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Matérias / Brasil

Vale do Anhangabaú: O logradouro dos suicidas

A má fama do local vem do fato de que, no período da Belle Époque paulistana, em 1914, o célebre viaduto seria frequentado por pessoas que desejavam dar cabo da própria vida

M. R. Terci Publicado em 11/09/2019, às 07h00

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Reprodução
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Um mundo que se pode explicar, mesmo com más razões, é um mundo familiar. Para muitos, entretanto, a vida pode se tornar absurda, sem sentido, diante da perspectiva de que, não sendo culpados ou inocentes, todos estamos sentenciados à morte.

Nesse cenário, quando subitamente privado de seus sonhos, o homem passa a se sentir um estrangeiro, um peregrino numa terra de desilusões, buscando uma maneira de cruza-la em definitivo, um abreviamento da jornada, uma ponte para dela se retirar.

Ato nefasto ou expiação do fracasso, vontade legítima ou dever moral, quem será capaz de pesar as motivações do gênero humano? Albert Camus nomeou o suicídio como a grande questão moral de nosso tempo; afinal, julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia.

Venham comigo, pelos caminhos mais escuros da história, descobrir que cruzar a ponte, atravessar de uma margem para a outra, pode vir a ser o gesto definitivo.

Em novembro de 1862, a cidade de São Paulo recebeu o primeiro viaduto, uma ponte construída com metal alemão e assoalho de madeira que ficaria conhecida como Viaduto do Chá.

Ligava a Rua Direita ao Morro do Chá e para quem precisasse passar para o lado de lá do Rio Anhangabaú, era cobrado o pedágio de três vinténs. Abastadas pessoas atravessavam a ponte, dirigindo-se aos cinemas, lojas da região e, mais tarde, em 1911, ao Teatro Municipal.

A cidade crescia e, com o tempo, o viaduto já não suportava o peso do grande número de pessoas que por ali transitava e algumas pessoas que por ali atravessavam, sentiam dificuldade de lidar com o peso da vida. Nessa época, pouco depois do viaduto ser demolido, dando lugar a um novo projeto, o Viaduto do Chá passou a ser frequentado por suicidas.

Vale do Anhangabaú / Crédito: Governo de São Paulo

Mas o Viaduto do Chá não seria o único a suportar tal estigma. O Viaduto Santa Ifigênia viria a rivalizar a obra do Chá tanto em beleza arquitetônica como em episódios desairosos. Na concepção de municipalidade, o viaduto, cuja estrutura de ferro fora trazida da Bélgica montada, em 1913, se tratava apenas de uma das mais importantes obras viárias paulistanas, até hoje considerada de importância para o Centro da cidade, ligando o Largo São Bento ao Largo de Santa Ifigênia.

Alinhada a seu ponto central, onde nos tempos atuais observamos algumas paradas de ônibus, estava a Rua Anhangabaú, bastante estreita naquela época e margeada de residências e estabelecimentos comerciais. Mas, diferente dos outros sítios, entretanto, onde o gentio se encontra para os passeios matinais ou os namoricos furtivos à luz da lua, o Vale do Anhangabaú, a essa época, era evitado a todo custo eis que o povo que para lá se evadia tinha destino acertado com a morte.

A má fama do local vem do fato de que, no período da Belle Époque paulistana, em 1914, ano seguinte a sua inauguração, o célebre viaduto em estilo art nouveau, seria frequentado por pessoas que desejavam, intencionalmente, dar cabo da própria vida. Por conta disso, é tido como o primeiro point de suicídios da capital paulista, numa referência macabra aos desairosos episódios.

O primeiro desses relatos, noticiado pelo extinto jornal Correio Paulistano, em 6 de dezembro de 1914, mencionava um imigrante sírio de nome Dahir Assani que pulou do viaduto e caiu na Rua Anhangabaú e, socorrido, foi levado em estado gravíssimo para a Santa Casa de Misericórdia.

A partir de então, os suicídios se tornaram bastante comuns no viaduto, de modo que o município aventava, de modo a coibir o ato desses desesperados, legislar em proibição ao ato de tirar a própria vida. Vedar-se-ia, assim, a todo cidadão nascido na capital paulista o uso da via do suicídio, apenando multa ao desgraçado que ousasse contrariar a lei. Apesar do Santa Ifigênia prosperar em número de óbitos, os cofres públicos não viram réis se quer.

Os trágicos episódios, até a segunda metade do século 1910, inéditos neste logradouro, já ocorriam esporadicamente no Viaduto do Chá, mas a imensa quantidade e casos registrados no Santa Ifigênia, chamou a atenção das autoridades e também da imprensa que viria a noticia-los semanalmente até a segunda metade da década de 1920, quando rarearam e, então, desapareceram das páginas dos jornais.

Não se pode afirmar que os suicídios simplesmente cessaram neste período. O mais provável é que deixaram de ser noticiados pela imprensa, talvez numa tentativa de desestimular pessoas com tendências autodestrutivas a empreenderem o infausto ato.

Quase um século depois, temos consciência de que abafar ocorrências, ignorar estatísticas ou simplesmente conceber um problema de saúde pública como fraqueza é um erro gravíssimo e desumano.

De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, o Brasil tem um número equivalente a um suicídio a cada 45 minutos. No mundo, a cada três minutos, uma pessoa falha em tirar a própria vida e a cada 40 segundos alguém tem êxito. Campanhas e ações em diferentes esferas sociais, como o Setembro Amarelo, ressaltam a importância de se buscar promover a saúde mental e dar destaque a centros que oferecem ajuda e apoio a quem precisa.


M.R. Terci é escritor e roteirista; criador de “Imperiais de Gran Abuelo” (2018), romance finalista no Prêmio Cubo de Ouro, que tem como cenário a Guerra Paraguai, e “Bairro da Cripta” (2019), ambientado na Belle Époque brasileira, ambos publicados pela Editora Pandorga.