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Matérias / Idade Média

Cátaros: A heresia dos séculos

Para eles, Jesus não era filho de Deus, e mulheres e homens eram iguais. Uma cruzada foi convocada para sua destruição

Pedro Silva Publicado em 07/10/2019, às 08h00

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A perseguição aos Cátaros - Crédito: Wikimedia Commons
A perseguição aos Cátaros - Crédito: Wikimedia Commons

Os forasteiros chegam à pequena vila sem causar nenhum alarde. Após percorrer centenas de quilômetros a pé, seu andar tornou-se arrastado e seus calçados se deterioraram. Têm a cabeça raspada e vestem-se de forma maltrapilha, com uma longa batina de cor negra presa por uma tira fina de couro.

Após uma recepção praticamente inexistente, eles começam a ser reconhecidos e respeitados pela comunidade. Em pouco tempo, se tornarão líderes religiosos capazes de fazer frente à influência da poderosa Igreja Católica.

No fim do século 12, essas cenas se tornariam cada vez mais comuns na ampla região do Languedoc, no sul da atual França. Cidade após cidade, os cátaros iam espalhando sua fé, baseada na simplicidade e na busca da pureza (katharos, em grego, significa puro).

A religião nascera do cristianismo, mas era marcada por profundas diferenças em relação às doutrinas do Vaticano. Acusados de heresia e até chamados de adoradores do diabo, os cátaros provocaram uma implacável reação do papado. O esforço para eliminá-los incluiu uma cruzada e foi um dos principais motivos para a criação do Tribunal do Santo Ofício, ou Santa Inquisição.

No século 14, cerca de 200 anos após o catarismo ter surgido, seus últimos representantes foram varridos do mapa. Para entender a intensidade da violência promovida pela Igreja Católica contra eles, é fundamental compreender como os cátaros foram capazes de conquistar os corações e as mentes medievais. E sua brutal eliminação é um dos maiores exemplos do incrível poder do papado sobre a Europa da Idade Média.

Bispos vistosos

O primeiro grupo cátaro conhecido apareceu na década de 1120, na cidade de Limousin. Logo eles chegaram a povoados próximos, como Albi, Toulouse e Carcassonne, sempre no Languedoc. Eram terras prósperas, fortes na agricultura e na indústria têxtil. À primeira vista, seria difícil prever que num local tão estável – e religioso – pudesse surgir uma crença que desafiasse a Igreja. Mas, àquela altura, a sociedade medieval estava passando por importantes transformações.

A Europa vivia uma fase de aumento populacional e melhoria das condições de vida, com o desenvolvimento das cidades medievais. No ambiente urbano, aumentava o contato entre as pessoas e a busca pelo conhecimento. Uma parcela da população começou então a refletir sobre várias questões, entre elas a própria fé.

Na origem da expansão do cristianismo, que ocorrera cerca de nove séculos antes, estavam valores como a pobreza, o sofrimento pessoal e a sensação de unidade com Deus. Por volta do século 11, entretanto, a situação do clero não era exatamente essa.

Por todo lado, se erguiam grandes edifícios religiosos, magnificamente ornamentados – alguns deles deram início ao estilo que ficaria conhecido como “gótico”, que caracteriza algumas das principais catedrais da Europa. Além disso, os sacerdotes cristãos (sobretudo os bispos e seus representantes locais, os padres) usavam os fartos recursos da Igreja para garantir a si mesmos uma vida tranquila.

A imagem típica do cristianismo, aquele Jesus magro, de olhar triste e agonizando na cruz, era apenas uma vaga recordação – o perfil do clero estava mais próximo do bispo rechonchudo de roupas vistosas e dedos ornados com toda a sorte de joalheria.

Abaixo os dogmas

Diante das contradições da Igreja, a influência dos cátaros avançava rapidamente. Em 1167, alguns deles se reuniram no encontro que marcou o nascimento oficial da nova religião: o concílio de Saint-Félix-de-Caraman (hoje Saint-Félix-Lauragais, no sul da França). Compareceram cátaros não só do Languedoc, mas de áreas mais distantes como a Lombardia (na atual Itália) e a Catalunha (hoje na Espanha). Muito pouco se sabe sobre o que ocorreu na reunião. Ela provavelmente foi presidida por um homem chamado Nicetas – um cristão dissidente vindo de Constantinopla e apelidado de papa – e organizou as bases do catarismo.

Para os cátaros, o livro sagrado era a Bíblia (em particular o Novo Testamento). Sua religião, entretanto, divergia muito do catolicismo. O princípio fundamental era o dualismo: segundo ele, o mundo seria composto de dois reinos opostos e coexistentes. O primeiro, comandado por Deus, seria invisível e luminoso, onde só existiria o bem. Já o segundo reino, material e visível, seria controlado pelo diabo. Em outras palavras: segundo o catarismo, o inferno ficava na Terra. E o objetivo da vida humana seria escapar do mal através da purificação dos espíritos, reencarnação após reencarnação. Se isso fosse feito, quando chegasse o Juízo Final, todos se salvariam e iriam para o reino de Deus.

Apesar de se considerarem cristãos, os cátaros não acreditavam que Jesus fosse filho de Deus. Ele era apenas considerado um profeta importante, que havia divulgado alguns ideais que mereciam ser seguidos. Para completar a afronta ao catolicismo, os cátaros viam São João Batista como nada menos que um instrumento a serviço do diabo. Afinal, por meio do batismo, ele teria cumprido a profecia de que Jesus era o Messias – coisa que o catarismo não acreditava.

Assim como a teoria, a prática dos cátaros era bem diferente dos católicos. Eles recusavam o ritual da hóstia sagrada (em suas cerimônias, bastante simples, havia apenas a repartição do pão). Tampouco aceitavam o papel subalterno que o papado romano reservava para as mulheres – para o catarismo, o ser humano não admitia distinção entre sexos. A elas era permitido, inclusive, celebrar ritos religiosos.

A autoridade do papa ou de seus bispos não era reconhecida pelos cátaros. Sem uma liderança espiritual única, eles dividiam os seguidores da religião em três níveis. O mais alto deles era o dos Perfeitos, também conhecidos como “bons homens”. Para chegar a esse posto, era preciso passar por duras provas e receber o Consolamentum, o único sacramento cátaro (que, grosso modo, resumia num só o batismo, a ordenação e a extrema-unção). Os Perfeitos eram celibatários e passavam grande parte dos dias em oração e jejum.

Abaixo dos Perfeitos estavam os Crentes, categoria que reunia a grande maioria dos cátaros. Eles comungavam das práticas de virtude e humildade, mas não estavam obrigados a qualquer tipo de abstinência. Podiam casar (embora preferissem o concubinato) e só tinham direito a receber o Consolamentum na hora da morte. O terceiro nível da sociedade cátara era composto pelos Ouvintes. Simpatizantes da religião, eles acompanhavam as palestras dos Perfeitos e se curvavam perante eles para receber a bênção.

Na virada do século 13, o avanço dos cátaros havia se tornado a maior preocupação da Igreja. “Havia o perigo de que a contestação à ordem imposta por Roma se estendesse rapidamente a outras regiões da cristandade”, escreveu o historiador Ernest Bendriss em artigo publicado na revista espanhola História y Vida. A reação não tardaria.

Armas contra a fé

“Matem-nos todos. Deus saberá reconhecer os seus!” De acordo com alguns registros, foi com essas palavras que o abade Arnoldo de Amaury incitou à aniquilação total dos cátaros que se escondiam na fortaleza de Béziers, no Languedoc, em julho de 1209. Há quem defenda a tese de que a frase nunca foi dita. De qualquer modo, ela resume bem o espírito da sangrenta Cruzada Albigense – graças à grande concentração de cátaros na cidade de Albi, eles também eram conhecidos como albigenses”.

Antes de recorrer às armas, entretanto, a Igreja tentou combater o catarismo no campo da fé. Há relatos de que, entre 1165 e 1198, os cátaros foram perseguidos publicamente em locais tão díspares quanto Lombers (França), Colônia (Alemanha) e Oxford (Inglaterra). Para ouvir e julgar os hereges, a Igreja montou tribunais eclesiásticos. Graças à experiência dos cátaros como oradores, entretanto, eles se defenderam brilhantemente das acusações e viram sua fé ganhar status de religião. Apesar de ter havido algumas condenações, o prestígio dos Perfeitos saiu fortalecido.

Em 1205, Domingos de Gusmão criou a ordem dos dominicanos. Pregando uma postura moral exemplar e o retorno aos princípios originais da cristandade, eles tentavam competir com a “pureza” dos cátaros. O problema é que os sacerdotes católicos não conseguiam se aproximar da população como os Perfeitos.

Quando um líder cátaro chegava a uma vila, sua primeira preocupação era encontrar emprego. Após trabalhar de dia para se manter, ele dedicava a noite ao diálogo com os locais, procurando transmitir seus conceitos religiosos. Enquanto isso, os monges católicos raramente eram vistos em contato com o povo – optavam, em geral, pela clausura.

Diante da contínua perda de fiéis, o papa Inocêncio III decretou o confisco dos bens de todos aqueles considerados hereges. Sua vontade foi cumprida por todos os cantos da Europa. Exceto no Languedoc, onde os governantes se recusaram a agir contra os cátaros. A alternativa encontrada pelo pontífice foi montar uma verdadeira força-tarefa: ordenou que os clérigos se unissem aos pregadores dominicanos para, em conjunto, redobrar a batalha pela fé no Languedoc. Sacerdotes católicos se misturaram aos Perfeitos nas ruas, mas pouca coisa parecia mudar. Até que um crime selou o destino dos cátaros.

Em 1208, o legado papal (figura máxima da hierarquia da Igreja na região, representante direto do pontífice) Pedro de Castelnau foi morto por alguns habitantes de Toulouse. Logo correu a notícia de que os assassinos eram, supostamente, cátaros. Inocêncio III teve, então, a deixa de que precisava. Em 10 de março, organizou uma cruzada liderada por Arnoldo de Amaury e pelo bispo Folquet de Marselha. No campo de batalha, o comando coube a Simão de Montfort, à frente de um exército com 10 mil homens.

A fogueira final

Inocêncio III morreu sem ter conseguido extinguir o catarismo. A tarefa coube a seu sucessor, Gregório IX, que assumira em 1227. Com a situação aparentemente controlada em termos militares, o papa teve uma idéia que seria decisiva para a história dos séculos seguintes. Em 1231, por meio da bula Excommunicamus, criou a Santa Inquisição.

Não é exagero dizer que a caça aos cátaros foi uma das principais razões para a novidade. Afinal, após anos de perseguição, eles haviam mudado sua maneira de agir. Agora, os Perfeitos misturavam-se à população, sem usar a tradicional veste negra. Para facilitar a identificação dos cátaros, a Inquisição empregava métodos sofisticados – e sórdidos – de interrogatório e investigação.

A última ação militar contra os cátaros foi o cerco a Montségur, em 1243. Naquela época, a Inquisição já havia provado sua eficácia para eliminar seletivamente os hereges. Depois das condenações nos tribunais inquisitórios, a Igreja usava o “fogo purificador”: de acordo com o discurso oficial, a morte na fogueira seria a única forma de salvar as almas dos cátaros.

Encurralados, os cátaros eram colocados diante da seguinte escolha: negar sua fé ou enfrentar a fogueira. De uma forma ou de outra, a religião ia sendo exterminada. Em 1321, foi executado o último sacerdote cátaro conhecido, Guillaume Bélibaste, que havia se refugiado no oeste da Espanha. Cerca de um século depois, já não se ouvia mais falar de seguidores do catarismo. Terminava assim a trajetória dos contestadores que, com humildade de caráter e simplicidade de métodos, haviam conquistado o respeito do povo – da mesma forma que os primeiros cristãos haviam feito, 12 séculos antes, na Palestina.


Saiba mais
A Heresia dos Cátaros – Uma Revolução Medieval, Stephen O’Shea, 2003
Hereges de Deus – A Cruzada dos Cátaros e Albigenses, Aubrey Burl, 2003


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