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Matérias / Drogas

Bad trip: Quando uma cidade inteira alucinou

Nunca foi esclarecido por que, mas, por duas semanas, habitantes de Pont-Saint-Esprit, na França, sofreram alucinações como se tivessem tomado LSD

Tiago Cordeiro Publicado em 05/07/2019, às 15h00

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Pixabay
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De quatro e latindo como um cachorro, um homem de meia idade saiu à rua, completamente nu. Era agosto de 1951. O vilarejo francês de Pont-Saint-Esprit, de vielas estreitas e construções medievais às margens do rio Ródano, no sul da França, só não se espantou mais com a cena porque o homem não foi o único. Também a céu aberto, uma mulher gritava desesperadamente que seu corpo estava pegando fogo, e o operário Gabriel Veladière dizia: "Não aguento mais as serpentes no meu estômago!"

Um garoto de 11 anos, Charles Granjohn, achou que sua mãe havia se transformado em um bicho e tentou estrangulá-la. O tabelião Pommier sentou-se na sala de estar com uma espingarda e avisava: "Se os monstros entrarem, eu atiro!" Um senhor começou a cantar uma ópera sozinho em seu quarto, dizendo que estava diante de uma orquestra com 30 músicos.

E houve mais. Uma criança dizia para a mãe que era perseguida por tigres e via sangue escorrendo pelas paredes. Uma dona de casa, desesperada, garantia que os filhos haviam sido esquartejados para virar linguiça — as crianças, vivas e ao seu redor, observavam a cena.

No hospital da vila, os pacientes se debatiam violentamente na cama, alegando que flores vermelhas cresciam em seu corpo ou que seu coração estava pendurado do lado de fora. Um jovem pulou do terceiro andar do hospital aos gritos: "Eu sou um avião!" Quebrou as duas pernas — mas continuou correndo. "Vi homens e mulheres saudáveis subitamente ficarem aterrorizados, escondendo-se pelos cantos para fugir de alucinações", disse à revista Time, duas semanas após os incidentes, o ex-prefeito Albert Hebrard.

O surto de convulsões e alucinações começara numa quarta-feira, dia 15. Atingiu o auge entre sábado e domingo e durou cerca de duas semanas. Acabou de uma hora para a outra, de forma tão surpreendente como quando começou, ainda que algumas pessoas tenham ficado internadas em hospitais psiquiátricos por até seis meses.

Dos 4,5 mil habitantes da cidade, de 300 a 500 sofreram formigamento nas extremidades, insônia severa, febres, dores de cabeça e problemas psicológicos. Os 46 em pior estado foram internados (muitos tiveram de ser contidos com camisa de força) e sete morreram, de convulsão, infarto ou suicídio. O que levou a pacata Pont-Saint-Esprit à loucura naqueles dias de verão? Há algumas hipóteses.

Mal dos ardentes

Suspeitos não faltam. Durante o episódio, moradores diziam que era tudo um complô de judeus, de ciganos ou da maçonaria. A polícia culpou, primeiro, o pão — daí o apelido do incidente, "pão maldito". Não era um problema inédito. Em outras ocasiões da história, o esporão, um fungo presente no trigo e no centeio, já havia provocado surtos de histeria.

O fungo libera substâncias tóxicas para o cérebro humano e provoca o chamado mal dos ardentes, ou fogo de santo Antônio, problema conhecido desde a Idade Média. Ainda que os três médicos de Pont-Saint-Esprit discutissem os sintomas sem chegar a uma conclusão, a polícia tinha tanta certeza de que estava diante de um caso de ergotismo, a doença provocada pelo esporão, que chegou a prender o mais respeitado padeiro da vila, Roch Briand. Ele seria solto dois meses depois por falta de provas.

Ao mexer com o pão, o inquérito esbarrou em um dos maiores patrimônios culinários franceses. Há registros de que soldados americanos, ao liberar as cidades da França ao fim da Segunda Guerra, ouviam dos nativos dois pedidos: liberdade e um bom pão branco. Em Pont-Saint-Esprit, a polícia fechou todas as oito padarias. Quando reabertas, elas ficaram às moscas.

"O racionamento de pão (por causa da guerra) só tinha acabado em 1949. O abastecimento ainda era problemático e, antes do incidente, o produto era muito valorizado", diz a historiadora Kyri Claflin, professora da Universidade de Boston. "O medo do ergotismo se espalhou pela França e reduziu o consumo de pão por vários meses. Foi um golpe duro na autoestima de um povo que tentava se reerguer depois da invasão alemã."

Um dos pães suspeitos / Crédito: Reprodução  

As autoridades locais enviaram todos os pães que apreenderam para laboratórios de Marselha. O problema é que o pão não tinha sinal de ergotismo. Depois, suspeitou-se que o trigo ruim utilizado vinha de um silo contaminado por DDT e mercúrio — substâncias que, em grandes concentrações, podem causar alucinações. A hipótese tampouco foi comprovada. As investigações se sucederam até 1978, quando o caso foi, enfim, dado por encerrado — e inconcluso.

Já os moradores faziam um grande esforço para esquecer o assunto. "A cidade inteira se sentia culpada e vexada", diz Jean-Pierre Colombet, que vivenciou o drama aos 10 anos e é obcecado pelos acontecimentos. O pacto de silêncio é tão eficaz que muitos jovens de Pont-Saint-Esprit só ficaram sabendo do episódio mais de 50 anos depois, em 2009, quando uma equipe francesa esteve lá para filmar um documentário sobre a história.

Na época, um dos poucos que resolveram se pronunciar foi o octogenário Léon Armunier. Procurado pelo jornal La Depeche, declarou: "Eu preferiria morrer a passar por aquilo de novo". O trauma superou o da destruição de boa parte da vila — ocupada pelos alemães, ela virou um campo de batalha no fim da Segunda Guerra.

Uma espantosa explicação surgiu anos depois. Envolve uma droga pouco conhecida na época, a CIA e um agente que falava demais. O responsável por essa versão foi o jornalista H. P. Albarelli Jr.

Teoria da conspiração

O clima era propício para experimentações secretas. Fazia apenas dois anos que o racionamento de comida do período de ocupação alemã havia acabado na França, mas já pairava no ar a tensão da Guerra Fria. Ao mesmo tempo, a CIA investigava os efeitos de um alucinógeno criado em laboratório pelo químico Albert Hoffman, o LSD.

Segundo os arquivos da agência americana, essa e outras drogas faziam parte de um programa para tentar obter o controle mental do inimigo — liderado, então, pelo cientista Frank Olson. O grupo testava alucinógenos em militares e civis (em geral, presidiários) que aceitavam ser cobaias. "Tenho certeza absoluta de que Olson liderou uma experiência, com o apoio do laboratório de Albert Hoffman, na Suíça, de uso de alucinógenos em uma população inteira", diz Albarelli. É fato que Hoffman esteve na cidadezinha em setembro, poucos dias depois do fim do surto.

Como a droga teria chegado à população? Ela poderia ter sido lançada pelo ar, com o uso de aerossol, sustenta Albarelli. Ou inserida na comida — e aí o pão voltaria a ser suspeito. Chocado com os resultados, Frank Olson teria feito comentários a respeito dos testes em Pont-Saint-Esprit.

Em 1953, Olson caiu do 13º andar de um hotel em Nova York e morreu. A versão oficial é que ele se suicidou, apesar de as janelas do quarto estarem fechadas quando a polícia chegou ao local. Em 1975, depois de aberto um inquérito para averiguar o caso, o presidente Gerald Ford ofereceu uma indenização de 750 mil dólares para a família do cientista.

"Não é de hoje que se considera que a morte de Olson foi assassinato, cometido a mando da CIA. O que não se entendia era o motivo. Agora fica claro que ele foi punido por vazar informações sobre a experiência malsucedida na França", diz o jornalista americano. E ele vai mais longe: "Ao longo da minha investigação, encontrei documentos do FBI que revelam que a divisão para a qual Olson trabalhava tinha o plano de realizar um experimento parecido no metrô de Nova York".

A tese tem problemas. O LSD dificilmente manteria a mesma estrutura química se misturado em comida e não provoca alguns dos sintomas observados em 1951, como náusea. Ao tratar da polêmica, o professor Steven Kaplan, professor da Universidade Cornell e uma das maiores autoridades no incidente, acusa o jornalista de levantar um grande volume de documentos que não comprova claramente a ligação da CIA com a vila no sul da França.

Albarelli sustenta que sua argumentação está o mais bem comprovada possível, considerando que 130 caixas de documentos sobre experiências da agência americana com drogas foram queimadas no começo da década de 1970. "Minhas evidências são mais concretas do que a hipótese de ergotismo. E Kaplan não tem nada melhor para apresentar." Na dúvida, de acordo com o New York Times, o governo francês fez uma consulta reservada ao Departamento de Estado americano a respeito da tese de Albarelli, apresentada na forma de um livro polêmico, lançado em outubro de 2009: A Terrible Mistake (Um Erro Terrível).

O que sobra, então? O enigma. E uma cidade inteira que ficou traumatizada pelos 15 dias em que parte considerável de seus vizinhos e familiares ficou temporariamente maluca.


Saiba mais 

A Terrible Mistake, H. P. Albarelli Jr, TrineDay, 2009.

Le Pain Maudit, Steven Kaplan, Fayard, 2008.