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Matérias / Escravidão

A jornalista que resgatou o passado de sua família — e revelou detalhes sobre o comércio de escravizados

A portuguesa Catarina Demony reuniu suas descobertas em um novo documentário

por Giovanna Gomes

ggomes@caras.com.br

Publicado em 15/04/2023, às 13h00

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Navio negreiro por Rugendas - Wikimedia Commons/Johann Moritz Rugendas
Navio negreiro por Rugendas - Wikimedia Commons/Johann Moritz Rugendas

Quando tinha 18 anos de idade, a jornalista da agência Reuters, Catarina Demony, descobriu que sua família tinha um passado sombrio.

Foi numa conversa com a avó, Lourdes, que ela soube com certeza que os Matoso de Andrade e Câmara estiveram envolvidos ativamente com o comércio de pessoas escravizadas. Porém, foi somente vários anos mais tarde, já em 2018, que ela resolveu investigar a fundo a história de seus antepassados.

Tudo começou no século 18, quando o português e então soldado Manuel desembarcou em Angola, onde, àquela altura, o tráfico de pessoas já era um negócio altamente lucrativo. E, claro, não demorou muito para que a família de Catarina também se envolvesse no comércio, de modo que, em pouco tempo, enriqueceu e ganhou grande prestígio político.

As rotas dos navios negreiros que eu encontrei tinham como destino, em grande maioria, Pernambuco, porta de entrada para os negócios dos meus antepassados", disse ela, conforme informações do jornal Diário de Pernambuco.

Falta de documentos

No entanto, apesar do enorme prestígio social dos antepassados de Demony, ela revelou que não havia praticamente nenhum registro nas documentações da época acerca do envolvimento de seus antepassados com o comércio de escravizados.

A jornalista Catarina Demony / Crédito: Divulgação / vídeo / RTP

Foi uma das coisas que mais me impressionaram, pois eram pessoas com poder em Angola, em Luanda (hoje capital do país), que trabalhavam na Câmara, no Senado. Nada as ligava ao tráfico negreiro, a única coisa que destacavam eram esses cargos", disse ela.

"Fiquei chocada, pois essa realidade me comprovou que houve realmente uma tentativa, por se tratar de casos sensíveis em Portugal, de eliminar a história, de não querer que ela fosse contada", ressalta a profissional, que reuniu todas as pesquisas e entrevistas em um documentário, intitulado "Debaixo do tapete", que foi lançado no final de março, em Portugal.

Investigando o passado

"Comecei, então, a pesquisar e descobri que meus antepassados, que já haviam sido investigados por historiadores brasileiros, não eram simplesmente pequenos comerciantes de escravizados, mas grandes traficantes de pessoas", acrescenta.

Inspeção e venda de uma pessoa escravizada / Crédito: Wikimedia Commons / Brantz Mayer

A jornalista possui dados que revelam que inúmeras pessoas que eram embarcadas em navios negreiros chegavam ao Brasil ou morriam durante a travessia. Ela enfatiza que o tráfico transatlântico de escravos foi um enorme empreendimento criminoso ocorrido há 200 anos, cujas consequências ainda afetam gravemente a sociedade atual.

A decisão de Catarina de expor a história de seus antepassados, porém, não foi apoiada por toda a sua família, gerando uma clara divisão entre os membros. Alguns, a apoiaram desde o início, como sua avó Lourdes, que a motivou a continuar suas pesquisas e até mesmo aceitou participar do documentário, concedendo entrevistas. Já outros se mostraram reticentes, pois não queriam ser associados a um passado vergonhoso.

Depoimentos

O depoimento da avó Lourdes revelou que a fazenda da família Matoso de Andrade e Câmara, onde hoje está localizado o Museu Nacional da Escravatura em Luanda, possuía uma capela onde os escravos eram batizados antes de serem enviados para as Américas e Europa. Catarina também menciona que sua bisavó Maria Clementina, que completou 100 anos e aparece no documentário, é a pessoa mais velha ligada aos fatos.

A jornalista observa fotografias junto a familiares / Crédito: Divulgação / vídeo / 

De acordo com a fonte, através de conversas e leituras, a jornalista percebeu o mal que seus antepassados e os de tantas outras pessoas fizeram, e também notou a importância de mostrar a realidade e debater a questão, já que a sociedade portuguesa ainda carrega muito do passado colonialista que se manifesta em racismo.

"Não era um assunto que estivesse presente na minha vida familiar. Mas vou ser sincera, quando ouvi a informação da minha avó por parte de mãe, não foi algo que me chocou, uma vez que eu já havia pensado naquilo antes. Questionava algumas coisas, como, por exemplo, por que a minha família tinha uma vida tão abastada em Angola? De onde tinha vindo o dinheiro da família? Eram indagações que eu me fazia durante a minha adolescência, na minha cabeça", diz.

Reações

Catarina está ciente de que sua iniciativa de expor essa parte da história pode gerar reações negativas, já que Portugal tende a esconder as feridas do passado colonial e a negar a relação direta entre esse passado e o racismo. Ela recebeu ataques de ódio nas redes sociais, principalmente de apoiadores da extrema-direita que negam a existência do racismo em Portugal.

No entanto, mesmo assim, ela espera contribuir para uma conversa necessária que "Portugal deve ter consigo mesmo e com sua história", já que, para ela, "isso será mais importante do que qualquer mensagem de ódio que venha a receber de fanáticos."