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Matérias / Espiritismo

Revolução Francesa, Chico Xavier e filosofia: A história do espiritismo no Brasil

No século 19, a visão filosófica, religiosa e científica do francês Allan Kardec se transformaria em uma religião tipicamente brasileira, divulgada por intelectuais e doutores até ganhar as massas

Marcus Lopes Publicado em 03/02/2024, às 09h00

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Chico Xavier durante entrevista - Divulgação / YouTube / Vídeo
Chico Xavier durante entrevista - Divulgação / YouTube / Vídeo

Por volta das 20h30 de 17 de setembro de 1865, em Salvador, capital da Bahia, algumas pessoas reunidas pelo jornalista baiano Luiz Olímpio Teles de Menezes (1825-1893) deram início a uma reunião povoada de muitas discussões e reflexões sobre a vida pós-morte. Naquela mesma noite, o grupo, que também evocava algum tipo de comunicação com os mortos, recebeu uma carta mediúnica de um espírito que se apresentou como “Anjo de Deus”

O texto psicografado, recheado de mensagens de esperança e fé, sensibilizou os participantes naquela que é considerada a primeira sessão espírita e início oficial do espiritismo no Brasil. O encontro daquela noite na capital baiana também celebrou o começo das atividades do Grupo Familiar do Espiritismo, primeiro centro espírita brasileiro destinado à formação e disseminação da doutrina no país.

“O dia 17 de Setembro de 1865”, registrou Teles de Menezes, “marcará uma época feliz em nossa vida, e o deverá também ser nos fastos (anais) do Espiritismo no Brasil.” Professor, jornalista e funcionário público, Menezes era considerado uma pessoa de grande cultura e muito respeitado na sociedade soteropolitana, sendo um dos fundadores do Conservatório Dramático da Bahia, do qual eram integrantes personalidades como Rui Barbosa.

Fluente em várias línguas, como inglês, francês, castelhano e latim, Menezes era filiado a sociedades espíritas europeias e chegou a se corresponder com mestres como Allan Kardec, que menos de dez anos antes, em 1857, havia publicado na França o seu Livro dos Espíritos, obra que consolidou a doutrina na Europa e a irradiou para o mundo nos anos seguintes.

Fotografia de Allan Kardec / Crédito: Divulgação/ Pixabay 

O jornalista baiano também traduziu o primeiro livro espírita no Brasil, Filosofia Espiritualista, que vendeu mil exemplares em apenas um mês. “Cercado da nata da sociedade baiana, o grupo rapidamente passou a uma campanha de conquista de novos adeptos. As obras de Kardec eram discutidas com paixão. E Teles de Menezes enfrentou sem temor as iras e perseguições que, desde o início, atingiram a nova doutrina”, explica a escritora e historiadoraMary Del Priore, autora do livro Do Outro Lado (Editora Planeta), sobre o desenvolvimento e trajetória do espiritismo no Brasil e no mundo.

Em julho de 1869, Menezes fundou na capital baiana o jornal O Écho D’Além Tumulo. Além de porta-voz do espiritismo no Brasil e responsável por disseminação da doutrina, o veículo também era um meio de resposta aos ataques da Igreja Católica, incomodada com a rápida ascensão do espiritismo entre os brasileiros. Em 1867, uma Carta Pastoral assinada pelo arcebispo da Bahia, dom Manuel Joaquim da Silveira, condenava severamente a prática e as ideias sobre reencarnação e comunicação entre os vivos e os mortos. Em resposta aos ataques feitos pela mão pesada da Igreja, Teles de Menezes escreveu uma carta de 82 páginas ao bispo, em defesa das “doutrinas do espiritismo”.

Poucas diferenças 

O tom adotado por Menezes, porém, foi ameno e conciliador, destacando que ele próprio se assumia católico e que “o espiritismo e o catolicismo são a mesma Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, somente estão mudados os tempos e as palavras”. Além disso, para os fundadores, o espiritismo era uma ciência — daí o fato de se colocar desde o início como uma doutrina com caráter científico, religioso e filosófico — e que as divergências sobre purgatório e inferno eram apenas de localização: em algum lugar do além para os católicos e aqui na Terra para os espíritas.

É justamente a ausência desse embate religioso direto, como ocorre entre outras crenças, um dos motivos para a ascensão e aceitação do espiritismo na sociedade brasileira, a partir da segunda metade do século 19. A hostilidade católica foi vigorosa no começo, mas havia também aqueles que entendiam a proposta como ecletismo espiritual. Frequentavam-se as missas e procissões, assim como as lojas maçônicas, reuniões positivistas e mediúnicas, sem necessidade de renúncia da religião oficial.

“A adoção dessas teorias não implicava em rompimento com o catolicismo”, frisa Del Priore. O interesse em escrever um livro sobre o tema nasceu do contato com diversas entidades ligadas ao espiritismo. “Quando escrevi sobre a Família Imperial, era recorrentemente procurada por autoridades espíritas que perguntavam se eu ouvia as vozes dos membros da Família enquanto escrevia. Obviamente, expliquei que os livros eram apenas resultado de pesquisas históricas, mas o tema me cativou”, explica a historiadora, autora de mais de 50 livros e fonte para diversos acadêmicos. “Ao pesquisar o espiritismo, estudamos parte importante da história social do Brasil”, diz Mary.

Outro fator que contribuiu para o fortalecimento do espiritismo no país, sobretudo nas camadas mais altas da sociedade brasileira, era a prática comum da importação e disseminação das ideias, costumes e hábitos europeus, principalmente entre a segunda metade do século 19 e as primeiras décadas do século 20. Em especial, a influência da cultura francesa, em que o espiritismo se consolidou a partir dos estudos e da dedicação do pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail, que adotaria o pseudônimo de Allan Kardec.

“Os adeptos do espiritismo eram pessoas com bom nível cultural e social. Esse fator foi preponderante, pois eles seguiam as ideias difundidas por intelectuais franceses, como Victor Hugo”, explica Marta Antunes, vice-presidente da Federação Espírita Brasileira (FEB). O autor de clássicos como Os Miseráveis e O Corcunda de Notre Dame é considerado um dos precursores do espiritismo na França e foi citado pelo próprio Kardec em algumas ocasiões. “As ideias do iluminismo francês motivavam muito a vida cotidiana à época e encontravam ressonância no espiritismo”, completa Marta.

Havia também as mudanças naturais na sociedade, que começava a se modernizar. Já existia naquele período, final do século 19, uma sociedade burguesa e de consumo. As famílias estavam se transformando e o processo de urbanização se acelerava.

Esse desejo de modernizar o Brasil, participar da corrida pela eletricidade, telegrafia e consumo cria uma nova mentalidade nessa burguesia, que vai adotar o espiritismo como prática”, diz Del Piore, que também destaca o papel da imigração nesse processo: “Nas décadas de 60 e 70 (do século 19) o Brasil já estava bastante conectado com o resto do mundo e os navios e vapores traziam gente de toda parte, principalmente da Europa. Recebíamos também muitos jornais estrangeiros que já falavam desse movimento espiritualista”.

Ideais da revolução francesa

Os adeptos do espiritismo também estavam sintonizados com os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, que motivaram a Revolução Francesa, e defendidos por aqueles que eram favoráveis à instalação da República no Brasil e libertação dos escravizados. Não à toa, a doutrina encontrou forte ressonância nas faculdades de Direito, de onde saía grande parte da elite cultural, política e social da sociedade brasileira.

Os primeiros espíritas brasileiros tinham formação acadêmica. Muitos, no início, eram bacharéis em Direito”, diz o escritor Paulo Rezzutti, autor de diversos livros que abordam a História do Brasil, como Independência – A História Não Contada (editora Leya).

Na origem da doutrina espírita, havia, segundo Rezzutti, uma busca pela análise racional e científica. “Havia o fenômeno, por exemplo, das mesas girantes (que se moviam sozinhas), e buscava-se compreender esses e outros eventos semelhantes. A doutrina católica e os dogmas não bastavam para explicar esses acontecimentos” diz Rezzutti.

Pessoas mais instruídas e com uma visão mais racional acabaram encontrando na doutrina espírita vinda da França um caminho para sanar as suas dúvidas. “Esse contato entre as ideias europeias e os brasileiros se dava pela intelectualidade. Por isso, as ideias chegaram primeiro entre os mais instruídos, nos casos os bacharéis de Direito, engenheiros e médicos”, completa ele.

Em uma época que a Igreja Católica não dava abertura a outras religiões e exercia forte influência nas decisões do governo, Rezzutti conta que acadêmicos de Direito de São Paulo e Recife se juntaram à causa do espiritismo no Brasil, chegando a peticionar junto a dom Pedro II, em setembro de 1881, para que o movimento espírita brasileiro não fosse perseguido pela polícia.

“O imperador deu prosseguimento à solicitação e a perseguição foi cessada”, diz o pesquisador. Ele lembra que até os dias de hoje os seguidores da doutrina espírita, segundo dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, detêm os mais expressivos indicadores de educação e renda. Em 2010, data da última análise nesse quesito, os espíritas tinham a maior proporção de pessoas com nível superior (31,5%) e os menores índices de brasileiros com ensino fundamental incompleto (15%).

O movimento abolicionista contou com grande participação e influência dos espíritas. Jornais como o O Écho D’Além Tumulo abraçaram a causa de libertação dos escravos, que também contou com o engajamento de espíritas influentes, inclusive na Corte. Destaque para o professor Manuel José de Araújo Porto Alegre, o barão de Santo Ângelo, amigo do imperador e que viveu muitos anos na Europa, também a serviço do governo imperial, do qual era entusiasta. 

Muito próximo do espiritismo e da homeopatia, Porto Alegre, em determinada ocasião, por volta de 1857, alertou o imperador acerca de uma mensagem que havia recebido em uma mesa espírita na Prússia, onde exercia um cargo diplomático. Nela, consta que, caso dom Pedro II não fizesse nada para abolir a escravidão, o Império brasileiro iria cair. “Embora o imperador fosse mais aberto do que a princesa Isabel para esses assuntos, ele escuta com atenção a tudo isso, mas não toma nenhuma atitude”, ressalta Del Priore, lembrando que a abolição da escravatura só viria em 1888.

Outro abolicionista de peso era o médico, político e filantropo cearense Adolfo Bezerra de Menezes, que se tornaria um dos principais nomes do espiritismo brasileiro.

Para evitar uma ruptura total e abrupta do sistema, Bezerra de Menezes era adepto da libertação gradual dos escravizados e posterior apoio do governo aos recém-libertos, para garantir a inserção dos ex-cativos na sociedade. Aos que temiam o colapso da economia com o fim da escravidão, o médico citava o exemplo do Ceará, onde a seca de 1845 esvaziou as senzalas e obrigou os fazendeiros a contratarem mão de obra paga e livre. Apesar disso, a economia cearense não sofreu qualquer dano.

Contradições de um estado laico

Bezerra de Menezes, conhecido por suas obras de caridade em prol dos necessitados e conhecido como “médico dos pobres”, exerceu papel importante nos primeiros anos da República, período em que houve recrudescimento da animosidade ao espiritismo. Após 1889, os adeptos de Kardec ganharam novos inimigos. Não apenas a Igreja Católica continuaria a persegui-los, mas o novo governo decidiu incluir no Código Penal da jovem República a condenação das práticas espíritas.

Os positivistas, promotores do movimento republicano, não acreditavam em teses espirituais e muito menos na pluralidade de vidas do espírito. “Ao longo de mais de cinco anos, figuras importantes do movimento espírita, como Bezerra de Menezes ou o senador Pinheiro Guedes, encaminharam ao presidente Deodoro da Fonseca uma enxurrada de cartas solicitando que se retirasse do Código a passagem que penalizava a doutrina”, registra Del Priore.

O governo se esquivava e procurava amenizar a situação dizendo que a lei só se aplicava ao que chamava de “baixo espiritismo”, cujo alvo principal eram os afro-descendentes praticantes de religiões como o candomblé, cartomantes e videntes que se espalhavam pelas cidades brasileiras, em especial a capital, o Rio de Janeiro. De 1891 a 1900, conforme registrado no livro Do Outro Lado , cerca de trinta pessoas foram processadas com base nos artigos 156, 157 e 158 do Código Penal, sob acusações em sua maioria de curandeirismo, cartomancia e espiritismo.

Segundo Del Priore, a situação revela as contradições da Primeira República. Apesar da garantia do novo governo em adotar o estado laico, o próprio Código Penal promovia a perseguição às pessoas simplesmente por professarem a sua fé. A situação desconfortável perdurou até a reforma do Código Penal, em 1940, durante o governo Vargas.

O medium brasileiro

A partir da segunda década do século 20, o espiritismo no Brasil foi muito marcado pelas atividades e trabalhos realizados pelo médiumFrancisco Cândido Xavier (1910-2002), um dos maiores e mais respeitados nomes da história da doutrina no Brasil e no mundo. Mineiro de Pedro Leopoldo, desde a infância Chico Xavier afirmava conversar e receber mensagens de seus amigos e guias espirituais, sendo o principal deles um espírito chamado Emmanuel.

Durante sua vida, Chico Xavier escreveu mais de 90 livros, que venderam milhões de exemplares. Jamais aceitou receber direitos autorais pelas obras, pois dizia que eram ditadas por autores desencarnados. Sua vida pública foi marcada pela prática da filantropia e ajuda aos pobres, um dos preceitos básicos do espiritismo. Para os milhões de seguidores da doutrina, um dos trabalhos mais preciosos de Chico Xavier foram os milhares de cartas psicografadas de pessoas desencarnadas e entregues aos parentes que procuravam o médium em seu centro espírita, na cidade de Uberaba, no Triângulo Mineiro.

Busto de Chixo Xavier em Pedro Leopoldo, Minas Gerais /Fran6fran6

Diante de tudo isso, Chico Xavier é considerado um dos maiores disseminadores, senão o maior, do espiritismo no Brasil. Em 2010, o IBGE apontava que o país possuía 3,8 milhões de pessoas que se declaravam espíritas. A estimativa da Federação Espírita Brasileira (FEB) é que esse número atualmente seja superior a 4 milhões, mas o número de simpatizantes pode ser bem maior. A doutrina também é disseminada por meio dos cerca de 15 mil centros espíritas cadastrados pelas federações espíritas estaduais.

Apesar de apresentar saúde frágil desde a juventude, Chico costumava dizer, em diversas ocasiões ao longo da vida, para não se preocuparem com o seu estado físico, pois ele só morreria — ou desencarnaria, como preferem os espíritas — no dia em que todos os brasileiros estivessem muito felizes. Chico Xavier faleceu, aos 92 anos, no dia 30 de junho de 2002, por volta das 19h30, na mesma data em que a Seleção Brasileira conquistou o pentacampeonato mundial de futebol.