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130 Anos: Em Busca da República, livro oferece um relato completo da queda do Império até o Brasil atual

Pensadores de diversas áreas descrevem a história da República brasileira em livro inédito

Vinicius Buono Publicado em 08/07/2019, às 14h20

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Quadro "A Proclamação da República" de Benedito Calixto, 1893. - Wikipédia / Commons
Quadro "A Proclamação da República" de Benedito Calixto, 1893. - Wikipédia / Commons

Lançado pela editora Intrínseca e organizado por Edmar Bacha, José Murilo de Carvalho, Joaquim Falcão, Marcelo Trindade, Pedro Malan e Simon Schwartzman, o livro “130 Anos: Em Busca da República” fornece um panorama da história da República Brasileira.

Com colaborações de 38 pensadores de diversas áreas como direito, economia, ciência política, história e sociologia — incluindo nomes como o ministro Luís Roberto Barroso, a historiadora Marieta de Moraes Ferreira, o economista Arminio Fraga e a cientista política Maria Celina d’Araujo — o livro aborda a jornada do Brasil republicano década a década por meio de três eixos temáticos: sociedade e política; Estado e direito; governo e economia. Com os pontos de vista de cada autor dialogando e se complementando entre si, o livro oferece um grande painel do processo de modernização do país.

Começando pela proclamação da República em novembro de 1889 pelo Marechal Deodoro da Fonseca num país majoritariamente agrário e analfabeto, com uma população de apenas 14 milhões de habitantes, e finalizando nos dias de hoje, em que o contingente populacional aumentou em quase 15 vezes, com a população atingindo a casa de 208 milhões. Apesar de mais de um século ter se passado, ainda somos um dos países mais desiguais do planeta.

Todos os altos e baixos da República são retratados no livro: os períodos democráticos e ditatoriais, os momentos de crescimento e os de recessão. Se estudamos o passado para entender o presente, é uma ótima maneira de olhar para trás com olhar crítico e analítico, buscando identificar, através do processo histórico, as mazelas que nos afligem. Fica mais fácil, assim, evitarmos a repetição de antigos erros e, também, retomarmos o que deu certo.

Confira, na íntegra, o primeiro capítulo da obra:

Cronologia

15/11/1889: Proclamação da República por um golpe militar 

11/10/1890: Promulgação do Código Penal 

11/1890: Crise do Banco Barings, de Londres, devido a investimentos de risco na Argentina

15/11/1890: Instalação da Constituinte 

1890 a 1891: Crise especulativa chamada Encilhamento 

24/2/1891: Promulgação da Constituição 

25/2/1891: Eleição pelo Congresso do marechal Deodoro da Fonseca como presidente e de Floriano Peixoto como vice 

3/11/1891: Deodoro fecha o Congresso 

23/11/1891: Renúncia de Deodoro, posse de Floriano 

1893 a 1895: Revolução Federalista no Rio Grande do Sul

6/9/1893: Revolta da Armada no Rio de Janeiro 

1/3/1894: Eleição de Prudente de Moraes, que toma posse em 15 de novembro

1896 a 1897: Guerra de Canudos, no interior da Bahia 

5/11/1897: Tentativa de assassinato de Prudente de Moraes 

1/3/1898: Eleição de Campos Sales, que toma posse em 15 de novembro 

1898: Funding loan. Empréstimo de consolidação da dívida externa 

1899: Campos Sales inaugura a “política dos governadores” 

1899 a 1902: Programa ortodoxo de estabilização, implantado por Joaquim Murtinho, ministro da Fazenda 

1 - Renato Lessa 

A primeira década: República, natureza, desordem

Quando tratamos da história da República brasileira, uma das maneiras de pensar e um dos hábitos arraigados parte de um sentimento — mais do que de uma ideia — de que nunca tivemos a ou mesmo uma República, ou de que esta, quando nominalmente realizada, teria deixado como legado uma legião de promessas incumpridas. A premissa constitui uma clara circunstân- cia de observação — um ponto de vista, no sentido preciso da expressão —, deflagradora de sensação de desencanto, reiterada ao longo do tempo e coadjuvada por vasta e renitente heterodoxia política. 

Ao considerar os primeiros momentos do regime republicano no Brasil, logo a seguir à Proclamação de 1889, julgo não haver motivo para tal sentimento de desencanto. A razão parece-me simples e lógica: não houve à partida qualquer encantamento. A República proclamada veio ao mundo dos vivos como questão de fato. Não traiu suas promessas. Não destruiu expectativas utópicas. Antes o contrário, o republicanismo das décadas finais do Império caracterizou-se por notável investimento contrautópico e realista. O tema do federalismo, posto como núcleo central do movimento por iniciativa do grupo de republicanos paulistas, buscava de forma hiper-realista uma adaptação do Brasil formal ao Brasil real. É importante mensurar promessas para melhor ponderar a escala de decepções. 

Sérgio Buarque de Holanda diferenciou de modo inequívoco dois momentos da ativação republicana no Brasil do século XIX: (I) um primeiro, com foco no período da Regência (embora possa incluir retrospectivamente as revoluções de 1817 e 1824), tomado por movimentos periféricos e radicais; e (II) o republicanismo tardio do final da Monarquia, com peso maior do “centro” e movido por ânimos moderados. 

O argumento procede, se considerarmos o peso dos republicanos paulistas na condução do processo de configuração do novo regime, após quase uma década inicial de dilatada instabilidade. O núcleo paulista condensou o tema do federalismo através da fórmula — um tanto contraintuitiva — “centralização/ dispersão; descentralização/unidade”. Sua atitude diante das instituições monárquicas nos anos anteriores à Proclamação foi de contenção exemplar. Republicanos históricos, como o fluminense Quintino Bocaiúva e o olindense Saldanha Marinho, sustentavam que a República viria por “evolução” e não por “revolução”. Bernardino de Campos, um dos elementos centrais do grupo paulista, opôs-se de modo acérrimo a qualquer aproximação com oficiais descontentes, durante a Questão Militar, com vistas à oportunidade de conspirar contra a Monarquia. 

A ênfase em um programa federalista é usualmente debitada na conta de interesses “materiais” — econômicos e regionais —, que trariam consigo o imperativo de obtenção de poder político e de configuração de um “desenho institucional” mais conveniente. Não nego o poder explicativo inercial da hipótese, mas creio haver uma dimensão mais funda e de longa duração em jogo que, a meu juízo, marcaria a posteridade republicana. 

A Monarquia, a partir do Golpe da Maioridade, em 1840, empreendeu processo sistemático e crescente de centralização política e institucional. Tanto o plano político quanto o administrativo da vida nacional se constituíram a partir de uma vontade de centralização que, em grande medida, foi antes ficcional que efetiva. Mais do que decorrente de arcaísmos absolutistas, tal vontade expressou reserva diante do fato da fragmentação localista. 

Em outros termos, tratou-se da recusa em tomar a fragmentação e a dispersão como prefigurações inelutáveis da forma final do sistema político e institucional. Enquanto a primeira — a fragmentação — se associava à dimensão telúrica da vida nacional e a seu caráter, digamos, “natural” e “espontâneo”, a segunda — a forma do sistema — foi puro artifício e obra de invenção institucional, conduzida a contrapelo da anterior. Falo do trânsito de uma ideia de “população”, como termo que reúne uma coleção “material” e “objetiva” de seres humanos, dispersos pelo território em suas associações primárias, para a de “povo”, por definição abstrata e a ser materializada pelas artes construtivistas dos inventores de leis e instituições. O caráter ficcional aludido diz respeito em boa parte ao fato de que, a despeito do investimento prático-alucinatório da centralização, o país viveu todo o século XIX sob um regime de federalismo de fato. É mesmo, julgo, o caso de avançar e dizer que parte do país viveu simplesmente em estado de ausência de regime ou, se quisermos, em estado de natureza. A razão básica para isso foi a enorme disparidade entre a vontade de implementar a centralização e os meios práticos para torná-la efetiva. 

Francisco Iglésias, em estudo clássico sobre a província de Minas Gerais no século XIX, contabilizou nada menos do que 122 períodos administrativos em um espaço de 65 anos. É razoável imaginar que a regularidade desse padrão de altíssima rotatividade administrativa levava a rotinas, práticas e hierarquias sociais básicas que operavam de modo independente. Supor o contrário seria imaginar a imanência de um estado de anomia ou revolução permanentes, o que não parece ter sido o caso.

Trocando em miúdos, a lógica do federalismo de fato tem a ver com um tema clássico nas interpretações do Brasil: o controle político e social local exercido por clãs, segundo Oliveira Viana, ou a dispersão pelo território de ilhas de poder privado, na chave de Nestor Duarte. Claro está que os “barões” foram expressão desses poderes locais e fizeram-se representar na cena política nacional através do controle das eleições. Por outro lado, tal acesso à representação deu-se sempre em um quadro institucional no qual o Poder Moderador — prerrogativa exclusiva do imperador — subordinava os demais Poderes, fixando-os de algum modo em uma dimensão nacional. Em outros termos, o localismo resultava simbólica e politicamente contido no vértice/vórtice do sistema. No plano da vida como ela é, no entanto, as formas diretas de controle social sabiam mais a estado de natureza. Reduzir o federalismo dos republicanos de finais do século XIX à expressão de interesses de classe ou de região deflaciona o significado mais amplo da ideia, na verdade, uma contrautopia. Utópica, em grande medida, foi a vontade de centralização. Utopistas, a rigor, foram os operadores do que Paulo Mercadante designou como “a consciência conservadora”. O que os republicanos pretenderam — ou acabaram por realizar — foi dissipar a pátina da centralização e fazer valer a força telúrica do país real. Há mais nisso do que vocalização de interesses de classe: trata-se de um redesenho minimalista dos nexos de integração social e política e um modo próprio de conceber o país. Um redesenho que procede por desinvenção ou, se quisermos, uma invenção que desinventa. Mesmo programas realistas e contrautópicos podem provocar imensa algaravia. Após os fatos confusos do 15 de Novembro, o Brasil mergulhou em uma década de enorme incerteza política e social. Amanheceu em 16 de novembro sem Poder Moderador, até então a chave da organização político- -institucional do país. A experiência dessa falta marcou os primeiros anos da infância do que ainda viria a ser um regime. Tempos de infância que podem ser decompostos em dois segmentos. 

O primeiro, de 1889 a 1894, compreendeu o ciclo dos governos militares: Deodoro da Fonseca, até 1891; e Floriano Peixoto, até 1894. Foram os anos iniciais de desrotinização da política, sem a emergência de um novo ordenamento. Houve imensa instabilidade político-militar que incluiu dois graves levantes da Marinha e uma Revolução Federalista no Sul. Ao mesmo tempo, dinâmicas de dispersão fizeram-se presentes, pela proliferação de conflitos em torno do controle das antigas províncias do Império, nas quais praticamente todos lutavam contra todos. Foram tempos, segundo a boa lavra de Raymundo Faoro, de distribuição natural do poder. Cabe destacar naqueles anos o processo de elaboração constitucional, iniciado em 1890 com a eleição da Assembleia Nacional Constituinte. A primeira Constituição republicana seria, de fato, promulgada em fevereiro de 1891. Embora estabelecesse um quadro legal para o país, sua operação não produziu efeitos de estabilidade. O desenho liberal-democrático e federativo continha, ao menos, três inovações macroinstitucionais importantes: eleição direta do chefe de Estado; eleições legislativas autônomas; e autonomia dos estados. Ou seja, os elementos estruturantes do quadro passaram a possuir fontes de legitimidade próprias e independentes, reunidas no valor “autonomia”, sem atribuições hierárquicas entre si e sem mecanismos de integração. Com efeito, o desenho sugeria a imagem de um sistema de hierarquias paralelas e, portanto, sem vértice. O segundo segmento correspondeu ao primeiro governo civil da República, o do paulista Prudente de Moraes (1894-1898). Apesar da vigência do panorama constitucional, o governo de Prudente foi marcado por grande instabilidade. Parte dela deveu-se às relações entre os Poderes Executivo e Legislativo. Houve ainda intensa agitação jacobina, em estado de mobilização permanente, nas ruas do Rio de Janeiro. O Congresso refletia de modo pleno a fragmentação federalista, apresentando-se como um comitê executivo dos estados. A primeira tentativa de ordenamento da dispersão das forças políticas deu-se em 1893, pela criação de um partido com pretensões nacionais, o Partido Republicano Federal, liderado pelo prócer paulista Francisco Glicério, e um monumento ao ecletismo. São célebres as palavras do político cearense Belisário Távora, que descrevia o PRF como uma “catedral aberta a todos os credos”. 

Incapaz de coordenar a dinâmica legislativa, o PRF converteu-se em um polo de poder alternativo ao presidente. O dilatado dissenso entre as novas elites, contudo, encontrou compacta unidade no combate aos camponeses de Canudos. Ali se deu a primeira demonstração de unidade republicana, contra os desvalidos do sertão da Bahia, pintados como monarquistas. O lado telúrico do país, materializado no exclusivo agrário, foi, assim, o maior lastro consensual da primeira elite republicana. 

Naquela época, até os regicidas eram confusos. Prudente de Moraes foi alvo de atentado, perpetrado por um anspeçada da Marinha, Marcelino Bispo, que errou de vítima e acabou por matar o ministro da Guerra. Marcelino seria agraciado por Nina Rodrigues em um ensaio delirante (“O regicida Marcelino Bispo”), que o revelou como descendente de índios e portador da “impulsividade hereditária” de seus ancestrais. Florianista acérrimo, escreveu na prisão várias poesias, com destaque para o poema “Jesus Cristo e Floriano”. 

A crer em José Maria Belo, Prudente alcançou o maior nível de impopularidade da então curta história republicana. O atentado de novembro de 1897, no entanto, salvou o restante do seu mandato: as multidões que o execravam voltaram-se contra os jacobinos cariocas e os condenados da terra do sertão baiano. Cumpriu o mandato e elegeu, em 1898, seu sucessor, Campos Salles, em cujo quatriênio começaria de modo efetivo a história da República tal como a conhecemos. 

2 Arno Wehling

Mudança institucional e persistências sociais e econômicas

Distinguir permanências de modificações é um bom critério para perceber, na passagem da Monarquia para a República, o que permaneceu inalterado e o que efetivamente mudou. O pano de fundo social e econômico pouco se alterou, pois o Brasil continuava agroexportador, com população predominantemente rural e urbanização precária. O país não possuía cidades, diria um crítico pouco depois, mas “grandes aldeias”. Cerca de 80% da população era analfabeta. A Abolição não levou na década seguinte a nenhuma modificação maior no mercado de trabalho, e o Encilhamento, a pluralidade da emissão bancária de 1890, que gerava a expectativa de produzir um boom econômico pela facilidade de crédito, foi um fiasco total. 

Por outro lado, no plano político, houve mudanças mais extensas. Estabeleceram-se a federação e a descentralização, com medidas tomadas antes e depois da Constituição de 1891 e amplamente discutidas na Assembleia Constituinte. Os estados obtiveram uma autonomia que era antiga aspiração, obstada pelo unitarismo da Constituição imperial. Houve, em consequência, transformações importantes na organização judiciária e no direito público que contrastavam com o relativo imobilismo do direito civil. 

A Constituição de 1891 ampliou, em tese, os direitos políticos dos cidadãos, estabelecendo o sufrágio universal para homens alfabetizados maiores de 21 anos, mas não se alargou com isso significativamente a representação. Reafirmou os direitos civis, porém excluiu o único direito social previsto pioneiramente na Constituição anterior, o da instrução pública gratuita. 

A engenharia político-constitucional vitoriosa definiu o país como uma federação e o regime como presidencialista. No âmbito do direito e da justiça, a distribuição de poderes União–Estados refletiu-se na organização judiciária, cujo modelo, por excelência, foram os Estados Unidos. Definiram-se, assim, uma justiça federal e as justiças estaduais, um Supremo Tribunal Federal (STF), que lembraria a Suprema Corte, e um direito também de âmbito estadual. Nesse último caso, limitou-se ao direito processual, embora houvesse tentativas de fixar igualmente como estadual o direito material. Rompia-se, dessa forma, a unidade das fontes legislativas, ciosamente buscada no Império à guisa de instrumento de centralização. 

Quanto ao presidencialismo, também de molde norte-americano, este foi, antes de tudo, reação ao que era considerado o excessivo poder do Parlamento no Império, conforme claramente se dizia à época. Disso poderia derivar não apenas o fortalecimento do Executivo, mas também um novo papel para o Judiciário — a função de garantir a liberdade e os direitos dos cidadãos na relação potencialmente conflitiva “Indivíduo x Estado”. Aumentar o papel do Judiciário, e particularmente o do Supremo, já fora cogitado pelo principal constitucionalista do Império, o Marquês de São Vicente, na década de 1850. E o próprio imperador, na década de 1880, pensou em transferir para o Judiciá- rio atribuições do Poder Moderador, sugerindo que se estudasse o modelo da Suprema Corte. 

O Poder Judiciário esboçado nos atos do Governo Provisório e definido na Constituição de 1891 e nas Constituições estaduais que se seguiram era diferente do anterior em vários pontos. O sistema dualista justiça federal/justiças estaduais refletia a nova distribuição de poder e previa competências diferentes e a não interferência entre elas. A justiça municipal deixou de existir e, junto com o repartimento tributário entre União e estados, foi o principal motivo de enfraquecimento do poder local e do esvaziamento de sua autonomia, não obstante a previsão constitucional que a garantia. Ainda de acordo com o modelo dos Estados Unidos, eliminou-se o contencioso administrativo, determinando o controle da administração pública pela justiça comum por meio de uma ação sumária especial para esse fim. 

As garantias da magistratura foram afirmadas também antes da Consti- tuição, como a independência dos juízes e a eleição pelos pares dos presidentes do STF e das Relações estaduais — o que se consolidou na Constituição, quanto aos juízes federais, na fórmula vitaliciedade-irredutibilidade de vencimentos-inamovibilidade. Aos juízes estaduais não se estenderam essas garantias, mantidas às vezes por via jurisprudencial ou mesmo como manifestação contrária de Constituições estaduais. 

Tal situação, obviamente, fragilizava a justiça estadual, colocando-a na dependência do Executivo, vale dizer, ante o poder das oligarquias municipais e estaduais. Foi, assim, objeto de pesadas críticas dos monarquistas, em especial do jurista Cândido de Oliveira, para quem os juízes deixavam de ser “a grande classe da nação” para se dividirem em grupos estranhos entre si, com processualística diversa e admitindo meios diferentes para dirimir litígios semelhantes, comprometendo a unidade do país.

Os tribunais estaduais começaram a ser implantados em 1891, no clima de guerra civil que se estenderia por mais três anos. Em 1892 o governo federal constatava um quadro desalentador de foros paralisados, desorganização da magistratura e até supressão, em alguns estados, dos antigos tribunais da Relação sem que fossem instalados outros. 

Ainda na esfera da organização da justiça criou-se a possibilidade de se constituírem tribunais regionais federais e limitou-se a justiça especializada à militar, finalmente enxugando a pletora de justiças especiais oriundas do Antigo Regime, um resquício da estrutura privilegiada de segmentos da sociedade. Inovação importante dos novos tempos foi o Tribunal de Contas, sem caráter plenamente judicial, já que suas decisões tinham valor probatório, mas não de coisa julgada. 

O júri, que vinha dos grandes debates da Constituinte de 1823 e fora introduzido por influência inglesa, manteve-se, todavia também sem a amplitude instituída no novo modelo norte-americano. Ao longo da década foi esvaziado de várias de suas atribuições, perdendo parte de sua jurisdição sobre contravenções e infrações menores para as juntas correcionais, o que, segundo os críticos, retirava-lhe toda a inspiração liberal que o caracterizava. De qualquer modo, somente em 1899 o júri teve sua definição substantiva por um ato do STF. 

Se o perfil da justiça estadual se mostrou relevante para consolidar o poder oligárquico local, o do STF foi significativo na nova relação entre os Poderes em âmbito nacional e para afirmar a supremacia da Constituição federal na ordem normativa. O aspecto decisivo foi a questão do controle de constitucionalidade: viria a ter no Brasil o papel que seu homólogo e modelo adquirira nos Estados Unidos? Emularia pelo menos o papel do Conselho de Estado no Império? 

Embora sem enunciar expressamente o princípio do controle, o que só ocorreria na Constituição de 1934, a de 1891 anulava os atos decorrentes da lei inconstitucional, assim declarada pelo STF, sem anular a própria lei. A ideia estava no ar, pois o Decreto no 848 do Governo Provisório, anterior à Constituição, já dispusera nesse sentido, o que foi ratificado por lei de 1894 e por acórdão do STF de 1896. O lento processo de aperfeiçoamento da engenharia constitucional estendeu-se ainda à interpretação do direito substantivo pelo STF, sistematicamente negada, sendo o entendimento dominante o de que o papel do tribunal deveria restringir-se à defesa do predomínio da Constituição e da legislação federal. 

A organização federativa e a relação União–Estados eram complexas, e a agitação política da primeira década republicana agudizou o problema. Guerra civil, com a Revolução Federalista e a Revolta da Armada, ditadura militar, intervenções nos Estados, uso político da Guerra de Canudos e atentado ao presidente Prudente de Moraes, a par da crise econômica e do aumento da dívida pública, fizeram do período o mais agitado desde as Regências. Conflitos, prisões e exílios desafiaram a justiça e, em particular, o STF, em cujo âmbito, em nome da defesa das liberdades e da ideologia liberal, desenvolveu-se uma nova concepção. 

A necessidade de proteger direitos individuais contra os frequentes atos de abuso de poder do Executivo — dos Executivos, pois isso ocorreu em vários estados — gerou uma construção jurídica peculiar ao Brasil. Na ausência de outra ferramenta legal, alargou-se — nomeadamente Rui Barbosa o fez — o conceito tradicional de habeas corpus para abarcar a proteção às vítimas do arbítrio político. Nascida nessa década, a chamada “doutrina brasileira do HC” foi uma constante na República Velha até sua posterior substituição pelo mandado de segurança. E tornou-se, para muitos, o dispositivo pelo qual as liberdades civis se mantiveram num país manietado pelas oligarquias rurais, submetido a sucessivos conflitos intraoligárquicos e com eleições viciadas. 

Na esfera do direito houve esforços legislativos em diferentes setores com o novo regime. Assim, ainda em 1890, antes mesmo de a Constituição ser promulgada, foram decretados um novo Código Penal, criticado como pouco sistemático e mal embasado doutrinariamente, a Lei de Falências, tornada urgente pela quebradeira provocada pelo Encilhamento, e o Regulamento Alvim, sobre o processo eleitoral. O tema eleitoral voltaria a ser objeto de novas determinações em 1892, mas a grande realidade no assunto foi o papel — na ausên- cia de Justiça Eleitoral — da Comissão de Verificação de Poderes na Câmara dos Deputados. Esta imprimiria o tom da homologação (ou não) dos eleitos e seria o instrumento oligárquico por excelência do controle das maiorias parlamentares que caracterizaria o país até 1930. 

O direito tributário sofreu, naturalmente, as maiores modificações, dada a nova característica federal do Brasil. Houve avanços, como a definição das competências da União e dos Estados na matéria, melhor discriminação das rendas e definição do princípio da legalidade tributária. Esses avanços, porém, não evitaram as situações de bitributação, pela superposição de tributos, a confusão entre taxas e impostos e, sobretudo, a dependência dos municípios aos estados. O direito sofreu, doutrinariamente, várias tentativas de aggiornamento. Se no plano político-constitucional a influência era do liberalismo norte- -americano, o direito privado respirava o clima cientificista, em particular positivista e evolucionista spenceriano. A separação da Igreja e do Estado, já decretada pelo Governo Provisório, afirmava a laicidade das instituições, nesse ponto emulando a República francesa e tendo como consequências imediatas a decretação, em 1890, do casamento civil e o fim, por falta de objeto, do direito eclesiástico. 

O dualismo do direito privado continuou, mantendo-se as Ordenações no direito civil e o Código Comercial de 1850. No primeiro caso, às tentativas frustradas de um Código Civil no Império seguiram-se outros projetos, como o de Coelho da Rocha, em 1890, e o de Clóvis Beviláqua, em 1899, este afinal vigente em 1917. Elaborado na década de 1890, o projeto esforçava-se por conciliar tradição e inovação, combinando as propostas de Teixeira de Freitas com o germanismo da época e o Código alemão concluído em 1896. 

O reconhecimento do fundo católico da sociedade não impedia que o Código Civil fosse liberal em matéria de propriedade, atualizando a herança dos juristas do Segundo Império francês ao discurso spenceriano, fortalecendo o indivíduo no direito de família e o crédito no direito das obrigações, ao mesmo tempo que valorizava a transmissão hereditária no direito das sucessões. Na linha da codificação francesa, o patrimônio sobrepunha-se à pessoa, embora fosse a época da encíclica Rerum Novarum (1891), mas os efeitos da crítica católica ao capitalismo só apareceriam no Brasil no século seguinte. 

A legislação econômica procurou igualmente atualizar o Brasil em relação à nova época “industrial”, com a qual a alegoria da República simbolica- mente se associava, conforme aconteceria com as leis de falências, de hipotecas, das sociedades anônimas e do fomento industrial. Porém, fracassos como o do Encilhamento e o da nacionalização da cabotagem mostraram os limites da modernização pela via exclusiva do voluntarismo legislativo. 

Por fim, deve ser lembrado que nos primeiros anos da República modificou-se o ensino jurídico, com a introdução do constitucionalismo norte-americano, mas prosseguiu forte a presença dos administrativistas franceses e dos civilistas alemães. A teologia católica e a metafísica idealista foram substituídas, como desejavam positivistas e evolucionistas, pela história e sociologia do direito na parte propedêutica do currículo e introduzida a legislação com- parada no direito positivo. E extinguiu-se a hegemonia das escolas paulista e pernambucana, com a criação de novas faculdades — o Rio de Janeiro, agora capital federal, passou a ter, de imediato, duas novas escolas de direito. Nada disso impediu que o traço bacharelesco de políticos e administradores permanecesse, tal qual no Império. A mudança da forma de governo não o afetou. 

Ao final da primeira década republicana, o direito e a justiça mostravam-se diferentes do que tinham sido em seu início, todavia não estruturalmente diversos. Afinal, a sociedade a que serviam mudara muito pouco em sua tessitura profunda.

3 Gustavo H.B. Franco

A aventura modernizadora 

A primeira década da República talvez tenha sido a mais intensa em matéria de reformas modernizadoras, ao experimentar um vendaval de destruição criadora que se explica, em alguma medida, pela apatia antimodernizadora dos anos anteriores. Não há nada de acidental no fato de o crescimento da renda per capita entre 1820 e 1900 mal ter atingido 5% em termos acumulados. Nesse período, a relação entre a renda per capita norte-americana e a brasileira triplicou, passando de 1,9% a 5,8%, um atraso jamais recuperado. 

A historiografia cultiva um olhar benigno sobre o Império, exaltando a estabilidade das instituições e, sobretudo, a preservação da unidade territorial, um contraste positivo considerando a vizinhança. Porém, é impossível dissociar o péssimo desempenho econômico do Império dessa equação política supostamente virtuosa, da qual faziam parte não apenas a escravidão — uma abominação que não precisava ter durado tanto tempo — como também os impedimentos à livre-iniciativa ricamente resenhados na agonia do Visconde de Mauá. Na verdade, foi o exato rompimento dessa equação que transformou a quartelada de 15 de novembro de 1889, um tanto inesperadamente, numa verdadeira revolução. 

A aventura modernizadora na economia começou em 17 de janeiro de 1890, quando a jovem República conheceu seu primeiro grande pacote econômico, pelas mãos de Rui Barbosa, o celebrado jurista e orador, alçado da propaganda republicana à pasta da Fazenda. O coração do pacote compreendeu uma reforma bancária e as leis de formação e incorporação de empresas, compondo um verdadeiro salto para a modernidade, simultaneamente ambicioso e irreversível. Em suas crônicas, Machado de Assis diversas vezes referiu-se àquela data como “o primeiro dia da Criação”. Na linguagem de nossos dias, seria nosso primeiro choque de capitalismo. 

A reação do mercado a tudo isso foi de absoluto deslumbramento: de pouco mais de 90 companhias listadas no início de 1888, a bolsa passou a cerca de 450 em meados de 1891. Ganhou renovado ímpeto a bolha especulativa que havia se iniciado com o programa reformista de “inutilização da República” do Visconde de Ouro Preto, o último chanceler do Império. A designação “Encilhamento” se referia ao momento em que os cavalos eram preparados para o páreo, e as armações entabuladas. Foi esse o título para o famoso roman à clef escrito originalmente sob o pseudônimo Heitor Malheiros, na forma de um folhetim a partir de fevereiro de 1893, pelo Visconde de Taunay, destacado monarquista que teve imensa e duradoura influência sobre a historiografia dessa década. 

Taunay retratou em cores espetaculares as operações mirabolantes na bolsa como representativas de uma nova ordem na qual, conforme descrição de José Murilo de Carvalho, a República teria trazido “uma vitória do espírito do capitalismo desacompanhado da ética protestante”. E mais: a ideia de que tudo não passava de uma bolha e que nenhum progresso real resultaria desse turbilhão financeiro servia para lançar dúvidas sobre todo o exercício a partir de 15 de novembro. 

Na verdade, em variados formatos, a década que se seguiu seria consumida com debates sobre a viabilidade e o legado das empresas aí surgidas, a reputação e o crédito de seus empreendedores e os custos para o Erário das “garantias de juros” (como eram conhecidos os subsídios) e das facilitações monetárias. Melhor resumo não há dessas inesgotáveis polêmicas que o oferecido por Machado de Assis em Esaú e Jacó, através da rivalidade entre os gêmeos Pedro, o médico monarquista, e Paulo, o advogado republicano, ambos interessados em Flora, a filha de um político. 

No final do superlativo ano de 1890, contudo, uma tempestade perfeita parecia se formar. Dificuldades na Argentina repercutiram seriamente na saúde do banco Barings Brothers, em Londres, deflagrando uma das primeiras e mais interessantes crises financeiras de características globais da era moderna. O Brasil vinha recebendo grandes volumes de capital estrangeiro e de emigração, à semelhança dos chamados países de assentamento recente. Mas, ao longo de 1891, a liquidez internacional desapareceu, o câmbio depreciou de forma acentuada e se instalou mais uma polêmica insolúvel, até hoje viva na historiografia: se o câmbio desmoronou por conta de volúveis capitais estrangeiros que deixaram o país ou se em razão de excessos monetários. 

Entre 1889 e 1894, a oferta de moeda cresceu 3,5 vezes e a inflação, que pode ter alcançado 20% ao ano, emergiu como uma das mais nefastas inovações trazidas pela República. A euforia do Encilhamento converteu-se em pânico e rapidamente em dificuldades nos balanços dos maiores bancos. Por isso ganharam prioridade na agenda do novo ministro da Fazenda de Floriano Peixoto, Rodrigues Alves. Ele foi o primeiro a propor, no começo de 1892, um esquema de clara coloração deflacionista de “encampação” do papel-moeda bancário, reestruturação e provável estatização dos bancos emissores. A jovem República, depois de uma bolha seguida de maxidesvalorização cambial, estava no limiar de uma séria crise bancária antes mesmo de completar seu terceiro ano. 

A guinada ortodoxa foi evitada, ao menos nesse momento, com a substituição de Rodrigues Alves na Fazenda por Serzedelo Correia, que procurou no Parlamento um compromisso engenhoso entre metalistas (os ortodoxos da época) e papelistas (os precursores dos desenvolvimentistas), através da fusão dos bancos emissores em dificuldade. Formou-se, então, o Banco da República do Brasil (BRB), um gigante construído para caber na noção de “grande demais para quebrar”. Com isso ficavam mais evidentes a justificativa e a urgência para o uso de recursos públicos com a finalidade de auxiliar a resolução do problema. 

Houve resistências especialmente fortes, pois eram divergentes e envie- sadas as percepções sobre os progressos realizados durante o Encilhamento, conforme aferidos pela qualidade dos ativos do novo banco. Lideranças industrialistas aplaudiram a iniciativa de Serzedelo e seu programa de “auxílios à indústria”, mas, em oposição, dizia-se que a fusão tratava de prolongar a sobre-vida de dois bancos que, como depois diria Joaquim Murtinho, concentravam em suas carteiras “todas as loucuras da bolsa”. 

Logo adiante, todavia, em fins de 1894, com Prudente de Moraes já na Presidência da República e numa economia em má situação, Rodrigues Alves retornaria à Fazenda, agora com o mandato pleno para arrumar a casa. Para tanto, o ministro foi buscar recursos no exterior, iniciou uma espécie de encontro de contas entre o Tesouro e o BRB e passou no Congresso o seu plano de saneamento bancário, que se transformaria em lei em dezembro de 1896. 

A essa altura, o papel-moeda em circulação totalizava impressionantes 712 mil contos, valor cerca de 40% superior ao observado em novembro de 1891, fazendo supor que crescia com a crise. Parecia particularmente próprio de se observar que a expansão monetária acomodava, como hoje se diz, uma pletora de tensões decorrentes de inovações deflagradas pela Abolição e pela República. Entre elas, a mais prosaica era a campanha de Canudos, uma desafortunada — e, para o governo, custosa — demonstração da resistência às reformas, imortalizada pelas narrativas de Euclides da Cunha e Mario Vargas Llosa. “As revoluções trazem sempre despesas”, nos diz Machado de Assis. 

Em 1898, Rodrigues Alves já havia sido substituído por Bernardino de Campos, que negociou os detalhes de um esquema mais ambicioso de refinanciamento de obrigações externas, o famoso funding loan, operação que consistia na emissão de até £10 milhões em novos títulos para reescalonar pagamentos, no contexto de um severo programa de ajuste fiscal. Em seguida,  o esquema seria complementado por outra operação, de £16,6 milhões, destinada a refinanciar os passivos decorrentes de garantias de juros dadas às estradas de ferro. 

Enquanto isso, mais para o Sul, o excesso de crescimento no plantio do café, aparentemente provocado pela depreciação cambial, expandia em demasia a oferta e fazia cair os preços, depreciando ainda mais o câmbio e fazendo crescer a inflação. A produção de café em São Paulo tinha aumentado de uma média de cerca de 2,8 milhões de sacas entre 1890 e 1896 para 6 milhões entre 1897 e 1900, deixando evidente que havia um desequilíbrio estrutural no mercado, com uma tendência à superprodução, apenas agravada pela depreciação progressiva do mil-réis. Entretanto, uma solução definitiva para a estabilidade do setor cafeeiro e sua conciliação com a adesão ao padrão-ouro estaria ainda alguns anos à frente. 

O ministro Joaquim Murtinho, médico de formação e cujos detratores acusavam de darwinismo econômico, foi o personagem que encerrou os trabalhos dessa década tumultuada. A raiz do problema, de acordo com trechos icônicos de seus relatórios na Fazenda, tinha a ver com o “excesso de emissões”, que teria levado a “uma pseudoabundância de capitais” e, como resultado, o “estabelecimento de indústrias artificiais e a organização agrícola para a produção exagerada de café”. Tratava-se de deixar perecer essas indústrias e de operar uma redução na produção cafeeira, de modo a promover “a concorrência entre os diversos lavradores, produzindo por meio de liquidações a seleção natural, manifestada pelo desaparecimento dos inferiores e pela permanência dos superiores”. Na mesma linha, em 12 de setembro de 1900, concluindo uma longa agonia, o BRB se viu obrigado a submeter-se a um regime de liquidação extrajudicial, conforme determinações de uma nova lei aprovada com esse propósito. 

A década terminava com demonstrações impressionantes de conserva- dorismo monetário, até mesmo com a incineração de papel-moeda, um desfazimento simbólico do que se passara em 1890. Inclusive através da mal disfarçada esperança de que fosse possível recuperar a paridade cambial de 1846, remediando os exageros de Rui Barbosa e as omissões da Monarquia em disciplinar o câmbio e a moeda. Restou claro que os ganhos em termos de revalorização da moeda nacional foram decepcionantes relativamente aos estragos e às polêmicas que Murtinho deixara para trás. A década, que se iniciara com uma espécie de embriaguez de reformas — e com a introdução do binômio “ordem e progresso” na bandeira nacional —, findava com perplexidade diante das contradições práticas entre esses dois desideratos. 


130 Anos Em Busca da República, vários autores, Editora Intriseca, 256 páginas, R$ 59,90