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Matérias / Personagem

Piteas, o homem que descobriu o fim do mundo

No século 4 a.C, o grego Piteas realizou uma das mais incríveis viagens de todos os tempos. Saiu do Mediterrâneo, circunavegou as Ilhas Britânicas e atingiu o limite do mundo, no Círculo Polar Ártico

Beto Guimarães Publicado em 03/07/2020, às 08h00

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Estátua do grego Piteas - Wikimedia Commons
Estátua do grego Piteas - Wikimedia Commons

Há mais de 2300 anos, Piteas, o Grego, desafiou os limites da ciência para empreender uma das mais fantásticas aventuras de todos os tempos. Em sua viagem, ele partiu de Massília – atual Marselha, no sul da França, então cidade-estado grega –, passou pela Bretanha, realizou a primeira circunavegação das Ilhas Britânicas e singrou o Mar do Norte até atingir o ponto extremo norte do planeta, a mítica ilha que batizou de Thule.

Ao retornar para casa, Piteas escreveu um livro, chamado Sobre o Oceano (Peri tou Okeanou, no original em grego), no qual descrevia sua inédita aventura, o modo de vida dos povos que conheceu no trajeto e suas revolucionárias descobertas

Publicada por volta do ano 320 a.C. sob a forma de um rolo de papiro com cerca de 25 centímetros, no século seguinte, a obra de Piteas chegou a Atenas e à Biblioteca de Alexandria, tornando-se referência obrigatória para os estudos de astronomia e antropologia entre os povos do Mediterrâneo.

A fama do navegador grego dividiu seus conterrâneos: enquanto alguns acusavam-no de ser um tremendo mentiroso, outros o veneravam como brilhante cientista. Quem tinha razão? Infelizmente, o fantástico relato de Piteas não sobreviveu. É provável que o último exemplar de Sobre o Oceano tenha desaparecido no início da Era Cristã.

Hoje, ninguém duvida que Piteas de fato navegou até o limite do mundo habitado, nas proximidades do Círculo Polar Ártico, que ele teria descrito como “um lugar onde terra, mar e ar não mais existem, mas sim uma mistura das três coisas, como um pulmão marinho sobre o qual não se pode andar ou navegar”.

A poética imagem de um iceberg fascinou os europeus por séculos. Criada desde as anotações de Piteas, a expressão ultima Thule – eternizada pelo poeta romano Virgílio (70-19 a.C.), autor de Bucólicas e Eneida – passou a indicar o extremo do mundo
para a civilização greco-romana.

No entanto, a aventura de Piteas ainda guarda seus mistérios. Não se sabe o exato rumo que ele tomou, por onde passou, tampouco o que viu no caminho. Quando ele saiu de Massília? Quanto tempo durou a viagem? Será que o navegador foi sozinho? Ou tinha uma pequena tripulação? São perguntas sem resposta.

No livro The Extraordinary Voyage of Pytheas the Greek (“A Extraordinária Viagem de Piteas, o Grego”), Barry Cunliffe, professor emérito de arqueologia da Universidade de Oxford, na Inglaterra, reconstitui e, na medida do possível, oferece algumas respostas. Baseado em extensa pesquisa bibliográfica e nas descobertas arqueológicas mais relevantes dos últimos 100 anos, Cunliffe traçou o provável roteiro de Piteas.

Como um curioso e dedicado detetive em busca de provas para encadear fatos em ordem lógica e racional, o autor reúne evidências da presença do grego na Bretanha e nas Ilhas Britânicas ao rastrear ânforas gregas e massílias nas escavações arqueológicas mais recentes.

O ponto de partida para essa aventura é mesmo Massília (ou Marselha). Magnífico porto natural cujo acesso se dá por um canal de menos de 90 metros de largura que a liga ao oceano, a cidade foi fundada por volta do ano 600 a.C., pelos gregos de Foceia, local próximo a Lesbos, na Ásia Menor.

Na época de Piteas, o lugar havia se firmado como um dos principais entrepostos comerciais do Mediterrâneo, colaborando para a crescente circulação de produtos e ideias entre os frequentadores da região. No cais, os comerciantes entusiasmavam-se com os valiosos produtos que eram descarregados dos cargueiros estrangeiros, enquanto poetas e cientistas vibravam com as histórias de terras e povos distantes.

Para responder a esses dois anseios, deve ter se organizado a expedição de Piteas. No século 4 a.C., o Mar Mediterrâneo era o centro do mundo. Suas águas mornas eram disputadas por gregos, cartagineses, etruscos e romanos. Os cartagineses ocupavam uma posição estratégica, pois dominavam os Pilares de Hércules, designação grega para o Estreito de Gibraltar, que liga o Mediterrâneo ao Oceano Atlântico.

Com isso, os massílios – que praticamente desconheciam o que havia além dos Pilares – não tinham acesso ao Porto de Gadir, atual cidade espanhola de Cádiz, que era abastecido com prata e cobre da Andaluzia, além de estanho e ouro da Galícia. Num mundo em crescente competição comercial, era vital descobrir novos mercados e conquistar monopólios.

Piteas partiu rumo ao norte para encontrar as fontes de estanho e âmbar, com o objetivo de garantir a supremacia mercantil de sua cidade. A primeira etapa da viagem teve como destino a Bretanha, no noroeste da França. Como ele chegou lá? O roteiro óbvio seria contornar a costa ibérica.

Havia, contudo, o risco de ser atacado pelos cartagineses. Piteas pode ter navegado à noite, bem próximo à costa, para não ser notado. De acordo com Cunliffe, entretanto, é mais provável que Piteas tenha cruzado o interior da França numa rota com trechos fluviais e terrestres, passando por Toulouse e Bordeaux, até atingir Gironde, já na Bretanha.

Não é possível precisar quanto tempo Piteas permaneceu na Armórica (ou Aremorica), como a região colonizada pelos bretões era conhecida à época, embora seja razoável supor que ele tenha travado contato com a religiosa população local. O aventureiro massílio deve ter ficado maravilhado com os imensos túneis que os locais utilizavam a fim de armazenar grãos, provavelmente para pedir proteção divina para a colheita.

A língua falada ao norte da França era o celta, o que não deve ter representado um entrave para Piteas, que é citado por mais de um autor como versado no idioma dos “bárbaros”.
De Armórica, Piteas velejou por não mais que 24 horas, percorrendo 95 milhas náuticas, até aportar na ilha que os locais chamavam de Albião. Provavelmente influenciado pelos seus amigos da Bretanha, Piteas nomeou Albião de Britânia (Prettaniké, em grego), que significa “aqueles que se pintam”, em referência às tatuagens que os nativos exibiam no corpo. Além de ter sido o homem que descobriu a Grã-Bretanha, conforme escreveu o historiador e geógrafo inglês Sir Clement Markham (1830-1916) em um artigo de 1893, Piteas também é o responsável pelo seu nome.

Talvez seja por isso que Winston Churchill tenha dito que, pela magnitude de seu feito, Piteas deveria ser comparado no mínimo a Cristóvão Colombo. Ao desembarcar na Britânia, tudo indica que o sempre bem-informado Piteas rapidamente seguiu até Land’s End, principal fonte de estanho da ilha.

O estanho – cujo nome em inglês, tin, remete à divindade suprema dos etruscos,
Tinia – é necessário para a obtenção do bronze, liga metálica muito utilizada na Antiguidade para a fabricação de diversos artefatos, como panelas, mas especialmente armas.

Descobrir as principais fontes de estanho era, talvez, o maior objetivo econômico da viagem de Piteas, que permaneceu em Land’s End o tempo suficiente para aprender
como o estanho era extraído e processado.

Talvez interessados em estabelecer vínculos comerciais com o maluco
de Massília, os simpáticos habitantes da ilha de Albião revelaram a Piteas alguns segredos da atividade mineradora que exerciam há quase 2 mil anos.

Rumo ao fim do mundo

Após ter cumprido sua mais relevante missão comercial, Piteas deixou o estanho da Britânia para alcançar o inatingível: o extremo norte do planeta. De Land’s End, Piteas navegou em direção à Escócia, percorrendo toda a costa oeste das Ilhas Britânicas.

É provável que o massílio tenha permanecido alguns dias na Ilha de Man, devido à sua posição central no Mar da Irlanda, antes de enfrentar o recortado litoral da Escócia até Tiree e, finalmente, Orkney.

Acostumado às águas tranquilas do Mar Mediterrâneo, Piteas foi um pioneiro no estudo das marés, fenômeno natural que presenciou ao velejar nas frias águas do norte europeu, temperadas pelo calor da então desconhecida corrente do Golfo do México.

Segundo Barry Cunliffe, o aventureiro Piteas deve ter aproveitado a passagem por Orkney para fazer diversas incursões em terra firme, travando contato com populações locais. Assim, o curto trajeto teria levado alguns meses para ser percorrido.

Mas não era apenas autêntica curiosidade antropológica. Piteas deve ter prolongado seu périplo na costa oeste das Ilhas Britânicas para chegar ao Mar do Norte no auge do verão. Profundo conhecedor de astronomia – ele calculou a latitude dos lugares que visitou com um gnômon, espécie de ponteiro de relógio solar que indica a altura do Sol ou da Lua acima do horizonte –, Piteas sabia que, quanto mais ao norte, à medida que o verão se aproximava, os dias ficavam mais longos.

E ele queria chegar aos confins do Universo, à terra onde o Sol não dorme. De Orkney até Thule, que Cunliffe acredita ser a Islândia, Piteas navegou por seis dias, percorrendo cerca de 500 milhas náuticas. Lá, encontrou nativos que se alimentavam de frutas e produziam mel, até mesmo para a preparação de bebidas alcoólicas.

Explorador insaciável, Piteas deve ter convencido um navegador local a levá-lo até o lugar que ele julgava ser o limite do mundo. Após velejar por um dia inteiro, só parou quando um gigantesco iceberg, que Piteas descreveu como uma imensa água-viva translúcida, impediu sua passagem. E daí, ao que tudo indica plenamente realizado como cientista, retornou para Thule, a fim de planejar os próximos passos de sua aventura.

O pesquisador americano John B. Farmakides – especialista em cultura helênica – acredita que Piteas tenha chegado até a Groenlândia, que seria o gigantesco iceberg descrito pelo massílio. Se Farmakides estiver certo, por muito pouco Piteas não descobriu a América. Apenas para lembrar: a Groenlândia só foi explorada no início do século 20.

Antes de voltar para casa, Piteas conheceu magníficas florestas de âmbar, a valiosa resina fóssil formada há mais de 50 milhões de anos que encantava os povos do Mediterrâneo. Utilizado na fabricação de joias e estatuetas, o âmba também possuía um complexo significado místico. Gemas da resina translúcida eram utilizadas para afastar mau-olhado e oferecidas ao oceano em troca de proteção divina durante viagens arriscadas.

Cunliffe acredita que Piteas tenha completado a circunavegação das Ilhas
Britânicas antes de travar contato com o âmbar na costa da Holanda. Mas não é impossível que ele tenha avançado pelo Estreito de Skagerrak e atingido o Mar Báltico, navegando até o Golfo de Gdansk, fonte mais abundante do melhor âmbar do norte da Europa.
Após cumprir sua missão comercial – identificar as fontes de estanho e âmbar – e explorar cientificamente a Bretanha, as Ilhas Britânicas e o até então inatingível Círculo Polar Ártico, Piteas viajou de volta para Massília.

Da Bretanha, em menos de um mês, o viajante teria despontado no porto da sua cidade natal. Na bagagem, trazia muitos contatos comerciais, incríveis descobertas científicas e uma das mais fantásticas aventuras já vividas pelo homem.

Mas, afinal, quem foi Piteas? Pouco se sabe sobre a vida do homem de Massília, que recentemente tem sido comparado a Charles Darwin e Galileu Galilei. Alguns pesquisadores suspeitam que o aventureiro cientista tenha trabalhado como astrônomo no observatório de sua cidade natal, onde teria desenvolvido estudos de matemática, geografia e história.

De acordo com o geógrafo grego Strabo, Piteas – que foi contemporâneo de Alexandre, o Grande, e Aristóteles não era rico. Felizmente, o livro de Cunliffe lança um pouco de luz sobre o inestimável tesouro cultural e científico que o ilustre desconhecido de Massília legou à posteridade.