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La Recta Província: Quando o inimigo mítico não era lenda

A coisa mais terrível e desumana sobre a Brujeria era que não distinguiam o colonialista armado e culpado do nativo indefeso e inocente

M. R. Terci Publicado em 21/09/2019, às 10h00

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Imagem La Recta Província: Quando o inimigo mítico não era lenda

Mortes inexplicáveis, terror, medo e mistério, ingredientes que poderiam estar presentes em um conto de horror clássico, mas até o ano de 1880, essa era a mais perfeita descrição do ambiente na ilha de Chiloé, uma paragem amortalhada pela lama abundante das tormentas e enroupada por densa e escura floresta onde só o insólito acontecia.

Venham comigo, pelos caminhos mais escuros da história, desvendar os mistérios de La Recta Província, concebida no solo fértil da superstição, um modelo de governo mantido pelo terror.

Localizada a cerca de 700 milhas ao sul da capital do Chile, esse rincão possuí uma história única. Por conta de sua localização e clima instável, apesar das constantes investidas dos jesuítas, Chiloé só veio a se tornar colônia da Espanha em 1826.

Nesse ermo, esparsamente habitado, o governo colonialista e a igreja católica estabeleceram um sistema de terras que beneficiavam apenas as classes mais abastadas e com isso muitos habitantes da ilha perderam tudo o que tinham e logo suas famílias padeciam de fome.

Sem recursos ou meios para lutar por seus direitos, os cidadãos de Chiloé recorreram à Brujeria, uma seita de bruxos do sexo masculino que existia com o único propósito de ferir pessoas. Logo, diante da fraqueza de seus concidadãos, os brujos se autoproclamaram os verdadeiros governantes de Chiloé, membros da elite aristocrática pré-colombiana e segundo suas tradições, pré-Inca.

Em retrospectiva, talvez fossem mais xamãs do que feiticeiros.

Mas qualquer que fosse o caso, representantes do governo colonial, nobres, delegados passaram a ser assassinados, na calada da noite, de maneiras terríveis e até o presente, inexplicáveis.

Crédito: Reprodução

Navios afundavam misteriosamente em meio à calmaria e igrejas foram reduzidas a cinzas por meio de estranhos artifícios quando os padres começaram a catequizar a população da ilha.

Não há registro do que fez com que os brujos agissem da maneira como agiam. Mera demonstração de seu poder, ou parte de um plano maior? Fato é que naqueles anos surgiu a temível La Recta Província.

Os nativos da região não concebiam a morte como fenômeno natural do ciclo da vida. Para eles a única morte que existia era aquela causada pelas armas. Doenças não existiam, nem mesmo a morte por velhice. A vida na ilha poderia ser prolongada indefinidamente se a feitiçaria não interviesse.

Assim sobre o terreno fértil da superstição, a Brujeria semeou seu domínio sobre Chiloé. Concedia território próprio para os brujos mais proeminentes, os Reys. Cada brujo devia lealdade ao seu Rey local que possuíam suas próprias leis, costumes e agendas, mas o propósito de todos eles era prosperar por qualquer meio e minar a autoridade espanhola.

Puniam com a morte quem ousasse desafiá-los ou aqueles que não lhe pagassem por proteção. Em sua pervertida hierarquia havia os curandeiros que envenenavam os habitantes através de meios desconhecidos e lhes cobrava pelos seus direitos de cura.

A coisa mais terrível e desumana sobre a Brujeria, independente do caráter misterioso de seus métodos, artimanhas ou dos meios com que fazia valer sua autoridade supersticiosa, era que não distinguiam o colonialista armado e culpado do nativo indefeso e inocente. Pareciam movidos pelo desejo único de purgar toda a humanidade.

Da noite para o dia, surgiam em suas vítimas as chamadas sajaduras, lacerações profundas e quase sempre mortais na carne provocadas por meios desconhecidos. Havia ainda relatos de um ser chamado Invuche, uma espécie de homem com o pescoço torcido para trás que atacava cruelmente quem ousasse penetrar as cavernas e domínios dos brujos, para roubar seus segredos ou resgatar parentes cativos.

A população nativa que penava em necessidade, se viu em desgraça quando obrigada ao tributo imensurável daquilo que nem possuíam. O povo para se proteger daqueles que supostamente lhe devia proteção, fazia uso de encantamentos e simpatias indígenas.

Não por acaso, Alan Moore, roteirista e escritor britânico, ícone dos quadrinhos e literatura trouxe a Brujeria para dentro do contexto de sua premiada ficção. Em 1980, o Monstro do Pântano e John Constantine se viram às voltas com o famigerado grupo de feiticeiros que se aproveitaram de uma crise de proporções cósmicas para invocar um Mal Primordial e destruir em definitivo o Paraíso.

 Vilões e heróis que se desenvolveram e se tornaram capazes de batalhar pelo domínio de um mundo hostil e desconhecido. Protagonistas cuja inteligência emocional, muito frágil, nem sempre era movida pelos motivos mais razoáveis, louváveis, e que constantemente se valia da magia para alcançar seus objetivos, em um ponto de vista idêntico ao dos nativos de Chiloé. 

Quem sabe, o velho Moore não esteja certo?

Afinal, ele mesmo se proclamou bruxo há alguns anos. Talvez, então, no nível de nosso cérebro primitivo, a única proteção contra a superstição seja a superstição. No entanto, para purgar o mal que flagelava a distante Chiloé, em 1880, os homens de bem evocaram mal maior: a Inquisição. Mas isso, meus bons, já é outra terrível história que fugiu do campo da ficção.


M.R. Terci é escritor e roteirista; criador de “Imperiais de Gran Abuelo” (2018), romance finalista no Prêmio Cubo de Ouro, que tem como cenário a Guerra Paraguai, e “Bairro da Cripta” (2019), ambientado na Belle Époque brasileira, ambos publicados pela Editora Pandorga.