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Matérias / Trégua de Natal

Rússia nega trégua de Natal à Ucrânia, fato já ocorrido na 1ª Guerra

Em 1914, soldados britânicos e alemães deixaram o conflito de lado durante as comemorações de fim de ano; relembre!

Gustavo Flores*; atualizado por Fabio Previdelli Publicado em 24/12/2021, às 00h00 - Atualizado em 14/12/2022, às 11h29

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Soldados de ambos os lados (os britânicos e os alemães) trocam uma conversa animada - The Illustrated London News via Wikimedia Commons
Soldados de ambos os lados (os britânicos e os alemães) trocam uma conversa animada - The Illustrated London News via Wikimedia Commons

Nesta quarta-feira, 14, Dmitry Peskov, porta-voz do presidente Vladimir Putin, afirmou que não existe a hipótese da Rússia conceder uma trégua de Natal ou Ano Novo para a Ucrânia — invadida desde o fim de fevereiro. 

De acordo com a agência ANSA, Peskov afirmou que o Kremlin não recebeu “nenhuma proposta” em relação a isso, além de dizer que “esse tópico não está na agenda”. A fala foi dita em resposta a questionamentos de jornalistas se o país aceitaria uma eventual trégua de fim de ano

Por fim, o representante do Kremlin ainda declarou que a Ucrânia precisa entender as “novas realidades” do conflito, se referindo às quatro regiões anexadas ilegalmente pela Rússia. "Sem levar isso em conta, qualquer progresso é impossível", concluiu ele. 

Apesar de parecer um evento utópico, a trégua de Natal já aconteceu durante a Primeira Guerra Mundial, em 1914, quando soldados britânicos e alemães trocaram saudações festivas e canções entre suas trincheiras. Relembre o episódio!

Trégua de Natal: Quando a humanidade falou mais alto que a Guerra

“A noite podia ser uma foto de cartão postal, a lua havia aparecido depois de dias de chuva e toda a paisagem era branca e fria. Por volta das 8 da noite, eu imagino, vimos luzes de velas e ouvimos eles cantar 'Noite Feliz'. Eu nunca esquecerei disso, foi um dos momentos mais marcantes da minha vida. Eu lembro de pensar: que bela canção!’’

Foi assim que, depois de 67 anos passados o soldado Albert Moren, se recordou da noite da véspera de Natal de 1914.

Soldados ingleses e seus inimigos alemães se encontravam a metros uns dos outros em trincheiras que cortavam campos outrora férteis, mas que agora estavam cheios de crateras causadas por tiros de artilharia e corpos de homens que jaziam por todos os lados.

Quem olhava para esses homens cansados, maltrapilhos e famintos não podia imaginar que apenas 4 meses antes, em Agosto de 1914, todos receberam a notícia da Guerra com entusiasmo.

Tropas britânicas e alemãs reunidas em terra de ninguém/ Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

A Guerra foi recebida com euforia em todas as grandes capitais, multidões comemoraram efusivamente nas ruas de Londres, Paris, Moscou, Berlim e Viena. Afinal, essa era a Guerra que acabaria com todas as guerras. Todos tinham uma certeza: essa seria a última cruzada que afirmaria de uma vez por todas a hegemonia de seus impérios.

Uma das poucas vozes da razão veio do Secretário de Assuntos Estrangeiros inglês Sir Edward Grey. Olhando para a multidão delirante da janela de seu escritório ele comenta a seu auxiliar:

As luzes estão se apagando por toda a Europa, não as veremos acesas novamente em nosso tempo de vida.’’

Essas palavras se tornariam fatidicamente verdadeiras para a geração que ficaria conhecida como ‘’a geração perdida’’.

Noções de glória e vitórias rápidas em campo de batalha caíram por terra logo nos primeiros choques da Guerra. A tecnologia tão exaltada, que prometia levar aquele mundo para um caminho de avanços, agora havia sido convertida para morte e destruição. O impacto foi inigualável, nunca na história se viu tamanha destruição.

Os números contam uma história assustadora: 54 mil ingleses, 80 mil franceses, 134 mil alemães haviam sido mortos e feridos em poucos meses de conflito.

O inverno europeu chegou com uma fúria terrível e todas as operações de guerra tiveram que ser abandonadas, enfrentando chuvas, alagamentos, nevascas, hipotermia, doenças por falta de higiene e exposição às condições do tempo. Incapazes de sequer acenderem uma fogueira para se aquecerem e com o perigo constante de serem alvejados, cada dia era uma luta desesperada pela sobrevivência.

O Soldado Henry Williamson recordou anos mais tarde: “Por semanas vivemos em trincheiras alagadas. Os alemães estavam à 80 metros e tinham nossa posição em suas miras, perdemos muitos homens vítimas de atiradores de elite (...) as chuvas caiam e ficamos com água até a cintura (...) trabalhávamos a noite toda, cavando e tentando reforçar as posições que desmoronavam o tempo todo. Ao amanhecer nos jogávamos na água de novo e tentávamos aguentar outro dia.”

Com uma forte tradição de Natal em suas nações, o que veio a ocorrer no dia 24 e 25 de dezembro de 1914 ficaria marcado na história. Durante a tarde da véspera de Natal, os soldados começaram a receber uma enxurrada de correspondências de casa, cartas, presentes e lembranças. Ao cair da noite, o que pareciam ser cenas saídas de um filme começaram a acontecer, o soldado Inglês William Quinton escreveria mais tarde:

‘’Algo na trincheira dos alemães nos fez esfregar os olhos e olhar novamente. Aqui e ali aparecendo acima do parapeito podíamos ver pequenas luzes coloridas. O que era isso? Era algum sinal de estava se organizando para um ataque? Ou seria uma isca para nos expor e para que abrissem fogo sobre nós? Nós estávamos desconfiados quando uma coisa ainda mais estranha aconteceu: Os alemães estavam cantando! Não muito alto a princípio, mas não havia dúvidas. Começamos a ficar realmente interessados."

Tropas britânicas e alemãs enterrando os corpos dos mortos no ataque de 18 de dezembro/ Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

"Do nada, através da terra de ninguém, uma voz forte ressoou cantando as primeiras linhas de 'Annie Laurie' em perfeito inglês e nós ficamos encantados. Para nós, era como se a guerra tivesse parado: Parado para ouvir essa música vinda do inimigo. Conforme as últimas notas diminuíram uma explosão espontânea de aplausos veio de nossas trincheiras’’, completou.

De forma espontânea, exaustos pela morte e destruição que os cercavam a guerra seria deixada de lado por um dia. O Sargento A. Lovell ouviu um dos vigias dizer: “Eles estão com árvores de Natal no parapeito de suas trincheiras!”.

“Subindo o parapeito, eu tive uma visão que eu me lembrarei até o dia em que morrer. Ao longo de toda a linha deles, lanternas de papel e iluminações de todos os tipos estavam penduradas, muitas delas pareciam que estavam penduradas em árvores de Natal!", diz o oficial.

O que começou com luzes e canções na véspera de Natal evoluiria para algo ainda mais incrível no dia seguinte. O soldado John Dymond relata: "Nós passamos o dia de Natal nas trincheiras. Fizemos um acordo com os Alemães de não atirarmos durante o dia, e foi uma visão que você jamais acreditaria a não ser que visse por si mesmo. Primeiro, um alemão saiu da sua trincheira: 'Um feliz Natal para vocês ingleses', e então um dos nossos homens foi de encontro a ele, eles apertaram as mãos um do outro. É claro que quando nossos rapazes viram isso todos saíram, até que havia cinquenta de cada lado trocando itens uns com os outros. Nós perguntamos o que eles achavam da guerra e eles disseram que não aguentavam mais e ficariam felizes assim que terminasse. Eles disseram: 'Não é nossa culpa que estamos lutando; nós somos iguais a vocês e temos que fazer conforme somos ordenados’".

O soldado Henry Williamson recorda sobre uma conversa com um soldado: "(...) Ah sim, Deus está do nosso lado". E o soldado disse: “Mas ele está do nosso!”.

E isso foi um tremendo choque para mim. Eu comecei a pensar que esses homens eram iguais a nós e pensavam e sentiam exatamente da mesma forma. Por fim ele me disse: 'Meu amigo inglês, não vamos brigar no dia de Natal'.”

Leslie Walkington relata: "A manhã de Natal nasceu com uma forte névoa, mas quando a névoa se foi, começamos a pular para fora e acenar, rapidamente pulando para dentro novamente, no caso deles atirarem em nós. Mas ninguém atirou, então mais de nós começaram a sair e por fim começaram a andar em frente, além do arame farpado".

"Alguns deles fizeram o mesmo, e se encontraram com os nossos, no meio do campo, apertaram as mãos e olharam para nós e acenaram. Todos nós, então, saímos como uma multidão em uma partida de futebol. Fomos tropeçando pelos buracos feitos pelos bombardeios, mas mesmo assim, chegamos ao meio e começamos a nos cumprimentar, trocar coisas como cigarros, chocolates e pequenos objetos. Tudo foi muito amistoso. Ficamos todos juntos durante o dia inteiro", prossegue.

O Capitão Edward Hulse escreveria à sua mãe que “os homens misturados terminaram juntos a canção 'Auld Lang Syne', a qual Ingleses, Escoceses e Prussianos cantaram em um só coro. Foi absolutamente incrível, e se eu tivesse visto em um filme cinematográfico eu teria jurado que era falso!".

Ficou evidente que para os homens incumbidos de lutar aquilo tudo não fazia sentido e já tinha ido longe demais. Albert Moren comentou: "Se a trégua tivesse continuado, não há como saber o que haveria acontecido. Poderia ter sido o fim da guerra, afinal eles não queriam lutar e nós não queríamos lutar."

Uma cruz, deixada em Saint-Yves em memória dos combatentes/ Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

Generais tomaram duras medidas contra a Trégua de Natal e ordenaram que barragens de artilharias fossem disparadas para acabar com qualquer armistício. Oficiais foram ameaçados de sofrerem julgamento por corte marcial se algo semelhante se repetisse.

O oficial alemão Otto Hahn relata: ”Eu, pelo menos, me sinto profundamente feliz sobre esse dia de paz. Por fora, deixo claro para os homens que isso, mesmo que no Natal, é perigoso. Mas por dentro, eu acho que é bonito. Então sim, ainda bem que eles estão sendo substituídos. Seria difícil atirar e matar alguém com quem estivemos trocando cigarros e comida momentos antes!”

A Guerra só havia começado e mais três anos se passariam e milhões mais morreriam. Mas o legado humano que a trégua deixou é tocante, os homens que por ela passaram jamais a esqueceram.

Homens que estavam lá unicamente para matarem uns aos outros, subitamente estavam dividindo o pouco que tinham, rindo, cantando e mostrando que não importam nossas diferenças a paz pode ser alcançada se dispostos a isso estivermos.


*Gustavo Flores, professor de inglês, historiador entusiasta por mais de 10 anos e diretor do documentário 'Ypres e a Trégua de Natal 1914'; assista abaixo!