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Matérias / Ucrânia

Por que os ucranianos não conseguiram criar um estado soberano até o fim do século 20?

Geografia da Ucrânia sempre ditou o seu destino

Anne Applebaum, escritora e jornalista* Publicado em 03/04/2022, às 08h00

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Manifestantes em 20 de fevereiro de 2014 na Praça da Independência, Kiev, Ucrânia - Getty Images
Manifestantes em 20 de fevereiro de 2014 na Praça da Independência, Kiev, Ucrânia - Getty Images

Por séculos, a geografia da Ucrânia sempre ditou o destino da região. Os montes Cárpatos delimitaram a fronteira no sudoeste, mas os campos e as florestas permeáveis na parte noroeste do país nunca foram obstáculos para exércitos invasores, como também a estepe aberta do leste.

Todas as grandes cidades da Ucrânia – Dnipropetrovsk e Odessa, Donetsk e Kharkov (Carcóvia), Poltava e Cherkasy e, é claro, Kiev, a velha capital – estão localizadas na Planície Europeia Oriental, extensão plana que se espalha pela maior área do país. Nikolai Gogol, um ucraniano que escrevia em russo, certa vez ressaltou que o Rio Dnieper corre através do centro da Ucrânia e forma uma bacia.

Rio Dnieper /Crédito: Pixabay

De lá, “todos os rios se ramificam do centro; nenhum deles flui ao longo da fronteira ou serve como obstáculo natural para as nações fronteiriças”. Tal fato resultou em consequências políticas: “Caso houvesse uma fronteira natural de montanhas ou mar por
um dos lados, as pessoas que ali se estabeleceram teriam conduzido seus destinos políticos e teriam formado uma nação separada”.

A ausência de fronteiras naturais ajuda a explicar por que os ucranianos não conseguiram criar, até o fim do século 20, um Estado soberano. Pelo fim da Idade Média, existia uma língua ucraniana, com raízes eslavas, relacionada, porém distinta da polonesa e da russa, bem parecida com a relação da língua italiana com o espanhol ou o
francês.

Os ucranianos tinham uma culinária própria, costumes e tradições locais, além dos
seus próprios vilões, heróis e lendas. Assim como em outras nações europeias, o senso de identidade ucraniano se aguçou durante os séculos 18 e 19.

Entretanto, na maior parte de sua história, o território que hoje chamamos de Ucrânia foi, como a Irlanda e a Eslováquia, uma colônia que fez parte das terras de outros impérios europeus.

Terra da fronteira

A Ucrânia – palavra que significa “terra da fronteira” tanto em polonês quanto em russo – pertenceu ao Império Russo entre os séculos 18 e 20. Antes disso, as mesmas terras foram da Polônia, ou melhor, da Comunidade Polaco-Lituana, que a herdou em 1569 do grão-ducado da Lituânia.

Mais cedo ainda, as terras ucranianas se situavam no coração da Rus Kievana, Estado medieval do século 9, formado por tribos eslavas e uma nobreza viking – na memória da região, um reino quase mítico que russos, bielorrussos e ucranianos reivindicam ser a terra de seus ancestrais.

Ao longo de muitos séculos, exércitos imperiais guerrearam pela Ucrânia, cujas batalhas
pelo controle do território tiveram sempre um componente intelectual também. Desde que os europeus começaram a debater o significado de nações e nacionalismo, historiadores, escritores, jornalistas, poetas e especialistas em etnografia apresentam diversificadas argumentações a respeito da extensão da Ucrânia e da natureza dos
ucranianos.

Desde os primeiros contatos no início da Idade Média, os poloneses admitiram que os ucranianos eram linguística e culturalmente diferentes deles, até mesmo quando os dois povos fizeram parte do mesmo Estado. Muitos dos ucranianos que aceitaram títulos aristocráticos poloneses nos séculos 16 e 17 permaneceram cristãos ortodoxos, e não católicos romanos; camponeses ucranianos falavam uma língua que os poloneses chamavam de “ruteno”, e eram sempre descritos como tendo costumes diferentes, música distinta e tipo próprio de comida.

Em seu apogeu imperial, os moscovitas, embora mais relutantes em reconhecer o fato, instintivamente também sentiam que a Ucrânia, por eles algumas vezes chamada de “Rússia sulina” ou “pequena Rússia”, era também diferente da parte norte do império. Para o historiador Serhiy Bilenky, os russos do século 19 muitas vezes apresentavam o mesmo tipo de atitude paternalista em relação à Ucrânia que os habitantes do norte
da Europa, naquele tempo, tinham em relação à Itália.

A Ucrânia era uma nação idealizada, alternativa, mais primitiva e ao mesmo tempo mais
autêntica, mais emotiva, mais poética do que a Rússia. Os poloneses também permaneceram nostálgicos quanto às “suas” terras ucranianas por bastante tempo depois de tê-las perdido, tornando-as temas para poesia romântica e ficção.

Bandeira da Ucrânia /Crédito: Pixabay

O desdém da vizinhança

Todavia, mesmo reconhecendo as diferenças, tanto os poloneses quanto os russos procuraram por vezes solapar ou negar a existência de uma nação ucraniana. “A história da Pequena Rússia é como um afluente entrando no rio principal da história russa”, escreveu Vissarion Belinsky, teórico de proa do nacionalismo russo do século 19.

“Os Pequenos Russos sempre foram uma tribo, jamais um povo e menos ainda um Estado.” Burocratas e acadêmicos russos tratavam o idioma ucraniano como “um dialeto, ou um meio dialeto, ou um modo de falar da língua de todos os russos, resumindo, um patois e, como tal, sem direito à existência independente”. Oficiosamente, escritores russos usavam tal língua para caracterizar o linguajar coloquial ou dos caipiras do interior.

Escritores poloneses, enquanto isso, tendiam a ressaltar o “vazio” do território ao leste, quase sempre descrevendo as terras ucranianas como uma “fronteira não civilizada para a qual eles levavam cultura e instituições estatais”. Os polacos usavam a expressão dzikie pola (campos selvagens) para descrever as terras inexploradas do leste ucraniano,
uma região que funcionava, na imaginação deles, de modo quase tão parecido quanto o faroeste o fizera nos Estados Unidos.

Razões econômicas concretas estavam por trás dessas atitudes. O próprio historiador grego Heródoto escreveu a respeito da famosa “terra negra” da Ucrânia, o solo rico que é particularmente fértil na parte mais ao sul da bacia do Rio Dnieper: “Não existem safras mais abundantes em outro local que não em suas margens e, onde o grão não é semeado, o capim é o mais luxuriante do mundo.”

O distrito da Terra Negra abarca quase dois terços da Ucrânia moderna – espraiando-se de lá para dentro da Rússia e do Cazaquistão – e, contando com clima relativamente ameno, possibilita que a Ucrânia colha duas safras anuais.

O “trigo do inverno” é plantado no outono e colhido em julho e agosto. Os cereais da primavera são plantados em abril e maio e colhidos em outubro e novembro. As safras fornecidas pela terra excepcionalmente fértil da Ucrânia despertam há muito tempo ambições de mercadores.

Desde o fim da Idade Média, negociantes poloneses transportam o grão ucraniano para o Norte na direção das rotas comerciais do mar Báltico. Príncipes e nobres poloneses estabeleceram o que na linguagem atual pode ser chamado de zonas empresariais primitivas, oferecendo isenções de taxas e de serviço militar aos camponeses desejosos de cultivar e desenvolver a terra ucraniana.

A vontade de se apossar de tratos de terra tão valiosos sempre esteve sob o manto
das argumentações colonialistas: poloneses e russos jamais se mostraram dispostos a permitir que suas respectivas cestas de pão tivessem identidade independente.

Uma história própria 

No entanto, muito distante daquilo que os vizinhos pensavam, uma independente e distinta identidade ucraniana tomava forma no território que constitui a Ucrânia atual.

Desde o fim da Idade Média, as pessoas dessa região partilhavam um sentimento comum sobre quem elas eram, com frequência, mas nem sempre, definindo-se em oposição aos estrangeiros que lá viviam, fossem poloneses ou russos. Assim como os russos e bielorrussos, eles traçavam as origens de sua história a partir dos reis e das rainhas da Rus Kievana, e muitos se consideravam descendentes de uma grande civilização Eslava Oriental. ,

Outros se identificavam como rebeldes e desprotegidos, admirando em especial as grandes revoltas dos cossacos zaporozhian, lideradas por Bohdan Khmelnytsky contra o mando polonês, no século 17, e por Ivan Mazepa contra o mando russo, no começo do século 18. Os cossacos ucranianos – comunidades autogovernadas, semimilitares com suas próprias leis internas – foram os primeiros a transformar tal sentimento de identidade e descontentamento em projetos políticos concretos, conseguindo privilégios incomuns e certo grau de autonomia dos czares.

De maneira memorável (e, por certo, gerações posteriores de líderes russos e soviéticos jamais se esqueceram do fato), cossacos ucranianos se juntaram ao Exército polonês em sua marcha sobre Moscou em 1610 e, de novo, em 1618, tomando parte no cerco da cidade e ajudando a garantir que o conflito russo-polonês daquela época terminasse, ao menos por pouco tempo, em favor da Polônia.

Mais tarde, os czares concederam a ambos, aos cossacos ucranianos e aos de língua russa, os cossacos do Don, status especial para mantê-los leais ao Império Russo, com o qual lhes foi permitido preservar uma identidade particular.

Seus privilégios foram a segurança para que não se revoltassem. Mas Khmelnytsky e Mazepa deixaram marcas nas memórias russa e polonesa, assim como na literatura e história europeias. “L’Ukraine a toujours aspiré à être libre” (a Ucrânia sempre aspirou à liberdade), escreveu Voltaire depois que as notícias sobre a rebelião de Mazepa chegaram à França.

Ucranidade

Durante os séculos de governo colonial, diferentes regiões da Ucrânia de fato adquiriram características distintas. Os habitantes do leste da região, que ficaram mais tempo sob o mando russo, passaram a falar uma versão do ucraniano levemente mais próxima do russo; também tinham maior inclinação a ser cristãos ortodoxos russos, seguindo
os ritos originados em Bizâncio, sob hierarquia liderada por Moscou.

Os habitantes da Galícia, assim como os de Volhynia e Podólia, passaram mais tempo sob controle polonês e, depois das partições experimentadas pela Polônia no fim do século 18, sob o mando da Áustria-Hungria. Eles falavam uma versão mais “polaca” da língua e, em termos de religião, tendiam a ser católicos romanos ou católicos gregos, uma fé cujos rituais são similares aos da Igreja Ortodoxa, mas respeita a autoridade do papa romano.

Em virtude das constantes alterações nas fronteiras entre as potências regionais, membros das duas fés viviam (e ainda vivem) nos dois lados da linha divisória entre territórios outrora russos e outrora poloneses.

Por volta do século 19, quando italianos, alemães e outros europeus começaram a se identificar também como povos de nações modernas, os intelectuais que debatiam a “ucranidade” na Ucrânia eram tanto católicos quanto ortodoxos, e viviam quer na Ucrânia “oriental” quer na “ocidental”.

Apesar das diferenças na gramática e na ortografia, a língua também unificou os ucranianos de toda a região. O uso do alfabeto cirílico fez a distinção entre o ucraniano e o polonês, escrito com o alfabeto latino (a certa altura, os Habsburgos tentaram impor a escrita latina, mas a medida não vingou).

A versão cirílica do ucraniano é igualmente distinta da do russo, retendo suficientes diferenças, inclusive letras extras, para evitar que as duas línguas se assemelhem demais.

Na maior parte da história da Ucrânia, o ucraniano foi falado principalmente no interior. Como foi colônia polonesa, e depois russa e austro-húngara, as principais cidades da região – como Trotski certa vez observou – tornaram-se centros de controle colonial, ilhas de cultura russa, polonesa ou judaica num mar de campesinato ucraniano.

Já com o século 20 bem avançado, as cidades e o interior eram assim separados pela língua: a maioria dos ucranianos urbanos falava russo, polonês ou iídiche, ao passo que os do interior falavam a língua nativa.

Os judeus, quando não falavam iídiche, preferiam o russo, a língua do Estado e do comércio. Os camponeses associavam as cidades com riqueza, capitalismo e influência “estrangeira” – principalmente, russa.

A Ucrânia urbana, em contraste, julgava o interior atrasado e primitivo. Essas divisões também significaram que a promoção da “ucranidade” criou conflito com os mandantes coloniais da Ucrânia e com os habitantes dos povoados judeus, que fixaram suas residências em território da antiga Comunidade Polaco-Lituana desde a Idade Média.

A sublevação de Khmelnytsky resultou também num pogrom massivo, em que milhares – talvez dezenas de milhares – de judeus foram assassinados. No início do século 19, os ucranianos raramente identificavam os judeus como seus principais rivais – poetas e intelectuais reservavam a maior parte de seu rancor para russos e poloneses –, contudo, o muito espraiado antissemitismo do Império Russo inevitavelmente afetou também as relações judaico-ucranianas.

O valor do campo

O vínculo entre a língua e o campo significou que o movimento nacional ucraniano sempre teve marcante viés “camponês”. Como ocorreu em outras partes da Europa, os intelectuais que lideraram o despertar nacional ucraniano muitas vezes começaram pela redescoberta da língua e dos costumes do interior.

Estudiosos do folclore e linguistas registraram a arte, a poesia e o linguajar coloquial do campesinato ucraniano. Embora não ensinado nas escolas estatais, o ucraniano tornou-se a língua eleita por certo tipo de escritores e artistas rebeldes e contrários ao establishment na região. Escolas dominicais particulares e patrióticas começaram também a ministrá-la.

Ela jamais era empregada nas transações oficiais, mas era usada na correspondência particular e na poesia. A importância do campesinato também significou que, desde o início, o despertar nacional ucraniano foi sinônimo de movimento popular e do que mais tarde seria chamado “ala esquerda” da oposição aos mercadores falantes de russo e polonês, aos latifundiários e à aristocracia.

Por esse motivo, rapidamente ganhou força, seguindo-se à emancipação dos servos na Rússia Imperial sob o czar Alexandre II, em 1861. A liberdade para os camponeses foi, na realidade, liberdade para os ucranianos e um golpe desferido contra seus senhores russos e poloneses.

A pressão por uma identidade ucraniana mais poderosa foi pressão também por política e economia mais igualitárias, como a classe imperial mandante entendeu muito bem.
Como jamais foi relacionado a instituições estatais, o despertar nacional ucraniano, desde seus primeiros dias, expressou, por meio de ampla gama de organizações autônomas, voluntárias e beneficentes, exemplos precoces do que agora denominamos “sociedade civil”.

Por uns poucos anos após a emancipação dos servos, “ucranófilos” inspiraram jovens a formar grupos de estudos e de autoajuda, a organizar a publicação de revistas e jornais, a fundar escolas e estabelecimentos dominicais de ensino e a disseminar a alfabetização entre os camponeses.

Aspirações nacionais manifestaram-se por meio de pleitos pela liberdade intelectual, educação de massa e mobilidade social ascendente para o campesinato. Nesse sentido, o movimento nacional ucraniano foi, a partir de seus passos iniciais, influenciado por iniciativas similares no Ocidente, contemplando aspectos do socialismo ocidental e de seu liberalismo e conservadorismo.

Censura imperial

O breve momento não durou. Tão logo começou a ganhar impulsão, o movimento nacional ucraniano, a exemplo de outros, foi percebido por Moscou como ameaça potencial à unidade da Rússia Imperial.

Como os georgianos, os chechenos e outros grupos que buscaram autonomia dentro do império, os ucranianos desafiaram a supremacia da língua russa e uma interpretação russa da história que descrevia a Ucrânia como “Rússia do Sudoeste”, mera província sem identidade nacional alguma.

Os nacionalistas ameaçavam também dar mais poder aos camponeses numa ocasião em que eles já estavam conquistando influência econômica. Um campesinato ucraniano mais rico, mais alfabetizado e mais bem organizado poderia também demandar mais direitos políticos.

O idioma ucraniano foi o primeiro alvo. Durante a grande reforma educacional no Império Russo, em 1804, o czar Alexandre I permitiu que algumas línguas não russas fossem usadas em novas escolas estatais, mas não o ucraniano, no pretexto de que ele não era um “idioma”, e sim um “dialeto”.

Na verdade, os funcionários russos tinham perfeita consciência, como os soviéticos também viriam a ter, da justificativa política para o banimento – que perdurou até 1917 – e a ameaça que a língua ucraniana constituía para o governo central. O governador-geral de Kiev, Podólia e Volyn declarou em 1881 que o uso da língua ucraniana nas escolas e seu emprego em livros didáticos fundamentais poderia levá-la ao ensino de níveis superiores e, no fim, à legislação, aos tribunais e à administração pública, criando assim “complicações numerosas e alterações perigosas ao Estado russo unificado”.

As restrições ao uso do ucraniano limitaram o impacto do movimento nacional. Causaram também analfabetismo generalizado. Muitos camponeses, educados em um idioma que não conheciam, quase não progrediam. Um professor de Poltava dos primórdios do século 20 queixou-se que estudantes “se esqueciam rapidamente do que lhes era ensinado”, caso forçados a aprender em russo.

Outros reportaram que estudantes ucranianos nas escolas de língua russa eram “desmoralizados”, aborreciam-se com a escola e se tornavam “baderneiros”. A discriminação também levou à russificação: para quem vivesse na Ucrânia – judeus, germânicos, ucranianos e outras minorias nacionais –, o caminho para a escalada social só podia ser palmilhado pelos que falavam russo.

Até a Revolução de 1917, postos no governo, trabalhos profissionais e transações comerciais requeriam educação em russo, não em ucraniano. Na prática, isso significava que os ucranianos ambiciosos, no aspecto político-econômico, precisavam se comunicar em russo.

Para evitar que o movimento nacional ucraniano crescesse, o Estado russo também baniu organizações ucranianas “tanto da sociedade civil quanto do corpo político como garantia contra a instabilidade”.

Em 1876, o czar Alexandre II exarou decreto especificando como ilegais livros e periódicos em ucraniano e proibindo o uso do idioma em teatros e até em libretos musicais. Ele também desencorajou ou baniu as novas organizações de voluntários, mas beneficiou com subsídios os jornais e as organizações pró-russos.

A acentuada hostilidade contra a mídia e a sociedade civil ucranianas, mais tarde esposada pelo regime soviético – e, mais tarde ainda, também pelo regime pós-
-soviético – teve assim claríssima evidência na segunda metade do século 19.

A industrialização, da mesma forma, aprofundou a pressão pela russificação, uma vez que a construção das fábricas trouxe estrangeiros vindos de todas as partes do Império Russo para as cidades ucranianas. Por volta de 1917, apenas um quinto dos habitantes de Kiev falavam ucraniano.

A descoberta do carvão e o rápido desenvolvimento da indústria pesada tiveram particular impacto dramático em Donbas, região mineira e manufatureira na extremidade leste da Ucrânia.

Os industriais mais importantes na região eram na maior parte russos, com alguns notáveis empreendedores do exterior envolvidos: John Hughes, um galês, fundou a cidade hoje chamada Donetsk, originalmente conhecida como “Yuzivka” em sua homenagem.

O russo tornou-se a língua de trabalho nas fábricas de Donetsk. Conflitos espocaram com frequência entre operários russos e ucranianos, algumas vezes assumindo “as formas mais selvagens de brigas com armas brancas” e chegando mesmo a combates programados e com hora marcada.

Na fronteira imperial da Galícia, província mista ucraniano-polonesa do Império Austro-Húngaro, o movimento nacionalista lutou muito menos. O Estado austríaco concedeu aos ucranianos do império mais liberdade e autonomia do que a Rússia ou, mais tarde, a URSS.

Em 1868, os ucranianos patriotas de Lviv formaram a Prosvita, uma sociedade cultural
que, no fim, contava com dezenas de afiliados em todo o país. A partir de 1899, o Partido Nacional Democrático Ucraniano operava também livremente na Galícia, enviando representantes eleitos para o Parlamento de Viena.

Até hoje, o antigo quartel-general de uma sociedade ucraniana de autoajuda é um dos mais imponentes prédios do século 19 de Lviv. Peça de fusão arquitetônica espetacular, o prédio incorpora decorações folclóricas ucranianas em fachada no estilo Jugendstil, criando um híbrido perfeito de Viena e Galícia.

Os primeiros passos da independência

No entanto, mesmo dentro do Império Russo, os anos anteriores à Revolução de 1917 foram, em muitos aspectos, positivos para a Ucrânia. O campesinato participou com entusiasmo da modernização ocorrida no início do século 20 na Rússia Imperial.

Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, seus membros adquiriam rapidamente conscientização política e se tornavam céticos a respeito do Estado imperial. Uma onda de revoltas camponesas ricocheteou tanto na Rússia quanto na Ucrânia em 1902; camponeses desempenharam papel crucial também no levante de 1905.

As sublevações deram início a uma reação em cadeia de inquietações, desestabilizaram o czar Nicolau II e resultaram na introdução de alguns direitos políticos e civis na Ucrânia, inclusive o direito de usar o idioma ucraniano em público.

Quando os dois impérios – o russo e o austro-húngaro – entraram em imprevisto colapso, em 1917 e 1918, muitos ucranianos julgaram que, por fim, estariam capacitados a estabelecer um Estado. Essa esperança se desvaneceu de súbito no território que fora governado pelos Habsburgos.

Depois de curto, porém sangrento conflito militar polaco-ucraniano que custou a vida de 15 mil ucranianos e 10 mil poloneses, o território multiétnico da Ucrânia Ocidental, incluindo a Galícia e Lviv, sua cidade mais importante, foi anexado à Polônia moderna. E lá ficou de 1919 a 1939.

O rescaldo da Revolução de 1917 em São Petersburgo foi mais complicado. A dissolução do Império Russo colocou o poder, por breve período, nas mãos do movimento nacional ucraniano em Kiev – em um momento, entretanto, em que nem os líderes civis nem os militares do país estavam prontos para assumir total responsabilidade por ele.

Quando os políticos se reuniram em Versalhes, em 1919, para traçar as fronteiras dos novos Estados – entre eles as modernas Polônia, Áustria, Tchecoslováquia e Iugoslávia –, a Ucrânia não fazia parte do pacote.

Mesmo assim, a ocasião não foi totalmente perdida. Como Richard Pipes escreveu, a Declaração de Independência ucraniana, em 26 de janeiro de 1918, “assinalou não o resultado do processo criador de nação na Ucrânia, mas, ao contrário, seu sério começo”.

Os poucos e tumultuados meses de independência e o vigoroso debate então deflagrado sobre a identidade nacional mudariam o país para sempre.


*Anne Applebaum é escritora e jornalista, autora de a fome vermelha - A Guerra de Stalin na Ucrânia (Record). O texto acima é um trecho da obra reproduzido com autorização.