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Soldados voluntários versus conscritos

Soldados voluntários têm moral mais elevado que os recrutados à força. Mas o exemplo britânico mostra que, sem treinamento adequado, ambos estão fadados ao fracasso

Ricardo Bonalume Neto Publicado em 01/09/2007, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

Diz uma piada antiga que o maior “projétil” lançado pela Marinha Real britânica era o Exército. Durante a maior parte da história das ilhas britânicas a Marinha teve o papel de destaque na defesa do reino, enquanto o Exército produzia apenas pequenas forças expedicionárias, “disparadas” para ajudar aliados no continente, mas nunca em quantidades expressivas.

Isso mudou de modo dramático em 1916, com a ofensiva na região do rio Somme, o maior emprego de tropas britânicas até então, e resultou no maior número de mortos e feridos em um só dia em toda a história do Reino Unido. Em 1º de julho de 1916, dos 240 mil homens que cruzaram a linha de frente, 60 mil foram atingidos, dos quais mais de 20 mil morreram. Quilômetros de arame farpado, canhões de disparo rápido com munição auto-explosiva, metralhadoras atirando centenas de projéteis por minuto fizeram da infantaria alvo fácil. Como disse o historiador inglês John Keegan no livro The Face of Battle (A Face da Batalha), “a aparição da metralhadora nem tanto disciplinou o ato de matar – algo que o treinamento do século 17 já tinha feito –, como o industrializou”.

Industrialização

O metralhador operava do mesmo modo que um operário com uma prensa: alimentando sua “máquina” de matéria-prima, cuidando para que funcionasse sem falhas e operando de modo simples – apertando um botão. Keegan lembra que o teórico militar J.F.C. Fuller chamou a metralhadora de “essência concentrada de infantaria”. De fato, um soldado passou a ter o poder de fogo de 40; mas, ao contrário de 40 homens com fuzis dispersos pelo front, a metralhadora concentrou seu poder de fogo.

A industrialização do ato de matar coincidiu com exércitos de massa ainda maiores do que os da época napoleônica. O caso britânico é particularmente interessante. Outros países tinham serviço militar obrigatório em 1914, ou logo correram para adotá-lo. Mesmo em 1916, as tropas britânicas no Somme eram todas voluntárias. A distinção é importante, pois muitas vezes se confunde forças armadas “profissionais” com “voluntárias”. Não resta dúvida de que voluntários têm moral mais elevado do que os recrutados à força. Mas sem treinamento adequado, o resultado é o mesmo: fracasso na batalha.

A maior parte dos que atacaram no Somme eram “soldados-cidadãos”, civis que só conheciam da arte militar o ato de marchar e marchar mais. Pouco receberam de treinamento tático, como os franceses e alemães já começavam a fazer, por conta do grande número de baixas que sofreram antes. Os soldados-cidadãos foram, então, dizimados.

Outro ditado que surgiu sobre a qualidade do comando na Primeira Guerra dizia que os soldados britânicos eram “leões comandados por burros”. Em defesa dos generais deve-se dizer que mesmo Napoleão pouco poderia fazer, pois as condições tecnológicas tornavam difícil sair do atoleiro das trincheiras.

A guerra e sua voraz fome por soldados reacenderam em 1915-1916, no Brasil, a discussão sobre o serviço militar obrigatório, defendida pelo poeta Olavo Bilac (1865-1918). Foi lenta a sua adoção, e mesmo na Segunda Guerra o recrutamento ficou aquém do desejado – o Brasil enviou uma divisão de infantaria para a Europa, quando a intenção inicial era enviar três.

Mas se um exército voluntário pode não ser profissional, como mostra o Somme, um que é baseado em conscritos que servem por um ano nem tem como sê-lo. O “soldado profissional” é um que faz carreira de longa duração na Força Armada, é seu núcleo básico.

A Segunda Guerra foi lutada por civis armados, treinados pelos quadros regulares anteriores ao conflito. Os Estados Unidos também recrutaram “não-voluntários” na Guerra do Vietnã, o que aumentou seus problemas de moral e deserção. Desde então, as principais potências ocidentais reverteram para tropas menores, voluntárias e profissionais.

O profissionalismo permitiu vitórias decisivas, como a dos britânicos nas ilhas Falkland/Malvinas (1982), ou as duas derrotas do Iraque em combate convencional (1991 e 2003). Mas hoje as tropas anglo-americanas continuam no Iraque e no Afeganistão. E as duas têm dificuldade em recrutar voluntários. Cansados de operações constantes, os soldados profissionais dão baixa e obtêm cargos mais bem pagos na sociedade civil.

Ricardo Bonalume Neto, 47 anos, é repórter da Folha de S.Paulo especializado em ciência e assuntos militares. Cobriu conflitos em vários continentes e é autor de A Nossa Segunda Guerra – Os Brasileiros em Combate, 1942-1945.

 

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