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Matérias / Crimes

Ronald Biggs e o assalto ao trem pagador

Neste dia, em 1963, uma espetacular ação sem vítimas fatais terminou com uma perseguição internacional — e o criminoso Ronald Biggs se refugiando no Brasil

Celso Miranda Publicado em 08/08/2019, às 07h00

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Reprodução / Ronald Biggs
Reprodução / Ronald Biggs

Pouco antes das 19h de 7 de agosto de 1963, uma composição parte de Glasgow, na Escócia, com destino a Euston, no Reino Unido. O TPO (Travelling Post Office) não era um trem comum — não carregava passageiros. Em seus vagões, estavam distribuídos 70 funcionários dos correios e somente um guarda. Um maquinista e o foguista seguiam na locomotiva.

O vagão imediatamente atrás da locomotiva, o chamado HVP (High Value Package), carregava os pacotes de alto valor enviados semanalmente aos bancos de todo o país. Eles continham dinheiro, a maior parte notas usadas de pequeno valor, para ser distribuído e cobrir as reservas de cada agência.

Naquela noite, graças a um feriado bancário na Escócia, a carga do vagão estava ainda mais valiosa. E não eram só os homens responsáveis pelos malotes que sabiam disso.

A 45 quilômetros de um dos pontos onde o trem passaria mais tarde, um grupo aguarda ansioso por ação. Chefiando o bando estava Bruce Reynolds, um conhecido ladrão de joias londrino que gostava de boa vida e dirigia um Aston Martin, carro eternizado por James Bond nos cinemas.

Bruce tornou-se um ladrão de lojas ainda adolescente. Aos 16 anos já estava em um reformatório e, aos 21, na temida prisão de Wandsworth, conhecida como fábrica do ódio. Bruce dedicou dez anos a realizar roubos lucrativos, incluindo a folha de pagamento de um aeroporto apenas um ano antes. Para aquela noite, na região rural a 200 quilômetros de Londres, ele planejou o maior de todos.

Planejamento de meses

O bando reunido por Bruce era formado por alguns conhecidos criminosos de Londres, como Charlie Wilson, Ronnie Biggs (nome de guerra de Ronald Arthur Biggs) e Buster Edwards.

Na turma, a participação surpreendente de Roy James, um jovem que, embora nem de todo inocente (já havia sido preso nos anos 1950), agora era um bem-sucedido piloto de corridas, tendo vencido nove das últimas 16 provas da Fórmula Junior Inglesa. Três dias antes, esse apaixonado por velocidade batera o recorde de melhor volta em Aintre.

Pouco depois da meia-noite, o trem chega à estação de Crewe, na Inglaterra, para a troca de operadores. Jack Mills, o maquinista, assume o comando da locomotiva a diesel D326 ao lado do foguista David Whitby.

Logo atrás, no HVP, os malotes seguem acompanhados por Frank Dewhurst, supervisor que trabalhava nos correios havia 12 anos, e outro funcionário da companhia, Les Pen. À meia-noite e meia, Jack Mills coloca o trem em movimento rumo à estação de Euston, em Londres, passando pela região rural de Buckinghamshire.

Enquanto isso, a quadrilha de Reynolds se preparava para interceptar o trem. O grupo verificou os mapas, os relógios e todos os pontos do plano. Sem nenhum alarde, o bando deixou a fazenda Leatherslade, uma casa segura a menos de 50 quilômetros do local do crime, onde estavam escondidos para planejar a ação. Depois, percorreu a pequena e malcuidada estrada de terra até a via principal.

A quadrilha vestia uniforme do Exército e dirigia dois Land Rovers militares usados — como havia uma base não muito distante, eles esperavam não levantar suspeitas caso sejam vistos.

Bruce Reynolds comandou a tropa com seu traje de major. O caminho é silencioso. Todo o trabalho, iniciado cinco meses antes, com o levantamento das rotas dos trens, número de funcionários a bordo, reuniões intermináveis no apartamento de Buster Edwards e aprendizado sobre sinalização e funcionamento dos trens, estava prestes a levar o grupo a embolsar uma bolada.

Bruce Reynolds / Crédito: Domínio Público

Eram 2 horas da madrugada quando Reynolds e seu bando chegam à ponte Bridego, onde pretendem roubar o trem. O plano era tomar a composição a 800 metros dali alterando dois sinalizadores da encruzilhada para obrigar a locomotiva a parar.

Os carros foram estacionados sob a ponte enquanto Reynolds e Roy James cortaram os cabos telefônicos. Já eram quase 3 horas e o trem passaria por ali em minutos. Parte do grupo tomou a encruzilhada para alterar os sinais. O primeiro, composto de duas luzes, em geral fica verde para permitir a passagem do trem.

A quadrilha alterou o sinal para amarelo, que, além de ser um alerta para que a locomotiva diminua a velocidade, também indica uma provável luz vermelha no segundo sinal. No sinal seguinte, o sinal verde foi coberto com uma luva e o vermelho foi aceso, ligado a quatro baterias de 6 volts. O cenário estava pronto para reter o trem.

Ação de minutos

Às 3h15, o trem pagador se aproximou. Jack Mills avistou a sinalização e freou a composição. A locomotiva parou a 6 metros do sinal vermelho. Como de praxe, o foguista desceu do trem para telefonar ao responsável pela sinalização e verificar o problema. Descobriu que os cabos estavam cortados. Sozinho, no escuro, David Whitby foi facilmente rendido por um dos homens do bando enquanto outros três já estavam sob os vagões, desacoplando a locomotiva e o HVP da composição. Na pressa, deixaram os cabos de força conectados.

O grupo levou David Whitby de volta à locomotiva, onde encontrou Jack Mills. O maquinista foi agredido com golpes de barras de ferro e jogado no chão, sangrando muito. A missão agora era mover a locomotiva e o HVP até a ponte Bridego, onde o resto do grupo esperava.

Mas, embora com todo o treinamento que puderam receber, os ladrões não souberam operar o trem e recorreram a Jack Mills. Debilitado, o maquinista colocou o trem em movimento. Nesse momento, no vagão dos pacotes valiosos, os dois funcionários dos correios perceberam que algo estava errado, pois ouviram o tubo de vapor se romper. Mesmo com a avaria, Jack Mills conseguiu levar o trem até a ponte. Os bandidos algemaram o maquinista e seu assistente na casa das máquinas e partiram para tomar o vagão do dinheiro.

Liderados por Charlie Wilson, outros sete membros da quadrilha invadiram o vagão dos malotes, atacando os funcionários Frank Dewhurst e Les Pen com vários golpes com o cabo de uma machadinha, usada ainda para quebrar os armários onde estavam os pacotes.

Uma corrente humana iniciou a retirada dos pacotes de dinheiro do vagão, levando-os até os carros embaixo da ponte. No tempo controlado por Reynolds, 20 minutos, conseguiram descarregar 120 dos 128 malotes que o vagão levava. Não era prudente continuar a operação, pois seria dado o alarme se o trem não chegasse à estação de Midlands. Além disso, os funcionários dos correios nos vagões que foram deixados para trás poderiam começar a desconfiar de algo.

A quadrilha fugiu carregando os 120 malotes, cada um com 636 pacotes contendo o dinheiro que seria entregue aos bancos. Apesar da sugestão de alguns deles de fugir direto para Londres, Reynolds preferiu voltar ao esconderijo a arriscar serem pegos no longo caminho para a cidade.

No rádio do carro, ouviram a notícia sobre o roubo. “Vocês não vão acreditar”, dizia o locutor. “Roubaram o trem!” Às 4h30, chegaram à fazenda Leatherslade. Os malotes foram empilhados nos fundos da casa e a comemoração teve início. Os bandidos celebraram também o aniversário de 34 anos de Biggs, naquele 8 de agosto, com muita cerveja e charutos. Alguns começam a jogar Banco Imobiliário com as notas roubadas, contabilizando o total da ação: 2.631.784 libras.

No hospital em Aylesbury, Jack Mills e David Whitby aguardavam que um policial retirasse as algemas deixadas pelos bandidos. O maquinista já havia recebido cuidados médicos. Foram 14 pontos em cinco cortes na cabeça. Um deles, com 1 centímetro de profundidade, deixou Mills em choque.

Pela manhã, a quadrilha se preparou para deixar a casa. Todos trabalharam em uma limpeza, para apagar os vestígios de digitais. Como precaução extra, Reynolds pagou 28 mil libras para que alguém destruísse qualquer pista deixada para trás depois que o grupo saísse do local. No fim daquela manhã, os carros deixaram a fazenda levando 15 novos homens ricos para Londres.

Caçada sem pistas

Para a polícia de Londres começava uma caçada implacável, mas sem nenhuma pista, aos responsáveis pelo roubo. “Foi obviamente uma operação brilhantemente planejada”, disse o ex-detetive superintendente Jack Slipper, encarregado das investigações. As seguradoras, os correios e os bancos ofereceram recompensas de até 260 mil libras para informações que levassem aos bandidos. O caso chega ao Parlamento inglês, onde um projeto propondo aumentar o efetivo de segurança a bordo dos trens já circulava fazia dois anos. 

Investigadores na cena do crime / Crédito: Domínio Público

Enquanto Londres fervilhava com as discussões pós-crime, a polícia local recebia a indicação de um morador da vizinhança de Leatherslade, desconfiado com o repentino cessar da movimentação no local.

Era 13 de agosto quando o ex-policial John Wooley seguiu para verificar a denúncia. Na casa vazia, com a porta aberta, ele encontrou muito mais que evidências. O encarregado em destruir as pistas aparentemente não fizera seu trabalho direito. Uma fogueira destruíra muita coisa, mas deixara vestígios suficientes para que a polícia ligasse as pistas ao roubo do trem e fosse atrás dos criminosos.

Foram encontrados os malotes do dinheiro e algumas notas do roubo na caixa de um inocente jogo de tabuleiro. As impressões digitais nas peças do jogo ajudaram a polícia a identificar os primeiros membros do bando. Havia digitais ainda em pratos e outros utensílios.

As marcas dos dedos de Roy James, que dez dias após o crime venceu duas corridas, estavam num exemplar da revista Movie Screen. Os policiais encontraram ainda etiquetas postais, pacotes registrados e as machadinhas usadas para golpear os funcionários dos correios.

Os primeiros a serem presos foram Roger Cordrey e Willian Boal, que viviam em um apartamento simples sobre uma loja de flores em Londres. A polícia chegou até eles quando pagaram três meses adiantados do aluguel de uma garagem com dinheiro vivo, tudo em notas miúdas. No dia 22 de agosto, a polícia prendeu Charles Wilson e, em dezembro, Roy James. Em abril de 1964, os policiais conseguiram pegar 11 acusados, mas recuperaram só uma pequena parte do dinheiro.

Levados a julgamento, sete deles — Ronald Biggs, Charles Wilson, Douglas Goody, Thomas Wisbey, Robert Welch, James Hussey e Roy James — foram condenados a 30 anos de prisão cada um. Outros quatro – Roger Coldrey, Willian Boal, Jimmy White e Buster Edwards — a penas entre 20 e 25 anos. Um 12º nome, o procurador John Weather, foi condenado a três anos de prisão por ter conseguido a fazenda para o grupo.

Três dos suspeitos saindo do tribunal após o julgamento / Crédito: Domínio Público

Com 12 homens condenados pelo assalto, a Justiça havia atendido rapidamente ao clamor da sociedade. Mas a polícia não estava satisfeita. Embora não fosse possível precisar o número de participantes da quadrilha, uma coisa era certa: faltava prender o líder, a mente por trás do roubo.

Vivendo sob identidade falsa nos arredores de Londres e até no exterior, Bruce Reynolds ficou foragido por cinco anos antes de ser preso — em maio de 1968 — e condenado a 25 anos de prisão, foi liberado em 1978. Reynolds faleceu em 28 de fevereiro de 2013, aos 81 anos.

E nada além de minguadas 336.518 libras foi recuperado do maior roubo da História da Inglaterra até então. Um crime que durou quase o mesmo tempo que você levou para ler esta matéria.

A vida mansa de Ronald Biggs

Ronald Biggs exibindo cartaz de 'procurado' com a sua foto, durante o lançamento da sua biografia no Rio de Janeiro / Crédito: Reprodução

Quinze meses após ser preso, Ronald Biggs escalou o muro da Wandsworth Prison e escapou num caminhão de mudança. Fez uma cirurgia plástica em Paris e viveu na Espanha e Austrália antes de chegar ao Brasil, em 1970. Foi considerado então o maior fugitivo da Justiça britânica.

Localizado no Rio de Janeiro, em 1974, não pôde ser extraditado, pois os ingleses não aceitaram a reciprocidade, exigida pelo governo brasileiro nesses casos. Logo depois nasceu o filho brasileiro de Biggs, e a extradição tornou-se impossível. Sem poder trabalhar, Biggs vivia de sua celebridade.

Cobrava por entrevistas, autógrafos e presença em festas. Vendia camisetas com frases alusivas ao grande roubo. Por 60 dólares, turistas almoçavam com o anti-herói. Um derrame em 2000 deixou sua saúde debilitada. Em 2001, anunciou que voltaria à Inglaterra. Biggs pisou novamente em solo britânico e foi preso.

O jornal The Sun custeou a viagem em jato particular e teria pagado 20 mil libras a Michael Biggs, filho do fugitivo — que é o Mike do antigo Turma do Balão Mágico, programa infantil da Rede Globo nos anos 1980. Advogados solicitaram a soltura de Ronald Biggs, usando como desculpa sua avançada idade, mas ele veio falecer em 18 de dezembro de 2013.


Saiba mais

The Train Robbers, Piers Paul Read, 1978
Autobiography of a Thief, Bruce Reynolds, Johnson Reprint, 1979