Jim Crow e Childish Gambino - Reprodução
Racismo

This is America, de Childish Gambino: As referências históricas

No clipe que varreu a internet, Donald Glover faz alusão a diversos momentos cruciais da história do conflito racial nos EUA

Fábio Marton Publicado em 12/05/2018, às 15h00 - Atualizado às 21h02

Donald Glover, perdoe a rasgação de seda, é um homem da Renascença. Seu currículo inclui as atribuições de: roteirista, humorista, ator, produtor, diretor, músico, DJ, rapper (e, em breve, Lando Calrysian). O último clipe de sua carreira musical, na qual atende por Childish Gambino, foi lançado há uma semana e varreu a internet. Quem não estava ocupado fazendo memes de gosto duvidoso procurou pelas referências políticas e — a parte que vamos abordar — históricas, que foram parar em diversos meios internacionais. 

Se você não viu, veja abaixo:

Um aparte antes de começar: o próprio nome de seu ato musical já é uma referência histórica: Childish quer dizer “infantil”, ou talvez “brincalhão”. E Gambino é uma das cinco famílias da máfia italiana de Nova York, a Cosa Nostra. Esta não é intencional: Glover simplesmente tirou o nome em 2011 do site Wu Tang Name Generator, que diz como você se chamaria se fosse membro do grupo Wu Tang Clan. (Experimente: o meu nome é “Gentleman Killah”). 

Glover não confirmou nenhuma de suas referências. Deixou ao público a interpretação. Se o que vai a seguir é mesmo o que ele tinha em mente, só ele poderá dizer. 

Prólogo

This is America começa com o artista de Los Angeles Calvin The Second sentando-se numa cadeira com um violão. É  uma figura gentil e, nela, é possível ver uma referência aos estilos históricos dos negros, principalmente o blues — já há décadas  aceitos e deglutidos pelo mainstream branco. Ele será a primeira vítima do estranho assassino encarnado por Glover, que, após a agradável introdução musical, parece ser possuído por alguma coisa aos 40 segundos.

O olho maluco foi identificado com um personagem da premiada série de animação The Boondocks, de 2006, centrada em questões negras. O vilão principal é Tio Ruckus, um negro que defende ter nascido branco, mas passou por um processo de “Mickael Jackson às avessas”. E tem um olho de vidro.

Uncle Ruckus Reprodução

Ruckus não é uma criação aleatória. Seu nome lembra o Tio Remus, do hoje mais que malvisto filme da Disney Canção do Sul. Que era, por sua vez, uma referência a outro tio, o Tom. Ou Pai Tomás, como foi traduzido no Brasil. Vem do livro A Cabana do Pai Tomás (Uncle Tom's Cabin), de 1852, por Harriet Beecher Stowe.

A autora, uma branca escrevendo antes do fim da escravidão, devia ter a melhor das intenções. Stowe era abolicionista e o subtítulo original era: O Homem Que Era Uma Coisa. O livro tenta retratar os negros não como os animais selvagens de uma visão comum então, mas humanos, sofrendo uma pérfida injustiça.

Uma das muitas edições Wikimedia Commons

O inferno das boas intenções vem de como Harriet tenta ganhar a empatia do leitor branco: apresentando os negros como inofensivos. No lugar de bichos, são crianções festivos, cujo maior mérito parece ser poderem ser cristãos. Uncle Tom, mesmo sofrendo horrivelmente nas mãos dos brancos, mantém-se dócil, tentando conquistar a simpatia dos brancos. Seu ato de rebeldia é pregar o evangelho para outros escravos.

O livro pode ter sido, historicamente e do ponto de vista dos brancos, um marco abolicionista. Ele tocou em seu coração e deve ter convencido muitos a aderir à causa. Mas, ao trocar o ódio pela condescendência, é hoje visto de forma extremamente negativa. Uncle Tom hoje é um termo pejorativo: quer dizer um traidor de raça. Um negro que rejeita a cultura e os problemas dos negros para ser aceito entre os brancos de forma servil.

Outra coisa que identifica o personagem como traidor: suas calças são quase iguais às do uniforme confederado na Guerra Civil Americana.

Reprodução moderna à venda E-bay

Confederados são os estados que se separaram quando o abolicionista Abraham Lincoln foi eleito. Lutaram pela manutenção da escravidão, ainda que muitos sulistas defendam hoje que foi pela ideia de federatividade, o direito dos estados de criarem suas próprias leis. No caso, manter a escravidão.

Primeiro ato

O traidor comete sua primeira atrocidade contra o músico na cadeira. Mas não sem antes, aos 50 segundos, assumir uma postura bastante esquisita. Definitivamente cômica: é uma referência a outro tipo negro criado por brancos.

Cartaz do século 19 Wikimedia Commons

Jim Crow era um personagem do teatro picaresco americano, o vaudeville. Jim vem de James e Crow é corvo, uma forma racista de se referir os negros.

Foi criado pelo ator branco Thomas D. Rice em 1828 — é mais velho, assim, que o Uncle Tom. Rice o interpretava pintando a cara de preto, a infame blackface. Jim, mesmo após a morte do criador, se tornou uma figura constante nos minstrel shows, um subtipo de vaudeville no qual esterótipos negros eram interpretados por brancos em blackface — e, mais raramente, negros também em blackface, o que era polêmico. Não porque ser racista, mas pela questão de ser aceitável brancos dividir o teatro com negros, mesmo se no palco.

Como Uncle Tom, Jim Crow era um negro inofensivo, mas ridículo. Um palhaço festeiro interpretado com pesado sotaque. Pelo simbolismo do personagem, as leis de segregação dos EUA foram apelidadas de “Leis Jim Crow”. O que nos leva a...

Segundo Ato

Aos 1m09s aparecem as crianças. Seus uniformes tão retrô parecem claramente mais uma referência histórica. E, nas escolas, se passou uma parte fundamental da luta negra na campanha pelos direitos civis, para a abolir as Leis Jim Crow: a reintegração nas escolas. Em 1954, uma decisão da Suprema Corte ordenou o fim das escolas segregadas. Isso gerou momentos de ódio, e imagens como a pequena Ruby Bridges tendo que ser escoltada por agentes federais ou a adolescente Hazel Massery hostilizada na frente da escola.

Mas os uniformes não se parecem com as delas. Parecem ter vindo de exemplo mais positivo. Os usados na cidade de Atlanta:

Integração no campus Georgia Tech, Atlanta, 1961 Civil Rights Digital Library

Atlanta, a capital do estado sulista da Geórgia (que lutou pelo lado confederado na Guerra Civil), é a cidade-natal de Martin Luther King Jr. Nela, foram feitas as primeiras e mais tradicionais universidades negras do país. Tornou-se, assim, o centro da intelectualidade negra e o epicentro da campanha pelos direitos civis. Nessa época, a população negra era alta, mas minoria. Com a vitória, os brancos começaram a emigrar e hoje é uma cidade majoritariamente negra.

Terceiro Ato

Aos 1m41s, vem o brutal massacre na igreja. O gospel, o coral negro, é importante parte da tradição musical negra. Aqui há uma referência ao Massacre de Charleston, em 2015. O supremacista branco Dylann Roof, de 21 anos, entrou na Igreja Metodistas Episcopal Africana e, após esperar pelas orações começarem, puxou uma pistola .45 de uma pochete abriu fogo, matando nove membros da congregação. 

O terrorista Dylann Roof Departamento de Polícia de Charleston

Quarto Ato

E, aos 2 minutos, chegamos à última parte, onde entram os carros da polícia. Esta — reforçada pelos carros velhos — parece ser uma referência à grande revolta racial de Los Angeles em 1992.

 
Vestígios da destruição em 1992 Wikimedia Commons

Em março do ano anterior, o taxista Rodney King havia sido espancado pela polícia. O episódio foi filmado e amplamente divulgado pela TV. Os quatro policiais foram julgados. E absolvidos por um júri formado por nove brancos, um homem mestiço, um latino e um asiático. 

Era 29 de março de 1992 e a revolta da população negra começou imediatamente após a notícia. Por seis dias, Los Angeles ardeu. Violentos tumultos, saques e depredações tomaram conta da cidade. O saldo final foi de 63 mortos, 2.383 feridos e 12.000 presos.

Reforça a ideia dessa referência o fato de Glover chamar telefones celulares de“ferramenta”, aos 2m24s. Como foi com o videotape em 1992, eles hoje captam outros casos de brutalidade policial.

A revolta, diferente dos outros incidentes, acontece ao fundo. Glover e as crianças dançam como se nada tivesse acontecido. E esta, considerando a letra, parece ser a mensagem geral do clipe: entre todos os incidentes brutais, há a distração da cultura negra como vista pelos brancos. A parte vista como inofensiva pelos brancos, principalmente o entretenimento. De como Uncle Tom, os minstrels shows, o gospel, a aceitação dos direitos civis e o consumo de música contemporânea — da qual o próprio clipe é um exemplo —, aliviam a consciência branca. E a cegam para toda a real, violenta e nem de longe resolvida questão racial dos EUA.

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