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Matérias / Futebol Feminino

Nos anos 1920, futebol feminino no Brasil era atração circense

Registros iniciais do termo "Futebol Feminino" foram encontrados em panfletos circenses; entenda o contexto!

Fabio Previdelli

por Fabio Previdelli

fprevidelli_colab@caras.com.br

Publicado em 24/06/2023, às 00h00 - Atualizado em 07/12/2023, às 14h24

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Atrizes das famílias circenses Queirolo e Seyssel - Museu do Futebol
Atrizes das famílias circenses Queirolo e Seyssel - Museu do Futebol

No Brasil, o futebol feminino sofreu um duro golpe em 14 de abril de 1941, quando o artigo 54 do decreto-lei número 3.199 impediu as mulheres, no Brasil, de praticarem esportes considerados violentos e não condizentes com o que se esperava de uma mulher na época. Embora não tenha sido citado nominalmente, o futebol fazia parte desta proibição.

"Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país".

Decreto-Lei foi publicado em 14 de abril de 1941, no governo Getúlio Vargas/ Crédito: Reprodução/ Twitter/ Museu do Futebol

Por aqui, a proibição imposta durante o governo de Getúlio Vargas foi endurecida pelos Anos de Chumbo da Ditadura Militar e só foi revogada em 1979. A regulamentação do Futebol Feminino no país veio quatro anos depois, em 1983, mas os clubes brasileiros só começaram a investir para valer em estruturas melhores nos últimos anos.

+ Anos de Chumbo F.C: Como a Ditadura influenciou o futebol no Brasil?

A falta de apoio, oportunidade e tratamentos igualitários — se comparado com os homens — não foram capazes de tirarem o brilho de nossas atletas. Acostumadas a enfrentarem os mais diversos desafios só pelo fato de serem mulheres, elas mostram a cada dia que força feminina é capaz de ocupar qualquer lugar na sociedade; até mesmo aqueles que há muito lhe foram negadas.

Trecho da matéria do jornal carioca A Batalha/ Crédito: Acervo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

O Futebol Feminino no Brasil é um exemplo de que não importa contra quem será o jogo, as mulheres sempre entrarão em campo tendo que enfrentar adversários que vão muito além das quatro linhas.

Futebol circense

A história sobre a chegada do futebol no Brasil todos conhecem: em 1894, Charles Miller veio a terras tupiniquins trazendo consigo duas bolas de futebol, uniformes e um livro com regras. Nos meses seguintes, o brasileiro, que foi estudar no Reino Unido quando tinha apenas dez anos, ajudou a introduzir em sua terra natal o esporte que aprendeu quando desembarcou em Southampton. Hoje, o futebol é uma paixão nacional.

Até o final do século 19 e início do 20, o futebol era praticado por uma elite branca formada apenas por homens. As primeiras referências sobre a participação das mulheres neste esporte só aparecem nos anos 1920, ainda que de forma muito tímida, em regiões periféricas no Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Norte.

Um fato curioso é que os registros iniciais do termo "Futebol Feminino" foram encontrados em panfletos circenses, que anunciavam a atração não como uma partida convencional, mas como um ‘espetáculo’. Em 1926, por exemplo, registros das famílias circenses Queirolo e Seyssel, em Minas Gerais, mostram mulheres uniformizadas para uma dessas partidas espetacularizadas (Imagem que estampa a capa desta matéria).

Panfleto sobre jogo de Futebol Feminino atração do Circo Irmãos Queirolo/ Crédito: Museu do Futebol

O registro sobre as origens do Futebol Feminino no Brasil sempre foram escassos, mas sua participação em circos possui uma explicação simples: "A gente tem o ambiente das artes, da cultura, fazendo algo muito e comum da época que é pegar o melhor do que as culturas estão oferecendo e levar para dentro dos picadeiros", explica Aira Bonfim, mestre em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), com pesquisas dedicadas às práticas esportivas contra hegemônicas, em entrevista exclusiva à equipe do site do Aventuras na História.

Ou seja, a produção cultural vai usar o que melhor da sociedade tem, seja de forma regional ou até internacional, que é o caso do futebol, e vai apresentar então para um público pagante dentro dos picadeiros, dentro das lonas circenses", continua Aira, que atuou quase uma década como pesquisadora no Museu do Futebol e hoje é curadora do espaço.

Bonfim conta que não é por acaso que o futebol, um tema esportivo que está em muita evidência na época, vai ser absorvido pelo circo. As apresentações circenses abusavam do uso do esporte dentro do picadeiro. "Seja através de um futebol de bicicletas, com futebol com cães adestrados, mas também com mulheres que vão jogar esse futebol que é algo que não vai ser encontrado dentro das arenas esportivas dessa época, mas vai atrair por que é uma curiosidade, é algo que não é encontrado nos outros espaços".

"Então, o público vai pagar para ver. Vai pagar para ver também por vezes as suas camisas clubísticas sendo vestidas nessas ocasiões, então você usa um pouco dessa adesão dos torcedores e torcedoras para você também reivindicar ali formas de compromisso com os ingressos da temporada circense", pontua.

Um exemplo disso remete ao dia 29 de dezembro de 1932, quando o picadeiro do Grande Circo Nerino, armado nos jardins do Parque 13 de maio, no centro de Recife, receber uma partida: que seria disputada por mulheres representando o Náutico e o Sport, dois clubes populares de Pernambuco.

"Pela primeira vez no Recife, o foot-ball feminino", dizia um anúncio no canto superior da página 4 do Jornal do Recife da época. A falta de registros, porém, impede saber o que aconteceu naquela partida.

Anúncio do Grande Circo Nerino/ Crédito: Reprodução/ Jornal do Recife

Futebol, uma questão de gênero?

Embora o futebol seja considerado, atualmente, como o mais democrático dos esportes, o preconceito racial, a homofobia e o machismo insistem em dar as caras. Essa tal democratização, porém, vai totalmente na contramão das raízes do esporte no Brasil.

Num primeiro momento, afinal, a implantação da modalidade foi caracterizado pela elitização e o preconceito contra classes sociais mais baixas e pessoas pretas — além das mulheres.

Enquanto brancos construíam estádios, negros ocupavam campos de várzea; a elite usava uniformes de marinheiros e limpavam seu suor com lenços, os mais pobres jogavam descalços e com roupas de retalhos. O monopólio da elite branca e abastada só começou definhar na década de 1930, quando o esporte foi profissionalizado (em 1933).

Final do Campeonato Paulista de 1902, primeiro estadual jogado no Brasil/ Crédito: Domínio Público

Ainda assim, mulheres se enquadravam na parte de minorias na busca por seu espaço na modalidade. Com a mesma sina que elas, trabalhadores braçais, mestiços e homens negros tinham muita dificuldade de acender e participar dos principais clubes da época — principalmente de fazer-se aceitar a ideia de 'ganhar dinheiro jogando bola', algo que não fazia parte dentro do cenário esportivo da época, aponta Aira.

"É muito evidente que essa construção do modelo moderno de esportes, da estrutura de categoria, das regras é algo que, naquele momento, na passagem do século 19 para o século 20, ele é organizado por homens para outros homens", diz a pesquisadora.

Bonfim aponta que a ausência de mulheres praticantes as modalidades em construção naquela época — que não são as mesmas de hoje; nem da mesma forma —, está muito em virtude da elitização das práticas. "Então, de alguma forma, era muito natural a ausência ou exclusão de mulheres nessas práticas, do ensino e inclusive das competições — desde as regionais até grandes competições de visibilidade, de intercâmbio mundial, que é o caso dos Jogos Olímpicos".

"Nesse sentido não é um estranhamento a gente não encontrar mulheres praticando esporte, mas também não é um estranhamento pensar e também reconhecer nas fontes históricas — tanto do Brasil como de fora, principalmente na Europa e nos Estados Unidos — que um esporte muito fácil de se aprender, como futebol, ele vai ser facilmente absorvido por alguns grupos de meninas, de adolescentes, de jovens, que pegam uma bola, começam a brincar e a chutar", continua.

Aira Bonfim explica que no Brasil dos anos 1910 e 1920 vai existir uma 'periferia' dessa experiência; sem essas partidas serem reconhecidas dentro de calendários que envolvam as principais ligas esportivas — que vão gerir o futebol. As mulheres também não dispunham dos mesmo tratamentos em relação às partidas masculinas. "Nem nos mesmos espaços".

Apesar de todas essas dificuldades, elas, ainda assim, vão demonstrar interesse pelo jogo e lutar por um espaço dentro da modalidade. Entre 1939 e 1940, mulheres periféricas, oriundas do subúrbio carioca, apresentaram mais de quinze equipes femininas que passaram a aparecer nos mesmos espaços dos torneios e campeonatos suburbanos masculinos.

Esse crescimento foi evidenciado pelo dia 17 de maio de 1940, quando São Paulo e Flamengo fizeram um amistoso no recém inaugurado Estádio do Pacaembu. O que chama a atenção para a data é que uma partida preliminar foi realizada entre equipes formadas por mulheres.

Fachada do Pacaembu na época de sua construção/ Crédito: Domínio Público

"Essas meninas vão jogar dentro do estádio do Pacaembu, que é um lugar que vai ter muita visibilidade naquela ocasião. Um estádio doado ali pelo governo de Getúlio Vargas à cidade de São Paulo e, na sequência desse episódio, não vão acabar os convites para que essas mesmas equipes excursionem pela América Latina", contextualiza Bonfim.

Consequentemente, essas meninas pretas, pobres e etc… vão, de alguma forma, ter oportunidade de representar o Brasil dentro de campo. E isso não vai pegar bem".

As notícias sobre as mulheres jogando futebol causaram um alvoroço na opinião pública da época e também nas autoridades. O estranhamento da mulher ocupando um lugar que 'não foi feito para ela' causou discussões sobre a proibição delas praticarem o esporte; o que acaba sendo sacramentado pouco depois com o decreto-lei número 3.199 — que usa argumentos de 'cunho científico' para propagar proibições como as que acontecem na Inglaterra.

Manchete sobre o decreto-lei número 3.199 / Crédito: Reprodução

Além disso, ainda em 1940, campanhas de difamação foram feitas contra Dona Carlota Resende — dirigente esportiva que ajudou a fomentar a criação de uma dezena de equipes femininas —, que passou a ser acusada de aliciar meninas pobres e ganhar dinheiro para fazê-las jogar; ou, em casos mais absurdos, de encaminhar essas atletas ao ambiente noturno, nas boates e, talvez, até na prostituição.

"Tudo isso é colocado nos jornais. É uma associação direta entre a praticante do futebol desse período com esse universo considerado, no período, como uma baixa moralidade", explica a historiadora do esporte Aira Bonfim.

Indo de encontro com as pesquisas de Aira, a jornalista e pesquisadora de mulheres no esporte, Lu Castro, ainda aponta, em entrevista ao Aventuras, que o deslocamento das mulheres das regiões suburbanas para o fim de jogar futebol, implicava, para aquela época, na ausência da mulher dentro de casa cumprindo com os deveres estipulados através do matrimônio e mesmo fora dele.

A criação da mulher era rigorosamente para a servidão, fosse no aspecto prático, fosse no aspecto do imagético feminino para os homens", finaliza Lu.