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Matérias / Personagem

Santo ou maldito? Teria o papa Pio XII sido cúmplice do nazismo?

Morto há 51 anos, ele foi eleito em 1939, mesmo ano em que a Segunda Guerra Mundial estourou. Até hoje se discute seu papel então. Teria sido omisso? Cúmplice? Poderia o papa ter evitado o Holocausto?

Lira Neto Publicado em 09/10/2019, às 09h00

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Crédito: Wikimedia Commons
Crédito: Wikimedia Commons

Nos últimos anos a reconciliação entre a Igreja e os judeus avançou bastante na história do cristianismo. Mas resta um grande obstáculo a superar: a campanha pela beatificação de Eugenio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli, o papa Pio XII (1876-1958). Iniciada em 1965, a causa estava suspensa pelo Vaticano até o papa Bento XVI, que proclamou-o "venerável", argumentar pela retomada do caso.

O problema é que líderes de organizações judaicas e famílias de sobreviventes do Holocausto acusam o sumo pontífice de omissão ante as atrocidades nazistas na Segunda Guerra Mundial, iniciada em setembro de 1939. Já o Vaticano assegura que Pio XII, que assumiu o papado em março de 1939, atuou em silêncio para evitar o pior.

Essa controvérsia causaria surpresa para muitos judeus que viveram durante o conflito. Albert Einstein (1879-1955), um refugiado do nazismo, e a ex-primeira-ministra israelense Golda Meir (1898-1978), por exemplo, expressaram publicamente sua gratidão ao Santo Padre por salvar judeus do genocídio.

A polêmica só ganhou força em 1963, com a peça de teatro O Vigário, do protestante alemão Rolf Hochhuth, hoje com 86 anos. Nela, Pacelli era retratado como um sujeito calculista e sem moral, que ignorou o sofrimento dos judeus em nome de interesses próprios. É uma obra de ficção, embora ancorada em ampla pesquisa do autor. Até que ponto ela teria algo de verdade?

Essa é a pergunta que ainda hoje instiga os historiadores. Vários livros foram lançados, com diferentes interpretações sobre a conduta do pontífice antes e durante o regime nazista. Em geral, eles podem ser divididos entre os pró e os contra Pio XII.

Uns o acusam de ser cúmplice do Holocausto, enquanto outros garantem que ele atuou nos bastidores para salvar quantas pessoas pôde. Mas, antes de conhecer os argumentos dos dois lados, é preciso entender a situação do Vaticano nos anos anteriores à Segunda Guerra.

Igreja ameaçada

O poder dos papas vinha naufragando desde a Revolução Francesa, em 1789. Na época, a razão começava a reinar sobre a fé, e os Estados modernos estavam dispostos a separar a religião da política. Durante o século 19, as propriedades da Igreja foram saqueadas e seus territórios viviam sob constante ameaça.

Em 1809, o imperador francês Napoleão Bonaparte (1769-1821) chegou a sitiar o Vaticano e prender Pio VII (1742-1823). Na tentativa de diminuir o poder do catolicismo na França, ele manteve o pontífice confinado durante mais de quatro anos.

Napoleão foi derrotado em 1815, mas o processo de unificação da Itália botou as terras da Igreja novamente em risco. Em 1860, o rei piemontês Vitório Emanuel II (1820-1878) já controlava quase todos os domínios papais do centro da Itália.

Pio XII / Crédito: Wikimedia Commons

Nessa época, surgiram duas correntes dentro da Santa Sé. Uma delas insistia no poder papal absolutista: a outra queria repartir esse poder com Igrejas nacionais independentes de Roma. A primeira alternativa levou a melhor no Concílio Vaticano I.

A Igreja proclama, em texto de 1870, o dogma do papa incontestável e infalível. Os líderes nacionalistas logo deram o troco. Na Alemanha, na Bélgica e na Suíça, ordens religiosas foram expulsas pelos governos locais e o ensino ficou nas mãos do Estado. Na Itália, manifestantes protestaram durante o cortejo fúnebre de Pio IX (1792-1878) e só não jogaram o caixão no rio Tibre porque os seguranças agiram rápido e salvaram o cadáver do papa.

Diplomata centralizador

Diante da crise, os novos líderes da Igreja tinham agora um duplo desafio: defender a integridade da instituição e recuperar o poder político entre os donos da Europa. Para isso, a Santa Sé investiu pesado na formação de diplomatas — entre eles Eugenio Pacelli, um romano nascido em 1876 numa família de juristas a serviço do Vaticano.

Ele ajudou a reformular a legislação católica, a fim de conceder aos pontífices uma autoridade indiscutível. Em 1917, essas leis foram compiladas no Código de Direito Canônico.

Partidos fechados

O outro trunfo de Pacelli era um doutorado sobre as concordatas, nome dado aos tratados que a Santa Sé usava para regular suas relações com os Estados - por exemplo, para garantir o direito da Igreja de controlar escolas religiosas ou celebrar casamentos. O Brasil já chegou a assinar um acordo desse tipo com o Vaticano, que gerou críticas de entidades contrárias ao ensino religioso em escolas públicas e a outros privilégios de caráter não-laico.

Durante décadas, o conteúdo desses tratados (em geral assinados pelo papa com os soberanos, ou por cardeais-secretários de Estado com embaixadores autorizados) tinha variado de acordo com o país. "Com o código de 1917, porém, a concordata virou um instrumento que impunha condições a bispos, padres e fiéis, sem consultas e em qualquer lugar do mundo", diz o jornalista britânico John Cornwell, autor de O Papa de Hitler — A História Secreta de Pio XII.

Foi uma dessas concordatas que o papa Pio XI (1857-1939) assinou em 1929, com o ditador italiano Benito Mussolini (1883-1945): o Tratado de Latrão. Elaborado pelo irmão mais velho de Pacelli, Francesco, o documento reconhecia o Vaticano como Estado soberano e o catolicismo como a única religião da Itália.

Em troca, fechava o Partido Popular Católico. Por quê? Simples: o Vaticano queria os fiéis fora da política para não prejudicar sua hierarquia e influência.

Muito antes de se tornar líder máximo dos católicos, Pacelli estava convencido de que a Igreja só permaneceria unida no mundo moderno com o fortalecimento da autoridade dos papas. Na década de 20, quando era embaixador do Vaticano na Baviera, ele tinha assinado esses acordos com a Rússia, a Letônia e a Polônia.

Em 1933, já secretário de Estado do Vaticano, ele via no Tratado de Latrão o modelo perfeito para seu maior objetivo: uma concordata com a Alemanha, onde viviam cerca de 23 milhões de católicos.

O único problema era o chanceler Adolf Hitler (1889-1945). "Pacelli e Hitler nutriam um desprezo mútuo. Cada um se sentia ameaçado pelo potencial do outro de exercer poder mundialmente", escreve o jornalista americano Dan Kurzman no livro Conspiração contra o Vaticano.

"Apesar da desconfiança, os dois viram vantagens - pelo menos temporárias - em frear o conflito com a assinatura de uma concordata em 1933." O acordo tornou todos os alemães sujeitos às leis canônicas e acabou com o Partido do Centro Católico, a única agremiação democrática que ainda restava no país.

Até aqui, não há grandes dúvidas a respeito do religioso. Os historiadores começam a se dividir a partir do momento em que o cardeal se tornou papa, em 1939. Afinal, ele foi omisso ou discreto durante o Holocausto?

Contra Pio XII

Para Cornwell, o italiano não foi apenas omisso; ele ajudou o Führer: "Como disse Hitler, numa reunião ministerial de 14 de julho de 1933, a garantia de não intervenção de Pacelli deixava o regime livre para resolver a questão judaica". Isso não significa que Pacelli simpatizasse com o Partido Nazista. Ao contrário: não apoiava sua plataforma racista e via nele uma ameaça à religião.

"Mas o temor ao nazismo era ofuscado por um medo ainda maior de Pacelli, o comunismo", diz o historiador Michael Phayer, da Universidade de Marquette, nos Estados Unidos. Foi com essa mesma lógica antimarxista que a Igreja apoiou ditadores como Benito Mussolini, na Itália, e Francisco Franco (1892-1975), na Espanha. Valia tudo para conter o "perigo vermelho". Até mesmo fazer um pacto com o diabo.

O papa e seus fiéis / Crédito: Domínio Público

Mas o ponto é: Pio XII ficou mesmo em silêncio durante o Holocausto? Nem tanto. O papa falou, sim, mas poucas vezes e de forma ambígua. Nos discursos de Natal que fez em 1941 e 1942, por exemplo, condenou a violência, sem mencionar "nazistas" nem "judeus".

No discurso de 1942, o mais importante, quando as atividades dos campos de concentração estavam no auge, ele afirmou: "A humanidade deve esse voto às centenas de milhares de pessoas que, sem qualquer culpa pessoal, às vezes apenas por motivo de sua nacionalidade ou raça, estão marcadas para a morte ou extinção gradativa". Foi o ponto máximo de seu protesto diante das atrocidades de um regime que, ao fim da guerra, teria matado milhões de judeus.

A historiadora Susan Zucotti, da Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, não tem dúvida: se Pio XII tivesse sido mais incisivo, teria ajudado a salvar muitas vítimas. No livro Under His Very Windows: The Vatican and the Holocaust in Italy ("Sob suas próprias janelas: o Vaticano e o Holocausto na Itália"), ela lembra que os croatas fascistas eram muito devotos e, por isso, suscetíveis a acatar pedidos feitos pelo papa.

"Como as autoridades da Igreja deixaram os católicos em ambiguidade moral ao não falar, a grande maioria deles se manteve como espectadora", afirma o historiador Michael Phayer em seu livro The Catholic Church and the Holocaust ("A Igreja Católica e o Holocausto").

É certo que muitos católicos arriscaram a vida para esconder os judeus em suas casas, igrejas e escolas. No entanto, para Zucotti e Phayer, eles prestaram essa ajuda apesar do papa, e não por causa do que ele disse ou fez.

"Pio XII fez relativamente pouco pelos judeus, quando eles necessitavam, e os católicos fizeram muito mais", diz Phayer. Os críticos do sumo pontífice também questionam por que ele nunca excomungou Hitler, Heinrich Himmler (1900-1945) e outros chefes nazistas, que eram católicos batizados. Essa simples ação, argumentam, teria tido um importante efeito sobre fiéis — algo de que os defensores de Pio XII duvidam.

Mais espinhoso que acusar o papa de omisso é considerá-lo antissemita. É o que faz o jornalista e escritor John Cornwell, que cita uma carta escrita por Pacelli na época em que ele era embaixador do Vaticano em Munique.

Ao relatar seu espanto com uma manifestação de bolcheviques na cidade, ele se referiu ao líder do grupo, Max Levien (1885-1937), como "russo e judeu; pálido, sujo, olhos de drogado, vulgar, repulsivo".

Na carta, ele também diz que a namorada de Levien era "judia" e que integrava “um bando de mulheres de aparência duvidosa, judias, como todos ali”. Pode ser coincidência, mas essa referência ao fato de serem judeus, em meio a descrições de repulsa física, é um velho clichê antissemita.

O historiador americano Daniel J. Goldhagen, autor do livro Uma Dívida Moral, vai além. Ele acusa a Igreja Católica de ser a maior responsável pelo racismo que desembocou no Holocausto. Para Goldhagen, a Igreja abrigou durante milênios o antissemitismo como parte integral de sua doutrina.

A favor de Pio XII

O principal argumento em defesa do papa é simples: se ele tivesse se posicionado com mais vigor, haveria retaliação. E alguns dos especialistas que dizem isso são judeus. “Uma condenação pública mais forte teria provocado represálias nazistas contra o clero católico na Alemanha e nos países ocupados.

Também colocaria em risco a vida dos milhares de judeus escondidos no Vaticano, em igrejas e conventos da Itália, além dos católicos que os protegiam”, diz o rabino e historiador americano David Dalin, autor do livro The Myth of Hitler’s Pope (O mito do papa de Hitler).

De acordo com o rabino, Pio XII pediu às igrejas italianas que abrigassem judeus quando as tropas alemãs ocuparam Roma, em 1943, e assim evitou que milhares deles fossem deportados a Auschwitz.

“Na cidade, 155 conventos e mosteiros abrigaram cerca de 5 mil judeus durante a ocupação alemã. E outros 3 mil se refugiaram em Castel Gandolfo, a residência de verão do papa”, afirma.

Dalin rejeita a ideia de que Pio XII era antissemita: pelo contrário, ele o indicou ao título de Justo entre as Nações, utilizado em Israel para descrever não judeus que arriscaram suas vidas durante o Holocausto para salvar vidas. Afinal, Pio XII tinha motivos para temer por sua própria vida: Hitler planejava invadir o Vaticano e sequestrá-lo.

Outro defensor de Pio XII é o historiador e diplomata israelense Pinchas Lapide, ex-cônsul de Israel em Milão. Em sua obra Three Popes and the Jews (Três papas e os judeus), Lapide conclui que o líder religioso “foi instrumental para salvar pelo menos 700 mil judeus, e provavelmente 860 mil, da morte certa na mão dos nazistas”. Uma cifra exagerada, segundo os críticos.

Seja como for, Lapide justifica a tese de “maior protesto, maior retaliação” citando o exemplo da Holanda, país onde os bispos católicos mais resistiram às perseguições nazistas.

Em cada igreja, eles leram uma carta denunciando o “tratamento sem misericórdia aos judeus”. O resultado? “Enquanto os bispos protestavam, mais judeus, cerca de 110 mil, ou 79% do total, eram deportados aos campos de extermínio”, diz o historiador.

Estátua de Pio XII em Portugal / Crédito: Wikimedia Commons

Os partidários do papa também argumentam que seu silêncio é uma falácia. Garantem que seus discursos de Natal foram entendidos como uma clara denúncia do extermínio judeu. E citam como prova os editoriais que o jornal americano The New York Times escreveu na época.

“A voz de Pio XII é a única no silêncio e na escuridão envolvendo a Europa neste Natal”, afirmava um texto, em edição de 1941. A homilia de 1942 teria deixado os nazistas furiosos, afirma o historiador irlandês Eamon Duffy, autor de Santos e Pecadores — História dos Papas. “A Alemanha considerou que o papa tinha abandonado qualquer pretensão de neutralidade”, diz.

Tem mais. Para o escritor americano Kenneth D. Whitehead, é ingênuo pensar que maior protesto de Pio XII levaria os católicos a se opor aos nazistas, como se os fiéis seguissem automaticamente suas recomendações.

“O fato é; que a maioria dos católicos alemães, especialmente no início, viu em Hitler o salvador de seu país, em meio à crise pela derrota na Primeira Guerra. Os nazistas chegaram ao poder de forma totalmente legal. Só depois impuseram um regime totalitário”, diz Whitehead no artigo The Pope Pius XII Controversy (A controvérsia do papa Pio XII).

Líder infalível

A abertura de arquivos do Vaticano sobre os anos do Holocausto seria o primeiro passo nesse estudo aprofundado sobre as ações de Pio XII durante a guerra, embora muitos considerem que mesmo isso não vá adiantar nada.

“Se existisse um documento mostrando claramente o envolvimento de Pio XII em favor dos judeus, o Vaticano já o teria mostrado. E se algum outro revelasse que ele foi colaborador dos nazistas, com certeza, já teria sido removido”, diz o jornalista Anshel Pfeffer, do diário israelense Haaretz.

Segundo ele, a polêmica em torno da beatificação de Pacelli vai além do debate sobre fatos históricos e da disputa entre o Vaticano e as organizações judaicas. Ela também reflete uma disputa interna católica que vem desde o século 19: a briga entre os que defendem o poder papal infalível e os que o rejeitam.

“As atitudes de Pio na guerra não são o principal argumento dentro do Vaticano para torná-lo santo. Os que o defendem preservam sua imagem de último líder católico conservador do século. Sua adoração é central para os que creem na versão mais extrema da infalibilidade papal”, diz Pfeffer.

No fim das contas, quem sabe o papa seja bem menos do que falam sobre ele — para o bem ou para o mal. Talvez seu grande problema tenha sido a obrigação de exercer, ao mesmo tempo, o papel de líder político e de chefe religioso numa época difícil, tendo que conjugar seu dever moral com os interesses de um Estado.

Talvez ele tenha sido apenas uma pessoa ambígua, num período ainda mais ambíguo. Ou, quem sabe, o embaixador do Vaticano que virou Vigário de Cristo jogou com as regras da diplomacia, enquanto esperava com paciência pelo fim da guerra. A mesma paciência que, hoje, as pessoas precisam ter para saber quem realmente foi Eugenio Pacelli.


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2. Three Popes and the Jews, Pinchas Lapide,1967 - https://amzn.to/35nhzB5

3. Conspiração contra o Vaticano — O Plano Secreto de Hitler para Sequestrar o Papa, Dan Kurzman, 2008 - https://amzn.to/2B1QAwQ

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