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Matérias / Anne Frank

Nelly Voskuijl: o passado da mulher que pode ter traído Anne Frank

Enquanto Bep Voskuijl se tornou melhor amiga de Anne Frank e a protegeu no Anexo Secreto; Nelly, sua irmã, se envolveu com os nazistas

Fabio Previdelli

por Fabio Previdelli

fprevidelli_colab@caras.com.br

Publicado em 04/07/2024, às 18h00 - Atualizado em 05/07/2024, às 19h13

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Fotos de Nelly Voskuijl e Anne Frank - Stadsarchief Amsterdam e Fundação Anne Frank
Fotos de Nelly Voskuijl e Anne Frank - Stadsarchief Amsterdam e Fundação Anne Frank

Em 2009, um menino belga da Antuérpia, chamado Jeroen De Bruyn, que tinha apenas 15 anos, enviou uma carta para Joop van Wijk-Voskuijl. Ficou comovido ao ler 'O Diário de Anne Frank' e contactou Joop para saber mais sobre a história de sua mãe, Bep Voskuijl, que foi confidente e melhor amiga de Anne Frank em seus tempos de Anexo Secreto

Três décadas depois da morte de Bep (1919 —1983) a conversa casual com um adolescente curioso sobre a história por trás de todos os envolvidos com uma das vítimas que se tornou símbolo das barbaridades do Holocausto, virou um livro que resgata a memória da família Voskuijl

+ A história esquecida de Bep Voskuijl, confidente de Anne Frank;

Mostrando não apenas a importância de Bep e seu pai Johan em esconder os Frank, mas também apontando que Nelly Voskuijl, irmã de Bep, pode ter sido a responsável por traí-los e denunciar o esconderijo

Durante nossa pesquisa, Joop e eu encontramos vários fatos que nos levaram a acreditar que Nelly poderia ter sido a traidora", explica Jeroen em entrevista exclusiva à equipe do site do Aventuras na História. 

Nelly Voskuijl

No recém-lançado no Brasil "O último segredo de Anne Frank: A história não contada de Anne Frank, de sua protetora silenciosa e de uma traição familiar" (Ed. Planeta), De Bruyn e Joop, além de reconstruírem o passado de Bep ao lado de Anne, também mostram evidências que podem revelar, como o próprio livro classifica, "uma verdade vergonhosa".

Jeroen conta que, antes de mais nada, é importante deixar claro que Nelly trabalhou para os nazistas durante a guerra. "Em Amsterdã, como Funkmädel (que em alemão significa 'moça do rádio'): eram mulheres holandesas que serviam como operadoras de telefone, datilógrafas ou operadoras de projeção para defesa antiaérea". 

Ela também trabalhou no Norte da França, atuando como assistente principal do comandante da força aérea no aeródromo militar alemão de Laon. "Ela frequentava centros de recreação em Amsterdã conhecidos por 'Wein, Weib und Gesang' ['vinho, mulheres e música']), onde oficiais da Wehrmacht podiam relaxar e conhecer uma simpática moça holandesa". 

Ela era antissemita e suspeitava que seu pai e sua irmã estivessem escondendo judeus. 'Então vá para seus judeus!', ela gritou com eles durante uma briga", aponta.

O episódio foi confirmado tanto por Bertus Hulsman, que foi noivo de Bep durante a guerra, quanto pela irmã delas, Diny Voskuijl. 

Outro ponto que culminou com a prisão dos Frank em 4 de agosto de 1944, é que uma pessoa ligou para o Sicherheitsdienst (Serviço de Segurança) informando sobre os judeus no Anexo Secreto. Assim, quase que imediatamente, os nazistas enviaram alguns de seus homens para o endereço na Prinsengracht. 

"Após a guerra, Willy Lages, o chefe do Sicherheitsdienst em Amsterdã, disse que os alemães agirem imediatamente com base em uma dica sobre judeus escondidos parecia muito ilógico. 'A menos', ele disse, 'que a dica tenha vindo de um informante bem conhecido por nosso serviço'. Nelly tinha muitas conexões com os alemães, como descobrimos. Ela até tinha relacionamentos com soldados alemães", esclarece De Bruyn.

Esconderijo de Anne Frank / Crédito: Divulgação / Anne Frank Stichting Fundation

Nos anos 1960, Bep Voskuijl também confessou para sua irmã, Diny, que suspeitava que Nelly era a traidora. O autor aponta que até mesmo Otto Frank tinhal tal suspeita, "mas não queria mais saber disso".

Joop e eu acreditamos que nunca saberemos com certeza quem traiu o Anexo Secreto. Mas os fatos que encontramos falam por si mesmos: na nossa opinião, Nelly pode ser considerada uma séria suspeita de traição", afirma.

Traidora na família?

Bep Voskuijl se envolveu com a família Frank quando tinha apenas 18 anos, quando foi contratada para trabalhar para a empresa de especiarias e geleias de propriedade de Otto

Em cerca de cinco anos, ela estava comprando alimentos ilegalmente para ajudar seus amigos judeus escondidos. Além disso, também cedeu seu nome para que as irmãs Frank fizessem curso por correspondência — como os judeus foram impedidos de estudar, Otto pagava pelo ensino, mas toda a papelada era feita no nome de Bep

No entanto, a relação entre as famílias, que parecia de cumplicidade entre Bep e Johan com os Frank, com o tempo demonstrou parecer algo muito mais complexo e que envolvia cicatrizes esquecidas do passado. 

Na primeira parte de nossa pesquisa (de 2009 até o final de 2010), eu realmente acreditava que Nelly, minha tia (nascida em 1923), apenas havia se apaixonado por um soldado alemão", esclarece Joop ao site Aventuras na História. 

Como narra em seu livro, "sempre soube que Nelly, como muitos outros holandeses, simpatizava com os invasores. Contudo, comparado aos delitos da média dos colaboradores, sua história — repetida por vários membros da minha família ao longo dos anos — sempre me pareceu compreensível. Seu erro poderia ter sido cometido por qualquer jovem durante a guerra, pelo qual ela pagou um preço bem alto".  

Otto Frank ao lado de Bep Voskuijl - Domínio Público

Contudo, tudo mudou em março de 2010, quando Joop e Jeroen faziam uma busca no site do NIOD (Instituto de Estudos sobre a Guerra, Holocausto e o Genocídio), onde é possível acessar todas as páginas reminiscentes de todas as versões conhecidas do diário de Anne — o que inclui, até mesmo, páginas marcadas como 'confidenciais' (muitas delas por razões de privacidade). 

Acontece que naquela dia, o Instituto NIOD havia publicado, acidentalmente, um arquivo confidencial com um documento sobre a colaboração de Nelly com os nazistas, fato descrito no livro e recordado por Joop na entrevista:

"Não consigo expressar o choque que senti enquanto lia aquele retrato sinistro de Nelly descrito pelas palavras de Anne, um retrato que foi escondido de mim e do resto do mundo por cerca de sessenta anos. Fiquei temeroso e incerto sobre o que fazer, sobre o significado daquilo para o livro em que estávamos trabalhando. Por um tempo considerei abandonar totalmente o projeto. Eu e Jeroen queríamos contar a história da minha família, explicar o que os Voskuijls haviam feito de bom; mas agora me via diante de informações que complicavam as coisas, para dizer o mínimo".

Embora ressalte que não tem o direito de julgar todas os 32 suspeitos de traição de Anne Frank, Joop aponta que muitos historiadores holandeses concordam com as fontes que eles usaram na pesquisa e no livro para tornar plausível que Nelly seja uma das “suspeitas mais sérias dessa traição”. 

Jeroen e eu conseguimos conversar pessoalmente com dois testemunhos autênticos: Diny Voskuijl, minha tia, e Bertus Hulsman, o noivo da minha mãe durante a guerra. Ambos estão convencidos de que Nelly foi a traidora", aponta.

"Além disso, durante minha juventude, tive também contato pessoal com Otto Frank, Miep e Jan Gies, e é claro que tive um relacionamento confidencial com minha mãe. Por último, mas não menos importante, tive entre 1996 e 1998 contato pessoal com minha tia Nelly. No entanto, isso não é uma prova de que Nelly tenha feito isso, mas o suspense, todas as nossas pistas e as muitas mentiras em torno deste 'caso de traição de Nelly', que publicamos após 12 anos de pesquisa, foram mais do que suficientes para concluir que Nellyé pelo menos uma séria suspeita", diz. 

Aos olhos de Anne

Em 'O Último Segredo de Anne Frank', Joop narra que Nelly nunca foi a favorita da família e foi vista como uma figura polêmica até o dia de sua morte, em 2001. "Mas minha mãe a apoiou e tentou minimizar seus conflitos com os outros membros da família".

Estou convencido de que muitos membros da minha família sabiam detalhes da colaboração da minha tia com os nazistas, mas tinham um acordo para não falar sobre o passado de guerra de Nelly", especula Voskuijl.

O sobrinho de Nelly escreveu que a mulher sempre foi tratada como a ovelha negra da família e levantou alguns questionamentos sobre o comportamento de seus familiares em relação à ela: "por que minha minha avó Christina nunca ficava ao lado de Nelly em eventos familiares, por que minha mãe ficava de repente ficava corada na sua presença, por que meu pai amaldiçoou a cunhada até o dia de sua morte. Sempre achei essa atitude ridícula, estranha, até mesmo cruel. Sim, às vezes Nelly podia ser grosseira e sarcástica. Mas merecia ser chamada de 'puta nojenta', como meu pai às vezes a chamava em voz baixa?"

Nelly Voskuijl também se tornou um personagem no Diário de Anne Frank, com a garota judia escrevendo algumas passagens sobre ela, como: 'Nelly Voskuyl está em L'aône [sic] na França. Houve bombardeios terríveis, e ela quer voltar para casa a qualquer preço'.

Páginas do diário de Anne Frank / Crédito: Getty Images

Joop conta que Nelly, muito provavelmente, trabalhou em L'aône - Athies ou L'aône - Couvron, dois aeródromos ao norte da cidade de onde os bombardeiros Junkers Ju-88A alemães lançavam ataques na costa do Canal da Mancha. 

"Na primavera de 1944, as bases aéreas foram repetidamente atacadas por aeronaves aliadas, incluindo em 5 de maio, quando foram alvo dos B-17 Flying Fortresses da Oitava Força Aérea dos Estados Unidos", recorda.

Anne escreveu que durante esse período Nelly 'não fez nada além de ficar em um abrigo antiaéreo' e que ela estava 'terrivelmente assustada'.

'Ela ligou para um de seus muitos amigos, um aviador de Eindhoven, no meio da noite e implorou por ajuda. A doença de seu pai teria sido um bom motivo para ela obter licença, mas só quando o pobre homem morrer ela será autorizada a vir. Nelly está profundamente preocupada com seu comportamento passado e pediu perdão em suas cartas.'

Anne ainda escreveu que Nelly e pessoas como ela, que trabalhavam para os nazistas, 'serão punidas após a guerra por traição', algo que ela ouviu em relatos de rádio clandestinos.

A posição de Otto Frank

Quando a Segunda Guerra terminou, o caçador de nazistas Simon Wiesenthal localizou, em Viena, na Áustria, Karl Silberbauer — o capitão que havia prendido os Frank no Anexo Secreto. 

+ O que aconteceu com o oficial que prendeu Anne Frank no Anexo Secreto?

Conforme explica Jeoren, Silberbauer chegou a confidenciar para Cor Suijk, um dos guardiões do Anexo e amigo de Otto Frank, que lhe haviam dito que a pessoa que traiu os Frank tinha "a voz de uma jovem mulher". 

"Tanto Otto quanto sua segunda esposa, Fritzi, mais tarde confessaram em entrevistas que acreditavam que isso era verdade. Pouco depois da guerra, Otto estava ansioso para encontrar a pessoa que havia traído sua família. Mas, em entrevistas posteriores à guerra, ele disse que não estava mais interessado em descobrir essa pessoa", lembra o pesquisador.

De Bruyn recorda que ele e Jopp conversam com Diny Voskuijl e ela lhes confessou que Otto Frank também suspeitava de que Nelly poderia ser a traidora: "Isso foi no início da década de 1960. Mas, disse Bep a Diny, 'Otto não quer mais saber disso'".

Se isso for verdade, escrevemos em nosso livro, isso explicaria a falta de vontade de Otto de buscar a identidade da traidora. Talvez ele soubesse que, ao fazer isso, estaria expondo Bep e sua família a um severo escrutínio público, enquanto manchava a reputação dos dedicados ajudantes do Anexo", aponta.

Por fim, Joop Voskuijl conta como foi revisitar, depois de tanto tempo e de forma tão íntima, o passado de sua família. "Claro, percebi durante a escrita sobre minha família que tinha que lidar com uma cicatriz, e talvez outras cicatrizes desconhecidas que ainda não haviam cicatrizado".

Entretanto, o filho de Bep, a melhor amiga de Anne Frank, que durante anos optou por não falar sobre sua relação com a menina judia, entende que o mais importante de seu trabalho de pesquisa ao lado de Jeroen é "contar a verdade historicamente desconhecida sobre as vidas de minha mãe e meu avô — cheias de humanidade compartilhada".

"Respondendo diretamente à sua pergunta e colocando em palavras o principal objetivo de nosso último livro: sim, foi difícil olhar para essas cicatrizes pessoais e familiares, mas isso foi superado pela mensagem de contar o que realmente é lealdade; contar como o trauma histórico é herdado de uma geração para a próxima", finaliza.