Busca
Facebook Aventuras na HistóriaTwitter Aventuras na HistóriaInstagram Aventuras na HistóriaYoutube Aventuras na HistóriaTiktok Aventuras na HistóriaSpotify Aventuras na História

Ô abre alas - A história da marchinha

Mais que meros versos de folia, elas são crônicas da política e da sociedade brasileira

Érica Georgino Publicado em 22/02/2017, às 09h03 - Atualizado em 08/02/2018, às 11h53

WhatsAppFacebookTwitterFlipboardGmail
Carnaval das antigas - J Carlos
Carnaval das antigas - J Carlos

Num fim de tarde qualquer de 1970, Manoel Ferreira e Ruth Amaral estavam em casa, jogando cartas com os vizinhos. Um toque na campainha do apartamento do casal, na avenida São João, no Centro de São Paulo, interrompe o passatempo. À porta está outra vizinha, que quer perguntar algo para Ruth - o que, exatamente, ela já não lembra. Caso encerrado, a dona da casa retoma sua vez no baralho. O marido a cutuca por baixo da mesa: "Já temos música para o próximo carnaval". E assim nasciam os versos: "Ai, a bruxa vem aí / e não vem sozinha, / vem na base do saci". "Quando vi a vizinha, a música me saltou na hora à mente. Ela era tão esquisitinha que, para bruxa, só faltava mesmo a vassoura", diz Manoel, rindo. Gravada por Sílvio Santos, a canção estourou nos bailes de carnaval da época e atravessou os anos como parte da trilha sonora de programas do apresentador de TV.

Incorretas e eternas

O episódio resume o tom das marchinhas, gênero musical carnavalesco que narra temas cotidianos em versos simples e irônicos, que "colam" na memória dos foliões. "Quanto mais curta a letra, fica mais fácil para o público gravar e cantarolar bem", afirmam Ruth e Manoel. "A marchinha é o poder da concisão. Ela diz tudo em poucas palavras, acompanhadas de uma melodia nova e agradável", diz o músico veterano João Roberto Kelly.

Embora ele seja avesso a receitas, de sua forma saíram algumas das mais famosas letras do carnaval brasileiro, como Maria Sapatão (1980), Bota a Camisinha (1987) - ambas escritas com a colaboração do apresentador de TV Chacrinha, o Abelardo Barbosa, entre outros autores - e Cabeleira do Zezé (1963), parceria com Roberto Faissal. O mote desta última veio de um garçom que o atendeu em um restaurante de Copacabana. O cabelo do rapaz chamava tanta atenção que João Roberto lhe disse: "Olha, se eu fosse um caricaturista, faria aqui mesmo um desenho seu. Como não sou dessa arte, faço à minha moda: com rimas e bom humor".

54 carnavais depois, não obstante os avanços na aceitação da homossexualidade, os versos "Olha a cabeleira do Zezé / Será que ele é" ainda dominam as seleções carnavalescas de clubes, hotéis e salões. É a segunda canção mais tocada no Brasil em dias de folia, segundo o ranking de carnaval do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad)  - a primeira é "Mamãe eu quero". O gênero representa 44% de todas as músicas reproduzidas, no período, no ano passado. Mais que sinônimo de saudosismo, as marchinhas estiveram na ponta da língua, no pé do povo e, bem à sua maneira, espreitaram o desenvolvimento político e social do país ao longo do século passado.

Globalizadas

Há cerca de 100 anos, a anarquia musical imperava no carnaval. Ritmos europeus (como a polca e os "zé-pereiras", tocadores de bumbo da tradição portuguesa) misturavam-se pelas ruas do Rio de Janeiro com valsas, cantigas de roda, hinos e quadrinhas musicadas na hora. Em suma, dançava-se e cantava-se qualquer coisa. Ao menos um hino essas festas populares já possuíam: Ó Abre Alas, composta pela maestrina Chiquinha Gonzaga em 1899. Era uma marcha-rancho (de andamento lento), que mais tarde foi considerada nossa primeira canção foliã. Chiquinha abria a tradição de músicas dedicadas exclusivamente ao carnaval.

Novos gêneros não demoraram a surgir. Pelo Telefone (1917), de Ernesto dos Santos, o Donga, inaugurou a designação "samba", assim como O Pé de Anjo, de Sinhô, e Pois não, de Eduardo Souto e Filomeno Ribeiro, lançaram em 1920 as primeiras marchinhas. Elas já nasceram sazonais. Eram esquecidas durante o ano, mas tinham seu lugar garantido nos dias de folia (como ocorre com o samba-enredo). Tratava-se de uma mistura alegre e bem brasileira dos ritmos da polca, americanos (ragtime e one-step) e até mesmo das marchas das bandas de coreto e de desfiles militares.

Aos poucos, sua temática ganhou corpo: "A marchinha é um gênero sempre marcado pela crônica de época e pela malícia", diz Ricardo Cravo Albin, musicólogo e pesquisador da MPB. "Elas são a expressão do humor popular da praça pública; é um processo de carnavalização em que não se leva nada a sério", afirma Walnice Nogueira Galvão, autora de Ao Som do Samba - Uma Leitura do Carnaval Carioca. 

Como exemplo, ambos retomam Lamartine Babo, o "rei" do carnaval carioca (veja abaixo), que em 1932 versava sobre uma mulher e aproveitava para cutucar o golpe de Estado getulista em 1930, com a consequente nomeação de interventores para administrar os estados brasileiros. Em uma das estrofes de O Teu Cabelo Não Nega, Lamartine canta: "Tens um sabor / Bem do Brasil / Tens a alma cor de anil / Mulata, mulatinha, meu amor / Fui nomeado teu tenente-interventor". Além de política, os motes eram as comédias de costumes, o nonsense (com o casamento de rimas sem sentido) e a crítica social, como nos versos "Tomara que chova / Três dias sem parar / A minha grande mágoa / É lá em casa não tem água / E eu preciso me lavar". O péssimo abastecimento de água no Rio inspirou Paquito e Romeu Gentil a lançar, em 1951, Tomara que Chova.

A vitalidade das marchinhas é explicada por sua identificação inata com o carnaval. Assim diz João Roberto Kelly: "O samba-enredo você escuta nos desfiles do sambódromo, mas para os blocos, ruas e nas piadas, para dançar sozinho ou em grupo, o ritmo é a marchinha". Ruth Amaral também arrisca um palpite: "As pessoas são muito austeras e só têm esses dias do ano para se esbaldarem. As marchinhas são singelas, dizem o que o coração pensa, sente e viu".

Os compositores continuam na ativa. E até preparam uma parceria, trocando estrofes na ponte-aérea Rio-SP. Segundo Kelly, o tema é a "dança da boquinha". Boquinha? "Sabe... Aquela boquinha, quando os políticos vão pedir a sua parte..."


O rei e a rainha

Carmen Miranda

Em 1930, com menos de dois anos de carreira, a cantora Carmen Miranda (1909-1955) tornou-se rainha das rádios brasileiras ao gravar a marchinha Pra Você Gostar de Mim (Taí), de Joubert de Carvalho. Grande intérprete do compositor Lamartine Babo, sua atuação ajudou a fixar as marchinhas no repertório carnavalesco popular. "Ela tinha a dicção perfeita e as sílabas bem escandidas. Sabia dar significado às palavras", diz a professora Walnice Nogueira Galvão. Mais tarde, Carmen faria sucesso também em Hollywood.

Lamartine Babo

Adorava pular carnaval e sempre saía fantasiado pelas ruas do Rio de Janeiro. Lamartine Babo (1904-1963) era folião, radialista e, sobretudo, compositor de marchinhas. Sua estreia no gênero ocorreu em 1927 com Os Calças Largas, uma parceria com Francisco Gonçalves de Oliveira que caçoava da moda masculina da época de combinar calças folgadas com paletós curtos. Cinco anos mais tarde, lançou um de seus maiores sucessos, O teu Cabelo não Nega. Ficou conhecido também pela autoria dos hinos dos times cariocas de futebol.