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Matérias / Egito Antigo

O rosto revelado da múmia favorita de D. Pedro II

Sha-amon-em-su foi uma cantora-sacerdotisa egípcia cuja face veio à luz após 2.800 anos escondida em seu ataúde, presenteado ao imperador em 1876

Isabela Barreiros Publicado em 22/01/2022, às 08h00

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A reconstrução facial da múmia Sha-amon-em-su - Cícero Moraes
A reconstrução facial da múmia Sha-amon-em-su - Cícero Moraes

Apreciador da cultura egípcia, D. Pedro II selou importante amizade com o quediva Ismail Paxá, então soberano local, ao enviar-lhe um livro sobre o Brasil. Quando viajou ao país entre 1876 e 1877, na segunda visita do imperador ao Oriente, recebeu um valioso presente em retorno: um sarcófago contendo uma verdadeira múmia egípcia.

Assim que chegou em território brasileiro, o ataúde foi levado ao Palácio Imperial de São Cristóvão e passou a integrar a coleção pessoal de Pedro, conhecida como Museu do Imperador, mantida em quatro salas no andar térreo do palácio. Lá estavam artefatos históricos que havia herdado, coletado ou recebido através de intercâmbio.

Como conta o egiptólogo Moacir Santos ao Aventuras na História, documentos revelam que a múmia presenteada ao imperador, chamada Sha-amon-em-su, um nome raro que significa “verdejantes são os campos de Amon”, ficava nesse espaço. Na lista de objetos mantidos no então museu, ela inclusive aparece como a “1ª múmia autêntica do Egypto”.

“Com o golpe militar que ocasionou o fim da monarquia, em 1889, os objetos que faziam parte do museu do Imperador foram transferidos para o Museu Nacional que se localizava no Campo de Santana. Uma via férrea foi construída a pedido do então diretor, Ladislau Netto, para o transporte da coleção”, explica Santos.

“Neste momento, Sha-amon-em-su se reuniu aos seus conterrâneos, permanecendo então com as outras múmias do acervo até uma nova transferência, quando o palácio da Quinta da Boa Vista foi transformado em Museu Nacional, em 1892”, acrescenta.

Comitiva brasileira de D. Pedro II no Egito em 1876 / Wikimedia Commons/Domínio Público

Embora D. Pedro II tivesse adquirido outras múmias, especialmente pelo fato de ser um estudioso da cultura egípcia e colecionador, Sha-amon-em-su ficou conhecida como sua favorita. A lenda diz que o imperador até mesmo conversava com a egípcia, mas, segundo o pesquisador, essa história não pode ser confirmada.

O fato do ataúde ser o preferido do monarca dá-se por ele ter sido recebido de presente e por estar sempre muito próximo a ele, ressalta Santos. Além disso, a aquisição da múmia também possibilitou uma série de pesquisas por ter tido sua autenticidade notada muito cedo já pelo primeiro egiptólogo do Museu Nacional, Alberto Childe, em 1930.

Na época, o especialista afirmou: “Sempre sustentei sua autenticidade [do ataúde] e tive a satisfação, alguns anos atrás, de ver confirmado meu juízo, pelo saudoso Conselheiro Sr. Barão Homem de Mello, que na ocasião de uma visita ao Museu Nacional, reconheceu-o como tendo sido oferecido pelo Khedive do Egito, Ismail, ao imperador do Brasil, D. Pedro 2º, quando viajou ao Egito, em 1876.”

A múmia do imperador na modernidade

O ataúde de Sha-amon-em-su / Wikimedia Commons/Museu Nacional

Décadas se passaram e o sarcófago manteve sua relevância no cenário de pesquisa nacional, sendo investigado por grupos de especialistas que foram responsáveis por examinar suas inscrições, entender quem era aquela mulher egípcia e desenvolver uma tomografia computadorizada por raios X, sem a necessidade de abrir o ataúde.

Essas pesquisas possibilitaram novos estudos sobre a múmia e permitiram que, em outubro de 2021, o designer 3D Cícero Moraes, em parceria com o egiptólogo Moacir Santos, desse rosto à múmia favorita de D. Pedro II, em um projeto que revelou sua face depois de mais de 2.800 anos.

Moraes explica que, a partir dessa série de fatias tomográficas, “foi possível reconstruir parte significativa da anatomia pretendida, que foi complementada por imagens disponíveis em artigos científicos”. “Com o crânio reconstruído, iniciou-se a aproximação facial, que consiste em modelar como seria o rosto a partir de uma abordagem mista composta por dados estatísticos e anatômicos”, completa.

De acordo com Santos, esta foi a primeira vez que uma aproximação facial forense em meio digital foi empregada em uma das múmias do Museu Nacional. O projeto torna-se ainda mais relevante quando pensamos que o incêndio de 2018 causou a destruição completa do ataúde e da múmia, da qual restaram apenas os ossos danificados e amuletos.

“Entre estes há um escaravelho do coração e um pequeno conjunto de amuletos que estavam próximos às mãos dela. Os ossos e os amuletos foram recuperados durante os trabalhos de resgate do acervo”, ressalta.

Cantora-sacerdotisa no Egito Antigo

Passos da reconstrução facial de Sha-amon-em-su / Cícero Moraes

Sha-amon-em-su nasceu em Tebas, atual Luxor, no século 8 a.C. e seu nome faz alusão ao deus tebano, Amon, o rei dos deuses. Ela foi uma sacerdotisa-cantora que fazia parte de um grupo de mulheres que integravam o ritual diário realizado nos templos, com o título de “heset ne per Imen”, que significa “cantora do santuário de Amon”.

Exames realizados pelas tomografias computadorizadas mostram que a mulher tinha mais de 40 anos quando morreu. Acredita-se que ela tenha atingido a expectativa de vida de um egípcio antigo, que estava entre os 35 e 45 anos.

E, como destaca o egiptólogo envolvido no projeto da reconstrução facial, a pesquisa possibilitou a construção de sua imagem mais próxima em seus últimos anos de vida. “É possível, por meio dela, reconhecer os principais traços desta mulher que viveu há mais de 2.700 anos”, comemora.

A partir da face revelada de Sha-amon-em-su, foi possível perceber que ela apresentava um tipo de deformidade dento-esquelética conhecido como prognatismo maxilar (classe II), que, segundo o designer 3D, “é uma característica muito comum nas múmias egípcias que já reconstruí”.

Também foi notado que a face é completamente diferente da apresentada no ataúde da múmia, o que já era esperado, visto que a idealização da imagem era bastante comum no Egito Antigo. Santos explica que o indivíduo dificilmente era representado em seu ataúde, sarcófago ou máscara mortuária como teria sido exatamente em vida.

Resultado da reconstrução facial, revelando o rosto da múmia egípcia / Cícero Moraes

Mas essa reconstrução facial com certeza é muito parecida com o que a cantora egípcia teria sido em vida. Conforme salientam os pesquisadores, a compatibilidade volumétrica do rosto é de 85-92%, enquanto visualmente, a porcentagem fica acima de 75%, contando com características culturais do indivíduo.

Além de poder dar face à múmia de D. Pedro II, trazendo à luz pela primeira vez a imagem de uma figura histórica importante que viveu há mais de 2.800 anos, Moraes também considera o projeto importante por permitir uma “identificação mais humanizada do indivíduo ao qual o crânio pertenceu”.

“Realizar uma aproximação deste tipo também auxilia na humanização dos restos humanos. Nos museus, as múmias são frequentemente vistas como artefatos. Dar um rosto a elas é importante para que o público as reconheça como seres humanos”, afirma Santos.