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Matérias / Luís XVI

A história irá absolvê-lo? Há 230 anos, o rei Luís XVI era guilhotinado

Luís XVI foi descrito pelos livros como um rei covarde, mas é difícil separar os fatos da propaganda criada

Carlo Cauti, arquivo Aventuras na História Publicado em 10/09/2021, às 07h00 - Atualizado em 20/01/2023, às 09h44

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Retrato de Luís XVI em 1775, da França - Domínio Público via Wikimedia Commons
Retrato de Luís XVI em 1775, da França - Domínio Público via Wikimedia Commons

A carruagem chegou às 10h15 aos pés da guilhotina erguida na Praça da Revolução, anteriormente Praça Luís XV, em frente ao pedestal do qual a estátua do tirano com esse nome havia sido derrubada. As estradas de acesso eram defendidas por inúmeras peças de artilharia.

Chegando a esse lugar, Luís Capeto foi entregue aos carrascos. Eles tomaram posse dele, cortaram-lhe os cabelos, tiraram-lhe as roupas e amarraram-lhe as mãos atrás das costas.

Então perguntaram-lhe três vezes seguidas se ele tinha algo a dizer ou declarar ao seu confessor. Como ele continuou a dizer não, o abade o abraçou e, deixando-o, disse-lhe: "Vá, filho de São Luís, o céu te espera".

Essa é a crônica que o Magicien Républicain, um jornal antimonarquista da época, fez da execução deLuís XVI, o último soberano francês do Ancient Régime,o Velho Regime, no dia 21 de janeiro de 1793. Que continua:

Prestes a ser guilhotinado / Crédito: Wikimedia Commons

"O rei conseguiu avançar para a borda do patíbulo mostrando o desejo de pronunciar um discurso aos cidadãos e esperando que suas palavras pudessem salvá-lo. Mas o comandante Santerre ordenou que os tambores rolassem e os carrascos cumprissem seu dever", diz a publicação.

A ordem foi executada imediatamente. Os carrascos o pegaram, o levaram à mesa fatal, e ele teve tempo de pronunciar alto e claro: ‘Morro inocente dos crimes dos quais sou acusado. Perdoo os que me matam. Que meu sangue nunca caia sobre a França!’. A lâmina vingadora correu pela cabeça culpada. Removendo-a”, finaliza. 

Causas

A morte de Luís XVI foi o ápice da Revolução Francesa, desencadeada por enormes problemas econômicos e políticos, além do grave conflito social que abalava a França no final do século 18. Luís XVI e a família real foram considerados como os principais responsáveis por essa situação e por isso terminaram destronados, processados e quase todos guilhotinados.

É o velho mas verdadeiro clichê sobre quem escreve a História: a tradição da França republicana acatou a visão dos vencedores — os revolucionários —, do rei como o principal culpado pelos males que desencadearam a Revolução. Ele passou a ser lembrado como fraco, corrupto, indeciso e inepto.

“Esses estereótipos se encontram nas pilhas de manuais escolares que os professores universitários não quiseram se esforçar em revisar, se mantendo próximos à descrição tradicional do rei”, afirma o historiador francês Jean-Christian Petitfils, autor da obra monumental Louis XVI.

“A educação do rei não deixava nada a dever, assim como seu modo de trabalhar, suas leituras numerosas, sua vasta cultura, sua paixão para as ciências, sua ação no caso da guerra de 1792, que ele tentou desesperadamente evitar, contradizem a opinião consolidada e constantemente repetida.”

Uma herança: os EUA

O maior feito, e provavelmente o mais subestimado, de Luís XVI foi o decisivo apoio que ele deu aos colonos norte-americanos na Guerra de Independência dos Estados Unidos. Sem armas, uniformes, dinheiro, tropas e a frota da França, provavelmente jamais teriam conseguido expulsar os britânicos de suas terras.

Em 1778, Luís XVI não somente reconheceu os recém-independentes Estados Unidos, que naquele momento nada mais eram que um punhado de colônias rebeldes, mas assinou um tratado de aliança em caso de guerra com o Reino Unido.

Essa foi a base jurídica que permitiu a intervenção francesa na guerra de independência americana, onde, até 1782, inúmeros soldados e oficiais franceses lutaram ao lado dos norte-americanos. Entre eles, o famoso Marquês de La Fayette.

Esse apoio garantiu ao rei uma grande popularidade entre o povo francês, sempre muito sensível ao grandeurnacional.

“A vitória na América foi o primeiro triunfo da França em quase um século de humilhações bélicas e diplomáticas. Após as derrotas na Guerra de Sucessão Espanhola, na Guerra de Sucessão Austríaca e na Guerra dos Sete Anos, Luís XVI restaurou a honra internacional da França. Ele foi um rei vitorioso”, explicou para o site Aventuras na História, o especialista Pierre Serna, que é professor do Instituto de História da Revolução Francesa de Paris (IHRF).

O monarca / Crédito: Wikimedia Commons

No entanto, o esforço bélico interoceânico custou caro aos cofres públicos franceses, piorando uma situação fiscal já precária. Tanto que o rei foi obrigado a convocar os Estados-Gerais, órgão que não se reunia havia mais de 150 anos, para pedir um aumento dos impostos. Foi nessa ocasião que a falta de representatividade dos plebeus, pobres ou burgueses — o chamado Terceiro Estado —, levou aos protestos que desembocaram na Revolução Francesa.

Era uma revolução baseada nas ideias de liberdade, igualdade e representatividade (fraternidade, a julgar pela guilhotina, não era o ponto forte). Que haviam triunfado na América, inspirando os franceses a depor o mesmo Luís XVI que tanto tinha apoiado esses ideais do outro lado do Atlântico.

Conquanto a imagem do rei e, em particular, de sua mulher, Maria Antonieta, pudesse parecer elitista e repleta de desprezo para as classes mais pobres, ele foi o soberano que aboliu a servidão, uma herança da época feudal. Até aquele momento os servos tinham um status social pouco diferente dos escravos.

Eles eram o mais baixo nível da sociedade francesa, não tinham liberdade de movimento e, mesmo tendo o direito de possuir bens, quando a terra onde trabalhavam era vendida, eles eram vendidos junto com ela.

Sensível à forte oposição dos intelectuais da época — e em particular do escritor Voltaire —, que achavam a servidão desumana, em 1779, Luís XVI a aboliu em todas as terras sob o controle real na esperança de que isso encorajasse outros proprietários a fazer o mesmo. Mas os nobres e os grandes latifundiários franceses não seguiram o exemplo do soberano, pois queriam manter a vantagem da mão de obra barata.

No final, o regime como um todo foi visto como culpado, e o rei era sua encarnação. A servidão foi totalmente abolida na França em 4 de agosto de 1789, no começo da Revolução, pela Assembleia Nacional Constituinte, quando os privilégios feudais da nobreza foram declarados extintos.

Pela ciência

Luís XVI também desempenhou um papel importante no apoio às explorações geográficas francesas no final do século 18. Insatisfeito com a falta de conhecimento da França no hemisfério sul do planeta, em 1785 ele decidiu enviar numa expedição ao redor do mundo dois navios da Marinha Real: La Boussole e L’Astrolabe.

O rei foi diretamente envolvido com a preparação da viagem, escolhendo pessoalmente o capitão, a tripulação e definindo seus objetivos: a criação de novos entrepostos comerciais, encontro de novos povos e mapeamento do mundo. A viagem chegou a um final trágico em 1788, quando os navios afundaram na Austrália, matando todas as 227 pessoas a bordo. Mas fez achados importantíssimos.

Em uma Europa com níveis de alfabetização muito baixos, Luís XVI foi um exemplo de intelectualismo, o qual tentou transmitir para sua família e para o resto do povo francês. O rei reuniu uma das mais impressionantes bibliotecas privadas da época, com mais de 8 mil livros.

Fluente em inglês e italiano, ele era muito bom em latim, astronomia, história e geografia. Fundou uma escola de medicina em Paris em 1774, a Academia e Escola de Cirurgia, hoje a Université Paris Descartes.

O soberano dando instruções / Crédito: Wikimedia Commons

O soberano era também um patrono das artes, comissionando obras para artistas do calibre de Jacques-Louis David e apoiando poetas, mesmo que estrangeiros, como o norte americano Joel Barlow, que graças ao apoio do rei francês conseguiu escrever The Columbiad.

Luís XVI também mostrou tolerância religiosa. Em um momento histórico em que a Igreja Católica era uma das instituições mais ricas e poderosas da França, o soberano a desafiou abertamente reconhecendo legalmente as religiões não católicas, como o judaísmo e o protestantismo huguenote.

O Édito de Tolerância, (ou de Versalhes), assinado pelo rei em 1787, deu aos não católicos o direito a um estado civil, a registrar casamentos, nascimentos, óbitos e propriedades próprias.

“A plenitude dos direitos para os não católicos chegou somente com o Código de Napoleão em 1804, mas o Édito da Tolerância de Luís XVI foi um enorme passo adiante”, afirma Serna.

O rei também aboliu o uso da tortura para obter confissões nos tribunais franceses. Por mais de 600 anos essa era a ferramenta-padrão usada para obter confissões, mesmo que sua falta de confiabilidade já tivesse sido notada. Em 1780, Luís XVI proibiu um tipo de tortura conhecido como pergunta preparatória, e em 1788, qualquer tortura.

E também deu um passo na direção da abolição da pena de morte. Em 1775, ele evitou que os desertores do Exército fossem executados. Em 1791, os revolucionários cogitaram abolir a pena de morte. Só pelo final desta própria história, não é nem preciso dizer qual foi sua decisão.

O homem errado na hora errada

É também necessário salientar como Luís XVI foi um rei particularmente azarado. O soberano chegou ao trono francês em uma conjuntura econômica, política e até climática completamente desfavorável. Foi um verdadeiro milagre ele ter conseguido se manter no trono desde 1774.

Em primeiro lugar, Luís não tinha que virar rei. Ele era apenas o segundo filho homem do delfim da França, como se chamavam os herdeiros do trono francês. Havia dois outros na fila diante dele para se tornarem reis depois de seu avô Luís XV: seu pai e seu irmão mais velho. Ambos acabaram morrendo quando Luís era uma criança, transformando- o automaticamente em herdeiro do trono, que ele assumiu aos 19 anos, em maio de 1774.

Luís XVI se tornou rei muito jovem e mal preparado, pois não era o herdeiro designado. Foi um acaso histórico a coroa ter chegado à cabeça dele”, explica o professor Serna.

Em segundo lugar, o clima político na França estava maduro havia décadas para uma Revolução, e ninguém poderia ter mudado esse aspecto. As desastrosas derrotas da França em guerras de décadas antes, as de Sucessão Espanhola (1701-1714), de Sucessão Austríaca (1740-1748) e dos Sete Anos (1756-1763), tinham deixado uma enorme dívida pública para a França. E, no topo de tudo isso, ainda teve o vulcão.

A enorme erupção do Laki, no sul da Islândia, que durou oito meses entre 1783 e 1784, vomitou na atmosfera uma enorme quantidade de lava e gases venenosos que devastou a agricultura de grande parte do Hemisfério Norte, inclusive na França. Não por acaso as crônicas da época lembram que o estopim que levou à Revolução Francesa começou com uma grave escassez de pão em Paris.

E, em última análise, os ideais do Iluminismo começaram a realmente se firmar somente nesse momento histórico, gerando um pensamento revolucionário nas massas. Juntando todos esses pontos, talvez Luís XVI tenha sido o rei francês mais desafortunado da História.

O rei era ciente da situação de seu reino e até tentou mudar as coisas”, conta Serna. O primeiro ato de seu governo foi justamente tentar botar ordem no caos das finanças estatais francesas.

Sem aumentar os impostos, mas apenas cortando gastos, ele conseguiu reduzir o gigantesco déficit público, tanto que chegou a negociar um empréstimo com juros de apenas 4%. Luís não gostava da pompa e desejava que o serviço em sua corte fosse reduzido ao que era absolutamente necessário.

Guerrílha política 

Cargos públicos foram abolidos; salários, cortados; e até os cavalos do estábulo real foram reduzidos. “Luís também tentou mudar o sistema fiscal francês, antigo e profundamente injusto, tentando acabar com os privilégios da nobreza e do clero”, explica o professor.

Na época as pessoas comuns suportavam um peso tributário enorme, enquanto a nobreza e o clero eram livres de qualquer responsabilidade. A primeira coisa que ele fez foi abolir um imposto: o chamado "droit de joyeux avènement", o direito de felizes eventos, que o povo tinha que pagar no momento da posse de cada novo soberano.

O rei cogitou substituir os impostos indiretos por um imposto sobre os imóveis, atingindo assim os mais ricos, e incentivando o consumo, liberalizando por decreto em 1774 o comércio de grãos. Isso foi louvado pelos iluministas, ganhou os aplausos da oposição popular, mas foi atacado por especuladores, entre os quais muitos aristocratas.

Além disso, ele eliminou as corveias, os 14 dias de trabalho forçado e não remunerado que os camponeses tinham que realizar. Luís XVI decidiu substituir esse costume anacrônico e brutal por um imposto sobre a terra, que irritou ainda mais a nobreza.

O soberano tentou de outras formas fazer a nobreza pagar mais impostos e o clero pagá-los pela primeira vez, para que o fardo fiscal não dependesse inteiramente dos mais pobres.

Entretanto, a nobreza se recusou a pagar mais, e começou uma virulenta guerrilha política que envolveu até seu primo, Luís Filipe, duque de Orléans — o mesmo que acabou votando a favor da condenação à morte de Luís XVI em 1793, mas que terminou também guilhotinado pelos revolucionários. A própria rainha se revoltou contra essas tentativas de seu marido, pois iriam prejudicar os privilégios de suas amigas nobres, como a duquesa de Polgnac ou a princesa de Lamballe.

A história irá absolvê-lo? 

“Apesar de sua monarquia ser tecnicamente absoluta, Luís XVI não mandava em um país unificado. Cada nobre mantinha uma certa independência e obstruiu de todas as formas as ações do soberano. Essa falta de colaboração impediu o rei de levar adiante as reformas fundamentais”, diz Serna. Os nobres também causaram muitos problemas na gestão dos primeiros momentos da Revolução, piorando ainda mais as coisas.

Por exemplo, os nobres deveriam enviar a maior parte do dinheiro dos impostos que coletavam de camponeses em suas terras ao rei, mas costumavam manter a maior parte do dinheiro de forma ilegal, mandando para Paris apenas um terço do devido.

Para completar, Luís teve o infortúnio de se casar com uma estrangeira, a austríaca Maria Antonieta. “Princesa de um império, a Áustria, contra o qual a França tinha entrado diversas vezes em guerra. Isso gerou uma verdadeira onda de xenofobia entre os franceses, que começaram a considerar Maria como fonte principal de seus problemas”, explica Serna.

A rainha recebeu o apelido de Madame Déficit, porque acreditava-se que suas despesas excêntricas (muitas vezes meros boatos, como o revestimento dos corredores de Versalhes com diamantes e ouro) destruiriam os cofres do reino. Provavelmente remonta a esses anos a frase mais famosa de Maria Antonieta, totalmente apócrifa: “Se não têm pão, que comam brioches”. Um caso de fake news que custaria a cabeça não só dela.

Maria Antonieta / Crédito: Wikimedia Commons

Em suma, Luís XVI provavelmente chegou no lugar histórico errado na hora histórica errada, e logo se viu atropelado por uma situação que ia além de seu controle. “Ele acabou pagando as consequências de uma política externa desastrosa de Luís XV e da opulência de Luís XIV”, explica o professor Serna.

E, a partir daquele momento, as coisas pioraram. A economia começou a ir por água abaixo (o desemprego em Paris em 1788 era estimado em 50%), as colheitas se tornaram umas piores do que as outras, o preço do pão e de outros alimentos subiu. Foi o início da Revolução.

“Entretanto, hoje é necessário superar a historiografia revolucionária que pintou Luís XVI dessa forma terrível. No final das contas o rei se comportou como um servidor público de seu país, mesmo que esse termo tenha sido inventado após a Revolução. O soberano era filho de seu tempo, com todos os limites que isso implicava. E provavelmente a falta de autoridade em impor as reformas de que a França muito necessitava levou à Revolução Francesa”, diz Serna.

Luís XVI morreu guilhotinado no centro da atual Place de la Concorde. Sua morte foi o primeiro ato daquela orgia de violência desenfreada que irrompeu entre 1793 e 1794, conhecida como O Terror, e da qual o soberano foi a primeira vítima.


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