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Como três homens pilotando um Ford Modelo T queriam provar que era possível unir as Américas

Em 1928, um total de 3 homens saíram do Brasil rumo aos EUA. Inspirados pelo sonho do pan-americanismo, queriam provar que era possível unir as Américas - nem que fosse por meio de uma rodovia

Fernanda Castro Lima Publicado em 12/01/2021, às 14h14

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Viagem pretendia unir americas - Arquivo Aventuras
Viagem pretendia unir americas - Arquivo Aventuras

Três homens saíram do Brasil rumo aos EUA pilotando um Ford Modelo T - o popular Ford Bigode, o fusquinha de seu tempo - para cruzar 15 países e percorrer 28 mil km. O sonho é unir as três Américas ao rasgar uma estrada entre elas. A missão logo se mostraria muito mais dura, sofrida e perigosa do que eles podiam imaginar.

Ainda em território brasileiro - estavam perdidos havia dias no Pantanal matogrossense -, uma onça atacou 3 cães que caminhavam ao lado daquele estranho objeto sobre rodas. O mecânico Mario Fava, um dos integrantes do trio de aventureiros, atirou no animal. Mesmo ferido, o felino saltou sobre ele e o derrubou.

Seu amigo Francisco, com o auxílio de um dos 5 indígenas que os ajudavam a sair da mata, cravou um facão no crânio do bicho. Atordoada, a onça agora era presa fácil para os cães, que a mataram e comeram.

Essa foi só uma das muitas aventuras da comitiva. A ideia da rodovia surgiu em 1923, na 5ª Conferência Internacional dos Estados Americanos, no Chile. Passados 5 anos da reunião, porém, o projeto ainda era considerado impossível. O tenente do Exército Leônidas Borges de Oliveira decidiu provar que era viável, sim, a construção da Carretera Panamericana, como seria chamada a futura obra.

Para ajudá-lo, convidou o oficial da Aeronáutica Francisco Lopes da Cruz, amigo que sabia tudo de engenharia. Quando a dupla passou pela região de Pederneiras (SP), o mecânico Mário Fava, que sonhava conhecer os EUA, ofereceu-se para acompanhá-los. E foi. A façanha é contada pelo historiador Beto Braga no livro O Brasil Através das Três Américas.

Ele soube do episódio em 1998, quando morava na Bolívia e conheceu o filho do comandante Oliveira, que lhe mostrou anotações feitas pelo pai. “Foram 8 anos de pesquisas para o livro”, diz o autor. A expedição teve apoio financeiro do presidente Washington Luís, que doou o carro ao grupo.

Batizado de Brasil, o Ford T saiu do Rio de Janeiro no dia 16 de abril, aplaudido por uma multidão. Em São Paulo, os expedicionários ganharam um reforço: a caminhonete Modelo T. O automóvel recebeu o apelido de São Paulo.

O primeiro contratempo viria em Bauru (SP): dinheiro, fotos, documentos e a ata da viagem foram roubados. No Mato Grosso, deram de cara com a tal onça-pintada. Quase um ano depois da partida, alcançaram a fronteira paraguaia. Dos 2652 km percorridos até lá, mais da metade era de trilhas e picadas.

Hóspedes de honra O Paraguai vivia um momento de forte tensão com a Bolívia. Havia uma disputa pela região do Chaco que se estendia desde a época colonial. A fronteira entre os dois países passava por ali e não era bem definida. A descoberta de gás e petróleo na Bolívia resultaria, 4 anos depois, na guerra mais sangrenta da América no século 20, a Guerra do Chaco.

Mesmo no centro desse furacão, o presidente paraguaio, José Guggiari, encontrou-se com os brasileiros e os declarou hóspedes de honra. Recepções com pompa e circunstância, aliás, se repetiram em muitos lugares. Eram acolhidos com festa por autoridades e moradores. Muitos ajudavam na tarefa de abrir caminhos - alguns por vontade própria e outros recrutados pelos exércitos locais.

No Peru, o trio encarou um obstáculo colossal: a cordilheira dos Andes. Lá, Mário Fava mostrou ser um sujeito de sorte, pois escapou duas vezes da morte. No dia 21 de outubro de 1929, São Paulo caiu num abismo - ele só sobreviveu porque o automóvel, na queda, ficou preso em uma árvore. Oito dias depois, enquanto a Bolsa de Nova York despencava, o carro Brasil também ia precipício abaixo. E o mecânico escapou por pouco outra vez.

Beto Braga considera Fava o grande herói da expedição. Graças a seus conhecimentos, mantinha os carros funcionando mesmo na base do improviso. Na Bolívia, por falta de álcool (combustível do Ford T), o carro foi abastecido com uma bebida indígena feita de milho. Na Colômbia, encheram os pneus desgastados com capim - o que provocou outro acidente que quase esmagou Fava.

O “Intrépido Mecânico”, como era chamado pela imprensa, também tinha talento de conquistador - teria se envolvido com inúmeras mulheres durante a jornada. Enquanto o grupo passava pelo Equador, recebeu a notícia de que Getúlio Vargas assumira o poder, com a Revolução de 1930. No Panamá, os carros foram desmontados para cruzar os rios, os viajantes viram, espantados, índios loiros de olhos azuis (homens albinos da tribo dos cunas), encontraram a delegação olímpica brasileira a caminho de Los Angeles e souberam que, no Brasil, São Paulo tentava derrubar Getúlio e promulgar uma nova Constituição - era a Revolução Constitucionalista de 1932.

Os viajantes e o revolucionário Na Nicarágua, o grupo se encontrou com o guerrilheiro Augusto Sandino. O líder popular pretendia derrotar a ditadura da família Somoza. Mas havia firmado um acordo com o governo e entregara grande parte de suas armas. Vítima de uma armadilha, foi executado. Os brasileiros tiraram a última foto do revolucionário, dois dias antes de sua morte.

Já durante a passagem pelo México, o comandante Oliveira se apaixonou pela médica Maria Buenaventura Gonzáles, que seria sua companheira por toda a vida. Enquanto isso, em 1935, o movimento comunista, liderado por Luís Carlos Prestes, ganhava força no Brasil. Mas não o suficiente para derrubar Getúlio. A ditadura se instaurava no Brasil à medida que os expedicionários cruzavam os EUA.

Lá, o grupo se encontrou com Henry Ford, que quis (mas não conseguiu) comprar os valentes carros Brasil e São Paulo para tê-los no acervo do museu de sua fábrica. Em Cleveland, os brasileiros precisaram de uma autorização especial para dirigir, que foi assinada pelo “intocável” Eliot Ness, o agente que prendeu Al Capone. Em Washington, foram recebidos por Franklin Roosevelt. O presidente americano entregou uma carta de reconhecimento da nação à expedição.

Durante os quase dois anos que passaram nos EUA, a intenção do grupo era persuadir governo e empresários a investir 100 milhões de dólares na construção da rodovia. Calculava-se que todo o trajeto da Carretera custaria em torno de 500 milhões de dólares - os governos de cada país bancariam boa parte dos custos. Dez anos depois da saída do Brasil, os carros e o grupo voltaram de navio para casa.

Reuniram-se com Getúlio, que lhes homenageou dando o nome da terra natal de cada integrante a ruas do Rio de Janeiro (Bariri, Descalvado e Florianópolis). Leônidas foi nomeado cônsul privativo do Brasil na Bolívia e ocupou o cargo por mais de 20 anos. Mário Fava, um tempo depois, rumou para o norte, abrindo a estrada Belém-Brasília.

O Ford Brasil está hoje no Museu dos Transportes, na capital paulista, e o São Paulo apodrece nos arredores do Museu do Ipiranga. Ainda que com trechos improvisados, já existe uma Carretera ligando o norte ao sul do continente, do Alasca (EUA) à Patagônia, no sul do Chile.

O primeiro país a concluir a obra foi o México, em 1950. O trecho da estrada que deveria ser construído no Brasil até hoje não saiu do papel.

"A intenção da expedição em unir as três Américas, como uma só nação, o verdadeiro espírito do pan-americanismo, antecede o Mercosul e outros acordos. A façanha dos expedicionários, mesmo valorizada na época, virando notícia de capa nos jornais, ficou no esquecimento”, diz Braga.


Saiba mais
O Brasil Através das Três Américas, Beto Braga, 2010.