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Matérias / Crimes

Crimes da Rua do Arvoredo viraram lenda em Porto Alegre e inspiram livro e filme

Em uma história que virou lenda, entre 1863 e 1864, José Ramos e Catarina Palse foram responsáveis por crimes que chocaram a capital gaúcha

Fabio Previdelli

por Fabio Previdelli

fprevidelli_colab@caras.com.br

Publicado em 08/04/2024, às 20h45 - Atualizado às 20h52

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Capa do livro 'Os Canibais da Rua Arvoredo' - Divulgação
Capa do livro 'Os Canibais da Rua Arvoredo' - Divulgação

Acima de qualquer suspeita, um casal usa a carne de suas vítimas para produzir deliciosas iguarias. Esse caso que mistura ares de barbaridade com canibalismo 'sem consentimento' até parece ter sido retirado de um filme dirigido por Tim Burton.

Mas os Crimes da Rua Arvoredo não só chocaram Porto Alegre no século 19 como também foram mencionados pelo naturalista britânico Charles Darwin nos apontamentos de seus estudos sobre a natureza humana. 

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Capa do livro 'Os Canibais da Rua Arvoredo' - Citadel

Um século e meio depois, o caso que virou uma lenda na capital gaúcha ganha uma versão mais moderna, e tão macabra quanto, no livro 'Os Canibais da Rua Arvoredo' (Grupo Editorial Citadel), do romancista Tailor Diniz

"A releitura que faço da história ocorre no Brasil contemporâneo. Para adaptá-la, dou ênfase a circunstâncias e recursos inexistentes há 150 anos, especialmente na área da tecnologia e sua influência nas relações sociais, no dia a dia das pessoas", diz em entrevista à equipe do site do Aventuras. 

"A ideia foi trazer um caso escabroso, que se passou há um século e meio, para ver como isso seria tratado em um mundo totalmente diferente e, pelo menos em tese, mais evoluído", explica. 

Mas, afinal, o que foram os Crimes da Rua Arvoredo? E como o caso ainda hoje repercute no Rio Grande do Sul?

Casal de assassinos

Para saber tudo sobre os Crimes da Rua Arvoredo, com o perdão do trocadilho, vamos em partes. Antes de entender como e por que José Ramos e Catarina Palse fizeram linguiça de suas vítimas, primeiro precisamos conhecê-los. 

O personagem principal dessa história é José Ramos, filho mais velho de um membro da cavalaria de Bento Gonçalves durante a Revolução Farroupilha que havia desertado e se refugiado em Santa Catarina. 

Conforme diz a lenda, desde cedo Ramos demonstrou interesse quando seu pai contava as histórias de degolamento cometidos por seu esquadrão. E quis o 'destino' que o primeiro crime de José Ramos teria sido cometido, inclusive, contra seu próprio pai que, embriagado, estava agredindo sua esposa. 

Para proteger a matriarca, José o feriu fatalmente com uma faca. A única saída seria fugir para Porto Alegre; onde se tornou inspetor da polícia. Na capital gaúcha, se estabeleceu na antiga Rua do Arvoredo (atual Rua Coronel Fernando Machado). 

Rua do Arvoredo / Crédito: Domínio Público

Tudo parecia ter retomado a normalidade até que Ramos tenta degolar o célebre preso Domingos José da Costa. Conhecido como Campara, Domingos era considerado o Robin Hood gaúcho, por roubar dos ricos e distribuir aos pobres. Com a tentativa, José acaba expulso da corporação, mas se mantém como informante. 

Frequentador de eventos da classe alta porto-alegrense, Ramos se encontrou e se apaixonou pela húngara Catarina Palse durante um desses eventos. Nascida na parte húngara da Transilvânia, Catarina era oriunda de uma família pobre assassinada durante a Revolução Húngara de 1848. Ela permaneceu viva apenas para servir como 'objeto sexual' pelos soldados. 

Aos 15 anos, a mulher se casa com Peter Palse apenas pelo interesse de fugir de seu país e da extrema pobreza. Durante a viagem, cinco anos depois, Peter acaba se suicidando. Catarina, agora com 20, estava sozinha e perdida em Porto Alegre antes de conhecer José Ramos

Onda de crimes 

Com seu fascínio pelo 'ato da degola', o ex-policial começa a orquestrar com a amada uma onda de assassinatos. Catarina passa a ser a 'isca', atraindo vítimas para a residência da Rua do Arvoredo, onde os crimes eram cometidos sem dó alguma pelo ex-policial. 

Para tornar o cenário ainda mais surreal, o casal mutila as suas vítimas e enviava os restos para o açougue do alemão Carl Claussen, que locava o endereço na Rua Arvoredo para eles. A lenda diz que Claussen usava a carne humana para produzir linguiças, que eram sucesso no bairro. 

"O crime original é visto hoje sob duas perspectivas. A de que o canibalismo realmente foi praticado e a de que tudo não passou de uma lenda, que resistiu ao tempo no imaginário da população, sempre aberto a esse tipo de assunto", explica Diniz que, em seu livro, transforma a iguaria em hambúrgueres vendidos por Manoel em seu restaurante, chamado Boca Santa. 

A lenda aponta que o casal tinha preferência por homens ricos e estrangeiros, principalmente de origem alemã — pela facilidade de Catarina em se comunicar em sua língua nativa — e que frequentavam o Beco da Ópera. Tudo isso apenas para roubar seus pertences. 

Em 'Os Canibais da Rua Arvoredo', Diniz usa o mesmo modus operandi, só que desta vez com a fictícia boate Anjos&Demônios; e depois passando a perseguir pessoas em situação de vulnerabilidade social. 

O processo público que aborda os crimes, do inquérito à condenação dos acusados, indica que são três os mortos. Mas há relatos de que seriam mais, de sete a dez", conta o romancista sobre os crimes da vida real. 

"O que se observa hoje, além dos documentos oficiais, que não se referem ao canibalismo, são muitas versões de ambos os lados. De quem acredita que se faziam linguiças de carne humana e de quem nega. Versões mais aceitáveis consideram que José procurava as vítimas para lhes roubar os pertences. Catarina teria sido apenas cúmplice, tanto que sua condenação foi menor", continua. 

Caso esclarecido

Os casos de desaparecimentos começaram a chamar a atenção em agosto de 1863, quando os sumiços passaram a repercutir pela cidade. Com Claussen assustado com a dimensão dos crimes, ele decide largar tudo e se mudar para o Uruguai.

Entretanto, acaba se tornando mais uma das vítimas do casal. Sob posse das propriedades do açougueiro, José Ramos e Catarina Palse continuam cometendo seus assassinatos, embora pouco tivessem habilidades para produzir os embutidos. 

A resolução dos crimes só começa no ano seguinte, com o desaparecimento do caixeiro-viajante José Ignacio de Souza Ávila, de apenas 14 anos, e do comerciante português Januário Martins Ramos da Silva

Como na noite anterior eles foram vistos na companhia de José Ramos, na casa da Rua Arvoredo, o delegado Dario Rafael Callado não se deu por convencido com as explicações do ex-policial e opta por uma inspeção na residência; onde encontrou as evidências dos crimes. 

Pelos crimes de latrocínio, José Ramos foi condenado à pena de morte por enforcamento, enquanto Catarina Palse a 13 anos de prisão. Na trama de Diniz, os espíritos dos criminosos se apossam de seus homônimos da atualidade, incentivando-os a cometerem os crimes por alegarem serem inocentes. 

Segundo os documentos oficiais disponíveis, não havia dúvidas quanto aos assassinatos e à identidade dos autores", ressalta Tailor Diniz. "A controvérsia é quanto ao destino da carne das vítimas. Mas José negou os crimes até o fim, assim como Catarina".

O autor explica que, assim como os hambúrgueres de 'Os Canibais da Rua Arvoredo', as linguiças do açougue também faziam sucesso. "Nos relatos que admitem ter havido canibalismo, sim. As linguiças faziam sucesso em Porto Alegre, que, na época, se resumia ao que é hoje o Centro Histórico". 

"A versão do canibalismo surgiu dessa conjunção, havia um grande consumo na cidade, e relacionar os dois fatos — a amizade do casal com um açougueiro que vendia linguiças naquela região — foi fácil. Um fato curioso: Hoje em dia, a casa que pertencia ao casal virou um açougue", diz em tom descontraído. 

De Darwin as telonas

Um fato curioso, citado por Diniz em seu livro, é que o caso ganhou tamanha repercussão internacional que até mesmo chegou a ser citado pelo naturalista britânico Charles Darwin, que anos antes, enquanto viajou ao Brasil a bordo do navio HMS Beagle.

Retrato de Charles Darwin - Wikimedia Commons

Charles Darwin realmente faz uma referência nos seus cadernos de anotações, mas sem se aprofundar. Ao se referir aos crimes, no sul do Brasil, escreveu que 'há chacais adormecidos em cada homem'. Mas adverte que isso não significa que 'a humanidade esteja voltando à bestialidade'", aponta. 

Agora, o próximo passo de Diniz é a adaptação de 'Os Canibais da Rua Arvoredo' para os cinemas. O romancista nos conta que os direitos do livro já foram adquiridos pela Paris Filmes e está em fase de captação.

"Vai ser dirigido por Paulo Nascimento, que já adaptou um livro meu (A superfície da sombra) e que também é um dos roteiristas. Deve começar a ser filmado em julho do ano que vem".