho, surge aos olhos das crianças como um órgão arrogante e exibido, que deu de aparecer no mesmo lugar do corpo onde elas só têm um imenso vazio. Ou, para as mais atentas, um clitóris, percebido como um micropênis que não deu certo.

Assim como as crianças sentem desejo de possuir os carrinhos e bonecas das outras, a menina também passa a querer aquele brinquedo. “Essa falta lhe cai como uma injustiça e como motivo para se sentir inferior”, explica o austríaco.

Para simplificar aqui as teses psicanalíticas de Freud sobre as consequências dessa inveja, vamos apenas dizer que a constatação de que é um ser humano de segunda categoria vai criar na mulher um abalo sísmico no amor-próprio, que o pensador chama de ferida narcísica — sim, um machucado no seu ego.

Esse sentimento de inferioridade será um fardo que a mulher poderá suportar através da vida com resignação ou com revolta. Para Freud, é como escolher entre a vida normal e a doença mental.

O estigma de castrada fará com que o desenvolvimento da sexualidade feminina possa, segundo Freud, seguir três destinos. Primeiro: a frigidez ou neurose para aquelas que reprimem seus quereres dentro de uma sociedade que só permite a eles, os homens, a expressão de desejos sexuais e a ambição de altos voos no trabalho.

Segundo: o complexo de masculinidade para as que não se conformam com sua castração e decidem ser um menino, fazendo de conta que têm um pênis. Freud coloca nessa categoria tanto as lésbicas quanto as mulheres com vocação fálica, as que assumem papéis de liderança na sociedade — com profissões que seriam pênis simbólicos.

O terceiro destino é o que Freud considera o único capaz de evoluir como uma sexualidade feminina normal: a vida de dona de casa. Seria a aceitação de uma inferioridade que, por ser anatômica, não tem como ser superada.

Na frente, Freud, G. Stanley Hall e Carl Jung, em 1909 / Crédito: Wikimedia Commons

Só ao aceitar esse papel subalterno, vivendo à sombra de seu marido provedor, o senhor do seu castelo, a mulher teria chance de atingir a estabilidade psíquica. Melhor ser um bibelô feliz que enfrentar as angústias de um protagonismo que não seria da natureza delas.

Ele ainda escreveu que a mulher demora tanto a se arrumar para sair por causa da bendita inveja do pênis. A vaidade, consumindo um bom tempo à frente do espelho, seria uma forma de equilibrar o jogo diante do glorioso pênis do marido

“Elas não podem fugir à necessidade de valorizar seus encantos de modo mais evidente, como uma tardia compensação por sua inferioridade sexual original”, escreveu. Já no artigo O Problema Econômico do Masoquismo, Freud disse que, enquanto o homem tem uma maior inclinação ao sadismo, a mulher é uma masoquista de nascença.

 “Sabemos agora que o desejo, tão frequente em fantasias, de ser espancado pelo pai se situa muito próximo do outro desejo, o de ter uma relação sexual passiva (feminina) com ele.” Um jeito bem mais elaborado de repetir o bordão cafajeste “mulher gosta de apanhar”.

Essa perspectiva falocêntrica a respeito da evolução da sexualidade feminina não nasceu apenas das conclusões vindas da prática clínica de Sigmund Freud com suas pacientes. Ela teve ligação direta com a personalidade e os valores do autor. Na juventude, o austríaco havia sido um irmão tão atencioso quanto autoritário em relação às mulheres da casa.

Desaprovou que uma irmã lesse Honoré de Balzac (de A Comédia Humana e A Mulher de Trinta Anos) e Alexandre Dumas (de Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo) por considerá-los autores de obras assanhadas.

Quando ainda vivia com os pais, Freud teve privilégios com os quais as meninas nem podiam sonhar. Para se ter uma ideia, o piano da irmã foi retirado de casa porque a música podia atrapalhar os estudos do gênio — os pais tinham fé de que o jovem Sigmund pudesse melhorar a situação financeira da família no futuro.

Mais tarde, Freud deixou claro para a noiva, Martha Bernays, que qualquer ambição profissional que ela pudesse ter não deveria extrapolar os limites da gerência... doméstica. “Espero que estejamos de acordo que administrar uma casa e educar os filhos requer da pessoa tempo integral, e praticamente elimina qualquer profissão.”

Está aí o perfil exato de alguém com tendência a achar que qualquer mulher é um ser inferior a qualquer homem. Mas a complexidade da figura de Freud desafia as tentativas de descrevê-lo de maneira simplista — ele foi um gênio paradoxal em diversos aspectos.

Foi um investigador da sexualidade que resolveu se abster de sexo quando decidiu não ter mais filhos. Um terapeuta que foi entusiasta do consumo de cocaína. Um amante da tradição que defendeu a homossexualidade como uma característica humana normal. Conservador e progressista.

Sua relação com as mulheres não poderia ser menos conflitante. Além de Freud ter se cercado de mulheres que o marcaram e de quem foi grande admirador, sua visão do feminino a partir do masculino conflita com o marco histórico mais importante de toda essa aventura do conhecimento.

Sigmund Freud construiu a psicanálise a partir de sua preocupação em dar voz a mulheres reprimidas, cujas personalidades estavam aprisionadas dentro de uma sociedade e uma época que as impediam de se expressar. Nesse sentido, ele foi o inverso de um misógino: foi um libertador da alma feminina.

As histéricas

Prostitutas, mulheres adúlteras e jovens libertinas. Esse era o público predominante na Salpêtrière, em Paris, antes que essa prisão, construída no século 17, se transformasse num imenso hospital, já no século 19. Curiosamente, seriam também mulheres fora do padrão que voltariam a dar notoriedade ao lugar.

E isso aconteceu a partir dos anos 1870, quando o neurologista Jean-Martin Charcot começou a separar epilépticas e esquizofrênicas de outras mulheres que sofriam de um determinado mal coletivo, que parecia ter se transformado em epidemia na época: a histeria.

Sigmund Freud em 1905 / Crédito: Wikimedia Commons

Embora também acometesse homens, o distúrbio parecia afetar sobretudo as mulheres — tanto que o termo vem do grego hystera, que significa útero.

Sem qualquer fonte em problema físico, mulheres começavam a apresentar paralisias em partes do corpo, sufocamentos, cegueiras, problemas respiratórios, vertigens, desmaios, alucinações, fobias súbitas.

Alguns desses sintomas seriam descritos pela primeira vez por Charcot, que se dedicou a estudar essas mulheres e fazia exibições a alunos e outros médicos nas quais conseguia a regressão momentânea dos quadros com o auxílio de hipnose. Um desses alunos, certamente um dos mais interessados, foi Sigmund Freud.

Embora as apresentações de Charcot tivessem um forte componente teatral, com os efeitos mágicos da hipnose, o neurologista conseguiu comprovar que a misteriosa histeria não era fingimento das acometidas.

Nem consequência de uma lesão física — ou não teria regressão com o hipnotismo. Era, sim, uma questão da psique, algo psicossomático, efeito de algum distúrbio emocional sobre o qual nem mesmo as pacientes tinham consciência.

Quais eram essas questões não parecia um problema para Charcot, que se contentava em estudar os sintomas histéricos e provar que a doença estava no campo da neurologia — não era possessão demoníaca nem frescura, como muitos pensavam à época. Mas Freud tinha ambições maiores. Ele queria ir até o fim: desejava curar essas mulheres.

A complicação vinha justamente da impossibilidade de lidar com a moléstia na esfera do consciente. Isso até que o caso de uma histérica em especial, paciente de um amigo de Freud, trouxesse pistas sobre como acessar esses sentimentos ocultos que tinham acarretado transtornos físicos. O nome da jovem era Bertha Pappenheim. Mas a história da psicanálise a conheceu como Anna O.

Anna foi o pseudônimo que Freud e o amigo Josef Breuer, médico de Bertha, deram à mulher quando descreveram seus distúrbios e sua cura no livro que escreveram juntos, Estudos sobre a Histeria, de 1895 — uma obra em que relatam casos clínicos de mulheres histéricas.

Criada no ambiente repressor de uma família da burguesia judaica de Viena, ela começou a apresentar sintomas psicossomáticos quando seu pai adoeceu gravemente. Primeiro uma tosse nervosa, depois estrabismo, paralisias.

Também teve amnésia (esqueceu a própria língua durante um período) e alucinações (via serpentes negras no lugar dos cabelos). Breuer descobriu que os sintomas da paciente diminuíam quanto mais ela falava sobre suas emoções e acontecimentos do dia anterior para ele — sob efeito de hipnose, ainda a técnica de Charcot.

Até que um dia, conseguindo se lembrar de um evento no qual sentira nojo de um cachorro bebendo água no copo de sua dona, Bertha conseguiu curar-se de uma repulsa que estava tendo de beber qualquer líquido. E outras curas se sucederam assim.

O médico descobriu que a descrição de uma emoção incômoda, antiga, que não era lembrada sem ser provocada pelas conversas da terapia, fazia com que um sintoma fosse removido.

Freud viu nesse sucesso terapêutico do amigo uma descoberta muito maior, que seria a base de sua grande teoria: a de que temos traumas e outros sentimentos negativos reprimidos, que provocam transtornos emocionais com efeitos diversos sobre a nossa vida.

Já em 1922, por Max Halberstadt / Crédito: Wikimedia Commons

Podem ir de um distúrbio psicossomático (como a histeria) a um excesso de timidez, uma perversão sexual, uma fobia específica, um comportamento qualquer fora do padrão da normalidade.

Na Viena daquele início de século 20, quando as mulheres da burguesia viviam trancadas em casa, numa época sem televisão nem internet, vontades reprimidas não faltavam.

É como definiu a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, biógrafa de Sigmund Freud: “Para exprimir sua aspiração à liberdade, as mulheres não tinham outro recurso senão a exibição de um corpo atormentado”.

Mas há um labirinto aí: essas emoções não estão acessíveis e nem podem ser descritas facilmente para que o paciente lide com elas, como quando alguém recebe um diagnóstico de hipertensão.

Por elas serem tão chocantes (o desejo homossexual na mente de uma mulher de valores tradicionais, por exemplo), a mente dá um jeito de que não tenhamos consciência delas. E esses sentimentos ficam reprimidos no universo escuro do inconsciente. Para acessá-los, só em circunstâncias especiais.

Para Freud, poderia ser pela interpretação dos sonhos. Ou na terapia psicanalítica. Conceitos como recalque, associação livre, transferência, entre outros, foram sendo construídos a partir desse insight sobre traumas inconscientes — e da disposição de Freud para tratá-los.

Diferentemente de grande parte dos médicos de sua época, o austríaco não aceitou a generalização de que mulher é tudo louca. Dedicou-se a investigar e tratar as questões mais profundas dessas mulheres — ainda que derrapasse quando o assunto foi a sexualidade delas.

O paradoxo de Freud revela, no aspecto dos costumes, um indivíduo conservador, machista, que via o homem como centro não apenas do amadurecimento sexual do ser humano, mas também da cultura e do avanço da sociedade, restando à mulher ser coadjuvante, um acessório — ou um alicerce — desse sucesso.

Mas o Sigmund Freud que entrou para a história só se tornou um dos pensadores mais influentes de todos os tempos por uma iniciativa que é o inverso desse perfil: buscou ouvir as mulheres, descobrir suas emoções represadas.

Deu-lhes, enfim, espaço para que se comunicassem num mundo e numa época em que a própria falta de oportunidade para expressão as deixava doentes. Levou-as tão a sério quanto alguém que pressupõe e respeita uma igualdade — de direitos e aspirações — que ainda depende de luta cotidiana. Aqui no nosso século 21.


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