Busca
Facebook Aventuras na HistóriaTwitter Aventuras na HistóriaInstagram Aventuras na HistóriaYoutube Aventuras na HistóriaTiktok Aventuras na HistóriaSpotify Aventuras na História

Se você hoje sabe o nome de Tutancâmon, agradeça aos coptas

A Pedra de Rosetta só foi parte da solução - a outra é que havia gente falando egípcio hoje em dia

Eduardo Szklarz Publicado em 26/05/2017, às 15h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h35

WhatsAppFacebookTwitterFlipboardGmail
O papa copta Shenouda III (1923-2012) cercado por seus bispos - Coptic.net
O papa copta Shenouda III (1923-2012) cercado por seus bispos - Coptic.net

Constituindo cerca de 10% da população egípcia, com números estimados em até 20 milhões, os coptas são o maior grupo cristão do Oriente Médio. E o último remanescente da língua egípcia - quando a região foi conquistada pelos árabes, no século 7, a maioria da população (até então cristã) se converteu e adotou a língua dos conquistadores e sua identidade étnica. Os cristãos, porém, continuaram a falar o copta, descendente direto do egípcio da era dos faraós. Entre outras razões, porque seus textos e liturgia já estavam nessa língua. O copta foi perseguido duramente a partir do século 12, e acabou extinto como língua falada no 17. Mas sobrevive como a linguagem litúrgica dos cristãos coptas, com tentativas de ressuscitá-lo na comunidade. 

Algo, porém, que os coptas não saibam fazer era ler hieróglifos. Seu alfabeto mescla caracteres gregos ao demótico, uma escrita egípcia extinta no século 5, bem mais simples que hieróglifos. Assim, mesmo com a língua egípcia ainda sendo falada, por milênios o que estava escrito nas tumbas dos faraós era um dos maiores mistérios da arqueologia. Após a morte dos últimos conhecedor de demótico e hieróglifos, antes do fim do Império Romano, historiadores gastaram suas vidas tentando decifrá-los, sem sucesso. Inúmeras perguntas sobre sua civilização permaneciam sem resposta. Quais eram os faraós que ergueram aqueles templos gigantescos? Para que construíam suas tumbas? Por que preservavam os mortos? 

Topando com a pedra

Até a pedra: um bloco de quase 760 quilos na rota dos soldados franceses que ocupavam o Egito em julho de 1799, numa expedição liderada pelo temido general Napoleão Bonaparte. O tablete cinzento de 114 x 72 cm apareceu quando eles cavavam trincheiras a leste de Alexandria, perto da cidade de El-Rashid, chamada de Rosetta pelos ocidentais. Nele estavam gravadas três escritas diferentes. Uma era o hieróglifo. Outra era o demótico. E a terceira, a única que qualquer um conseguia ler, o grego. 

O francês saiu do Egito em 1801, encerrando três anos de expedição. Com a vitória na guerra, os ingleses se apoderaram de várias relíquias. Entre elas a Pedra de Rosetta, que foi parar no Museu Britânico. 

Era o início de outro combate entre a França e a Inglaterra, agora para decifrar as inscrições enigmáticas no artefato. O duelo reuniu duas mentes brilhantes, obcecadas por entender os hieróglifos: o cientista inglês Thomas Young e o jovem linguista francês Jean-François Champollion. Era uma briga desigual. Young era um catedrático nobre e famoso, que tinha o apoio da coroa e trabalhava diretamente sobre a pedra. Já Champollion era um garoto-prodígio humilde, cujos estudos eram bancados a duras penas pelo irmão mais velho, e que precisou descolar cópias dos textos da relíquia sem ter certeza se eram bem feitas. A partir do grego, os dois gênios souberam que a Rosetta continha um decreto emitido por um conselho de sacerdotes egípcios em 196 a.C. "Assumindo que os textos das outras duas escritas eram idênticos, então a pedra poderia ser usada para decifrar os hieróglifos", diz o cientista Simon Singh em artigo para a BBC.

Egípcio vivo

Só que havia um problema. "O grego revelava o que os hieróglifos significavam, mas ninguém havia falado a antiga língua egípcia por vários séculos. Assim, era impossível determinar o som das palavras egípcias", afirma Singh. "A menos que os pesquisadores soubessem pronunciá-las, eles não poderiam deduzir a fonética dos hieróglifos." E tampouco entender a escrita de forma a traduzir qualquer inscrição. O demótico presente na pedra, fácil de decifrar, deu elementos para a comparação, mas não a engrenagem que faltava. 


A última dinastia 
Os ptolomaicos e a decadência da civilização egípcia 




Cleópatra: grega da gema / Wikimedia Commons

A importância da Pedra de Rosetta vai além da decifração dos hieróglifos. Ela registra um momento fundamental da história egípcia: a dinastia ptolomaica. Sabe a Cleópatra dos filmes e da literatura? Ela foi a sétima do reinado ptolomaico (305 a 30 a.C.). "Existiram sete Cleópatras e 15 Ptolomeus", diz o historiador Júlio Gralha. "O texto da Rosetta é a transcrição de um decreto editado pelo conselho de sacerdotes, reunido em 196 a.C. em Mênfis, capital do norte do Egito. O decreto foi feito durante o reinado de Ptolomeu V Epiphanes (210-180 a.C.)."

Naquela época, a glória dos primeiros faraós era coisa do passado. O país fora conquistado em 332 a.C. pelo macedônio Alexandre, o Grande, que se autoproclamou soberano. Com a morte dele, a administração do Egito coube a um de seus generais, Ptolomeu, que instituiu uma nova linha de sucessão. "Como a dinastia dos ptolomeus era de cultura grega (helenizada), ela precisaria adotar fortemente a cultura faraônica se quisesse reinar", afirma o historiador. Daí o interesse pelos hieróglifos.


Pesquisadores já haviam tentado quebrar o código, mas derraparam numa hipótese falsa: a de que os hieróglifos eram desenhos impronunciáveis. Achavam que se tratava de uma grafia simbólica, não fonética, e que, portanto não podia ser lida como este texto. 

Young sabia dos avanços de Champollion, e vice-versa. Nessa corrida, eles usaram outros documentos além do bloco de basalto, como as inscrições do templo de Abu Simbel e do zodíaco do Templo de Dendera. Os dois gênios, porém, seguiram técnicas distintas. Young usou um método matemático: se havia 30 estruturas iguais no texto grego, ele checava se essas 30 estruturas se repetiam nos hieróglifos - e assim foi formando um alfabeto rudimentar, por aproximação. Até publicou seus primeiros achados, mas não foi muito longe. "Parece que ele não conseguiu superar a ideia reinante de que os hieróglifos eram só desenho. Não estava preparado para quebrar esse paradigma", diz Singh.

Já Champollion conhecia diversas línguas, e isso fez toda a diferença. Ele percebeu que havia uma escrita por trás daqueles desenhos. Começou associando nomes gregos como "Ptolomeu" aos hieróglifos correspondentes. E, com a ajuda do irmão, foi a Paris para estudar e tentar provar sua teoria. Logo viu que seria difícil. Até seu professor defendia a tese dos desenhos mudos. Champollion recusava a ideia, mas como seria possível descobrir o som daqueles símbolos estranhos?

A solução do jovem foi aplicar o copta, o idioma dos primeiros cristãos do Egito que ainda era falado em algumas igrejas de Paris. Ele percebeu que a sonoridade do copta se relacionava com a da antiga língua. Se pudesse coincidir os sons do copta com os dos hieróglifos, poderia "fazer falar" os faraós. Assim matou a charada. "Enquanto o idioma grego ajudou a entender o hieróglifo, o copta ajudou a sonorizá-lo", diz o historiador Júlio Gralha, especialista em Egito antigo, professor da UERJ. Ao ver um círculo com um ponto no meio, por exemplo, Champollion conseguia associá-lo ao deus egípcio Sol. Mas não sabia o nome que ele tinha, pois faltava sonorizá-lo. Foi aí que o copta entrou na jogada: ao unir seus sons com as imagens dos hieróglifos, Champollion conseguiu ler "Ramsés" e outras palavras."Os pesquisadores da época sabiam que havia um faraó chamado Ramsés, mas não sabiam como escrever seu nome. E Champollion triunfou. Young não teve essa perspicácia", afirma o egiptólogo. 


Quebrando os códigos 

No século 19, os intelectuais pensavam que os hieróglifos eram uma representação muda de ideias. O francês Jean-François Champollion conseguiu provar com a ajuda do copta que eles eram uma língua falada

➽ Através do grego gravado na Pedra de Rosetta, ele reconheceu o que estava escrito nos hieróglifos. Assim, associou palavras como "Ptolomeus" aos signos correspondentes. Sabia, então, qual deles representava a letra S. Mas não imaginava como pronunciá-los. 

➽ Champollion se concentrou no cartucho ao lado (encontrado em Abu Simbel) e identificou dois S. Aí recorreu ao copta, idioma antigo cuja sonoridade é próxima à do hieróglifo, e obteve alguns sons dos signos, já que o hieróglifo não tem todas as vogais, tal como outras línguas semíticas. 

➽ Em seguida, ele deduziu, a partir do formato do signo, que o primeiro hieróglifo era o Sol, e então presumiu que seu som correspondia ao da palavra copta para Sol: "Ra". Assim, obteve a sequência (Ra-?-s-s). 

Logo concluiu que se tratava do cartucho correspondente ao faraó Ramsés, que em copta significa "filho do Sol" (Ra = sol + Mes = nascido de). E assim ele quebrou o código da escrita egípcia.


➽ As investigações do francês incomodaram a Igreja. Temia-se que a compreensão dos hieróglifos ameaçasse a noção do Dilúvio Universal, que teria ocorrido em cerca de 2300 a.C. Se a escrita demonstrasse que os egípcios existiam antes do episódio e não foram afetados por ele, os bispos teriam um abacaxi para descascar.

Mas Champollion deu de ombros. Desde criança queria calcular a idade do mundo, e achava que os hieróglifos lhe dariam a resposta. Mais de duas décadas após a descoberta da Pedra de Rosetta, no outono de 1822, ele finalmente conseguiu decifrar a língua sagrada. Em 1828, realizou outro sonho: foi ao Egito. Só não teve tempo de somar a idade do mundo. Morreu em 1832, aos 41 anos, em Paris, vítima de um acidente vascular cerebral.

Saiba mais 
Miragem - Os Cientistas de Napoleão e suas Descobertas no Egito, Nina Burleigh, 2008
Historia del Mundo Antíguo, Susan Wise Bauer, 2007